Nada como fechar o ano com humor. Não um "humor" forçado, grotesco, feito apenas para ofender, como aquele do Porta dos Fundos sobre Jesus, e que jamais teria ousadia similar com Maomé. Mas sim um humor mais refinado, ainda que mantendo o tom do escracho.
Reservei para a última leitura do ano o livro Tarde demais para pedir bom senso, de Joselito Muller. Seus ensaios lidam basicamente com temas políticos da atualidade. Para ser mais preciso, com os principais personagens do governo Bolsonaro, da tal "nova era".
Se Burke falava da importância da "imaginação moral", Joselito nos trás o que pode ser definido como "imaginação imoral": ele se coloca no lugar de narrador privilegiado para descrever diálogos íntimos dos figurões do governo, sempre adotando como fio de conduta fatos da realidade.
O mais engraçado no livro, portanto, é que, apesar do humor evidente, a coisa poderia ter ocorrido dessa maneira mesmo! O recurso utilizado pelo autor é o do exagero, da hipérbole, mas sem abandonar totalmente um resquício de credibilidade. O que torna o livro tão engraçado e ao mesmo tempo assustador é exatamente essa ambivalência: a trama é crível.
O alvo preferido de Joselito é Carluxo, filho do presidente Bolsonaro. As suspeitas que pairam sobre ele, envolvendo seu relacionamento próximo com o primo "índio", as paranóias bizarras que lavaram Carlos a ir no Rolls-Royce com o pai no dia da posse, as conspirações contra ministros, tudo isso fornece um prato cheio para o humor.
Após o próprio vir esses dias às redes sociais negar boatos de que seria homossexual, Joselito não perdoou: "Diferente de Flávio, Carlos Bolsonaro diz que sempre manteve distância de rachadinha". Eis a pegada do livro também, como num ensaio em que ironiza o erro de linguagem do vereador ao dizer que estava "literalmente morrendo" pelo governo do pai. O autor coloca na boca de Carluxo, então, essa resposta ao pai: "É, eu sei como são essas coisas. Mas às vezes eu perco a paciência, porque essa gente vive literalmente metendo o pau em mim".
Mas o mais importante é lembrar dos pés de barro de quem chega ao poder com um discurso muito messiânico e purista, calcado num populismo alimentado por comportamento de seita. Esse é o objetivo do humor iconoclasta de Joselito nessa obra, lembrando que o humor tem exatamente esse papel, essa função social, de mexer em certas crenças estabelecidas e desafiar autoridades. Humor chapa-branca é algo sem sentido.
"Tem muita gente disposta a negar o que tá diante dos olhos para mostrar lealdade ao governo. Quando a realidade contrariar o que eles pensam, eles vão dizer que o ponto de vista deles está certo e que a realidade é que está errada", atesta um personagem. O tribalismo tomou conta dos "debates" políticos no país, as redes sociais foram invadidas por fanáticos de todas as matizes, e quem perde é justamente aquele perfil mais independente, disposto a avaliar os prós e contras sem tanta paixão.
Ele vira o "isentão", sendo que, como lembra outro personagem, num ensaio delicioso sobre o processo de conversão de um moderado num "bolsominion" radical, por pressão de grupo e covardia moral, cada lado pode alegar que o "isentão" pertence ao "time" adversário, ao inimigo. Tudo passa a ser binário, maniqueísta, numa asfixia totalitária que enxerga qualquer divergência como "fraquejada" ou "traição". Basta discordar do "mito" para virar um "socialista fabiano", tudo se aplica à "teoria das tesouras", e quem não percebe o "xadrez 4D" do presidente é um "idiota útil da esquerda".
"Se há uma guerra e você não assume um lado, é porque está do lado inimigo", argumentou um dos personagens, e o outro retrucou: "Se me torno adepto do lado inimigo ao não tomar partido e o inimigo pensa a mesma coisa a meu respeito exatamente por esse motivo, eu estou de que lado afinal?" A pergunta produz um "bug" na cabeça binária e tribal.
Estou lendo, aliás, O chamado da tribo, de Mario Vargas Llosa, e o grande escritor liberal fala exatamente dessa mentalidade tribal. No capítulo sobre Ortega y Gasset, Vargas Llosa sai em defesa do filósofo espanhol, que foi muito atacado por não tomar um claro partido na Guerra Civil Espanhola. Contra totalitarismos dos dois lados, o comunismo e o fascismo, o pensador preferiu ficar distante de ambos, e o escritor peruano conclui:
Essa postura era impraticável naquela situação de ruptura violenta da sociedade e de um maniqueísmo beligerante, quando desapareciam os matizes e a moderação, mas não era desonesta. [...] e por isso durante a guerra ele se absteve de tomar partido publicamente por qualquer dos dois lados em conflito, e, depois, de aderir ao regime que o lado vencedor instalou.
A incoerência de quem jura lutar contra o terrível inimigo para preservar valores, enquanto adota cada método do inimigo, também é destacada no livro de Joselito, como quando um personagem diz: "Por isso eu sentia muita vontade de meter a porrada nesses filhos da puta, que acham que só com violência as coisas se resolvem". Se a esquerda que aplaude os black blocs enquanto discursa em prol da pluralidade e tolerância sempre foi hipócrita, o que dizer de uma suposta direita que fala em nome do conservadorismo enquanto destila ódio e sentimento de vingança que justificam a "justiça com as próprias mãos", algo diametralmente oposto ao império das leis?
Enfim, por meio do humor ácido, Joselito Muller desarma um pouco essa aura messiânica de quem passou a falar em "nova era" para se referir a um clã familiar que está na política há três décadas, sendo apoiado por uma legião de militantes aguerridos. Não quer dizer que não possamos reconhecer vários avanços - e também erros, mas, como lembra Vargas Llosa, ainda sobre as lições de Ortega y Gasset, o liberalismo não pode ser reduzido aos aspectos econômicos. E essa postura tribal fanática e quiçá totalitária de uma ala do bolsonarismo deveria assustar todo aquele comprometido com a liberdade individual e de pensamento, que dispensa "mitos" no âmbito da política.
O livro será muito divertido para quem não aderiu a esse tribalismo tosco, e um soco no estômago de quem precisa enxergar mitos onde há apenas seres humanos imperfeitos. Infelizmente, esses tipos pululam nas redes sociais, o que torna o livro mais necessário. Afinal, parafraseando Stanislaw Ponte Preta, ou instauramos o bom senso, ou nos ridicularizemos todos!
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