Por Ricardo Vélez-Rodriguez, publicado pelo Instituto Liberal
Este artigo foi originalmente publicado no site do autor.
Pretendo, neste artigo,[1] desenvolver dois aspectos relativos ao pensamento de Joaquim Nabuco, que me parecem relevantes para a meditação brasileira: 1 – O queridinho dos salões e o ideal monárquico; 2 – Uma pauta para a política parlamentar: O abolicionismo.
Farei, antes, um breve escorço biobibliográfico do nosso autor. Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo foi o quarto filho de José Tomás Nabuco de Araújo e Ana Benigna de Sá Barreto, sendo que os seus irmãos eram: Sizenando, Rita de Cássia (Iaiá), Vitor e a caçula, Maria Carolina (Sinhazinha). Nasceu no Recife, em 19 de agosto de 1849. Em dezembro desse ano, Nabuco de Araújo, eleito deputado, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. O menino Joaquim (Quincas) ficou com os padrinhos, no engenho Massangano, no Recife. Em 1857, em decorrência da morte da madrinha, Nabuco foi para o Rio morar com os seus pais. No ano de 1859 estudou, interno, no colégio do Barão de Tautphoeus, em Nova Friburgo. No ano seguinte, ingressou no Colégio Pedro II, tendo se bacharelado em letras, em 1865.
Em 1866 ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, onde estudou durante três anos, destacando-se pelos seus pendores de orador e pelo fato de organizar o jornal A Independência. No ano seguinte, Nabuco organizou o jornal estudantil A Tribuna Liberal e escreveu Estudos Históricos. Em 1868, o nosso autor traduziu, para o pai, documentos do jornal Anti-Slavery Reporter, órgão da British and Foreing Anti-Slavery Society. Em 1869, transferiu os seus estudos para a Faculdade de Direito do Recife. Em novembro desse ano, Nabuco formou-se em ciências sociais e jurídicas, tendo voltado ao Rio de Janeiro, onde começou a sua vida de dandy, freqüentando os salões do Império.
Lembremos que em setembro de 1871 foi proclamada a Lei do Ventre Livre. Em 1873, ano da formação do Partido Republicano de São Paulo, o nosso autor realizou a sua primeira viagem à Europa. Conheceu, no navio, a jovem e rica aristocrata Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930), com quem viveu tumultuado noivado, que teve como palco a Europa e o bairro da Tijuca, no Rio. Nabuco, já maduro, em 1889, preferiu casar com uma filha da aristocracia remediada, de prendas domésticas, Evelina Torres Soares Ribeiro (1865-1948). Com ela teve cinco filhos: Maria Carolina, Maurício, Joaquim, Ana Maria e José Thomaz. Em 1875, fundou, com Machado de Assis (1863-1908) a revista A Época. No ano seguinte, ocupou o seu primeiro emprego, como adido da Legação Brasileira nos Estados Unidos. Em 1878, o nosso autor foi transferido para Londres, ocupando o mesmo posto de adido de Legação. Tendo falecido o pai, Nabuco regressou ao Brasil. Elegeu-se deputado e fundou, em 1880, no Rio de Janeiro, com André Rebouças (1838-1898), a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão e lançou, a seguir, o jornal da Sociedade, O Abolicionista, redigido, na íntegra, por ele mesmo.
Em 1881, o nosso autor candidatou-se para a Câmara dos Deputados pelo 1º distrito da Corte, mas não se elegeu. Mudou-se para Londres, como correspondente do Jornal do Comércio. Em 1882, tornou-se membro da British and Foreing Anti-Slavery Society. Em 1883, publicou o seu livro O Abolicionismo. Em 1887, em Londres, conheceu o grande reformista William Gladstone (1809-1898), por quem tinha admiração profunda. No final desse ano, elegeu-se deputado e passou a desempenhar, na Câmara, o papel de líder do movimento abolicionista. Este período representou a culminância do prestígio parlamentar de Nabuco.
Em setembro de 1890, desgostoso com os rumos positivistas e jacobinos por que enveredara a República, o nosso autor publicou o manifesto intitulado Por que continuo monarquista, vendeu a sua casa em Paquetá e passou a residir em Londres. Nabuco tornou-se correspondente do Jornal do Brasil. Residindo em Petrópolis, para onde se mudara com a família em 1893, recebeu várias propostas para aderir à República, tendo-as recusado. Ao ensejo de uma dessas negativas, escreveu o seu manifesto intitulado O dever dos monarquistas. Em 1896, o nosso autor aderiu ao recém-fundado Partido Monarquista. Em vista de que não foi indicado para continuar dirigindo o jornal dessa agremiação, A Liberdade, afastou-se do partido. Em 1897, foi eleito secretário geral da Academia Brasileira de Letras.
Entre 1898 e 1899, Nabuco publicou os dois volumes de Um estadista do Império. Integrou, a pedido do presidente da República, a missão para estudar a questão das Guianas, que seria arbitrada em favor da Inglaterra, fato que o aborreceu profundamente. Em 1900, o nosso autor assumiu a embaixada brasileira em Londres e publicou Minha formação. Em 1901, publicou os seus Escritos e discursos literários. Em 1905, tendo sido criada a representação diplomática do Brasil em Washington, Nabuco assumiu o cargo de embaixador. Em 1906 presidiu, no Rio de Janeiro, a Conferência Pan-americana. Recebeu o título de doutor honoris causa das Universidades de Columbia e de Yale. Em 17 de janeiro de 1910, Joaquim Nabuco morreu em Washington, vítima de congestão cerebral. O seu corpo foi transportado para o Rio de Janeiro, onde foi velado no Palácio Monroe e, depois, enterrado no Recife.
I – O queridinho dos salões e o ideal monárquico.
A vida nas cortes europeias girava em torno dos salões, notadamente na França, ao longo do século XIX. Já desde os tempos do Primeiro Império, logo após a Revolução Francesa, eles floresceram. Napoleão Bonaparte (1769-1821) apreciava muito a suntuosidade dos bailes palacianos e o burburinho de belas mulheres, homens de negócios, governantes, embaixadores e nobres que acudiam aos mesmos [cf. Lévy, 1943: 35]. Madame de Staël (1766-1817), a corajosa opositora ao absolutismo bonapartista em ascensão, considerava que a pior coisa que poderia lhe suceder era viver fora dos salões parisienses. De fato, o seu inimigo mais feroz, o Imperador, baniu-a da corte e dos salões, fato que ensejou a escrita dessa magnífica obra de lamento e crítica mordaz ao seu algoz, intitulada Dez anos de exílio [cf. Staël, 1996].
Na corte de Luís Filipe (1773-1850), entre 1830 e 1848, o brilho dos salões constituía ainda a mola mestra da sociedade, o que levou Victor Cousin (1792-1867), o maior filósofo da corte, a dedicar os seus últimos anos de vida a historiar a vida desses memoráveis recintos de cultura, intrigas palacianas e fofocas cortesãs, num momento identificado pelos historiadores como “La Belle-Époque de la monarchie de juillet” [cf. Caron, 1993: 117]. Na corte portuguesa transplantada para o Rio de Janeiro em 1808, no Primeiro Reinado, na Regência, mas especialmente no Segundo Reinado, não podia ser diferente: a vida dos salões era como que o coração social da cidade.
Joaquim Nabuco, o jovem Quincas, como o chamavam familiares e amigos mais íntimos, experimentou, de forma muito viva, o ambiente dos salões do Segundo Reinado. Único país latino-americano a ter instituído vida de corte (as tentativas mexicanas foram muito curtas e sanguinolentas), o Brasil constituiu palco privilegiado, nas Américas, para essa experiência social. A propósito da vida cultural do Rio de Janeiro, no início da década de 1870, escreveu Angela Alonso (1969): “A boa sociedade se encontrava nos teatros, como o de São Pedro, na praça do Rossio. No Casino Fluminense dançavam-se quadrilhas; schottish; polca; mazurca e valsa. O clube Mozart tinha serões, com a presença da família imperial, e no clube Beethoven havia recitais de música de câmara de Chopin (1810-1849), Carl Maria von Weber (1786-1826), Mendelssohn (1809-1847) – mas a moda eram os italianos, suas óperas e especialmente Rossini (1792-1868). O epicentro da vida social eram os salões. Neles, Quincas, o Belo, reinou. Os dotes naturais, o jeito faceiro e o requinte da última moda fizeram dele um partido desejado. Recitava madrigais às moças e ganhava a fama de sedutor, como Juca Paranhos (1845-1912), filho do visconde de Rio Branco (1819-1880), o então todo-poderoso chefe de gabinete” [Alonso, 2007: 32].
É bem verdade que algo de taciturno rodeava a corte de Dom Pedro II (1825-1891), austero por natureza e pela importância que o Imperador conferia à vida familiar e aos estudos. Mais do que grandes festas no Palácio Imperial, o Monarca preferia pequenas reuniões com familiares e amigos íntimos. Mesmo assim, ou talvez justamente por essa característica de austeridade imperial, a sociedade abria lugar para que, nos salões mantidos pela nobreza e pelos altos funcionários do Império, se vivessem as pequenas glórias da vida de corte. “Essa abdicação da suntuosidade cortesã pela família imperial – frisa Angela Alonso – pulverizou a vida social em salões particulares. A pequena envergadura da boa sociedade obrigava a uma rotação dos dias da semana entre os anfitriões, de modo a minimizar a competição pelos convivas. A condessa de Barral, Luísa Margarida de Barros Portugal (1816-1891) preceptora das princesas e amante do imperador, dirigia uma pequena corte, para onde afluíam políticos em busca de favores imperiais. No salão da marquesa de Abrantes, em Botafogo, bailes, concertos, jogos, representações e tertúlias atraíam diplomatas, políticos, homens de letras e de negócios. Havia distinções partidárias. Os conservadores iam ao barão de Cotegipe, João Maurício Wanderley (1815-1889), encontrar artistas e diplomatas, em jantares seguidos de voltarete, dança, poesia e música. Os liberais visitavam Francisco Octaviano (1825-1889), aonde os letrados – José de Alencar (1829-1877), Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), Bernardo Guimarães (1825-1884), Alfredo Taunay (1843-1899), Machado de Assis – iam ler trechos de obras em andamento” [Alonso, 2007: 33].
Como se situava a vida da família Nabuco nesse contexto de corte? Diríamos que com uma dignidade austera, que lembrava os hábitos imperiais, mas sem descuidar o refinamento da melhor tradição aristocrática. Os Nabuco não eram ricos. O Senador Nabuco de Araújo (1813-1878), patriarca da família, era conservador pernambucano de longa data e foi juiz de direito e deputado (entre 1843 e 1851), presidente da província de São Paulo (em 1851), ministro da Justiça do gabinete Paraná (entre 1853 e 1857) e do gabinete Abaeté (entre 1858 e 1859) e, por fim, senador do Império (em 1857). O pai de Quincas sempre desejou, como culminância da sua carreira política, chegar ao cargo de Chefe de Gabinete. Nunca conseguiu, em decorrência do predomínio dos denominados “emperrados” na chefia do Partido Conservador. Nabuco de Araújo, reformista, não encontrou o lugar almejado na cúpula do Partido. Desgostoso, afastou-se da sigla tradicional e, junto com Zacarias de Góes e Vasconcelos (1815-1877), fundou novo partido, a Liga Progressista, em aliança com os liberais moderados. Embora não possuísse título de nobreza, o senador Nabuco de Araújo poderia ser arrolado entre os que Oliveira Vianna (1883-1951) identificava como “Homens de Mil”, fiéis e incorruptíveis funcionários do Império [cf. Vianna, 1987: I, 300].
A principal biógrafa de Quincas caracteriza da seguinte forma a inserção da família do nosso autor no contexto dos salões da época: “Comparativamente pouco abastados, os Nabuco recebiam num salão menor, às quintas. Compensavam com elegância e austeridade, mantendo seu oratório aberto durante as recepções. Ali despontaram Sinhazinha e Iaiá, muito apreciadas como cantoras líricas, e debutou o Quincas. Foi assim, em casa, que ele conheceu os políticos brasileiros de proa, diplomatas estrangeiros e a alta sociedade. Virou habitué de todos os salões. Com o amigo Arthur, também rebento liberal, ia às soirées de Cotegipe. Apesar das marcas partidárias, a polidez com os adversários se impunha, uma exigência de bom-tom. Afinal, como diria em sua autobiografia, acima de quaisquer partidos está a boa sociedade. Nesse mundo reinava a etiqueta e a moeda forte eram a elegância e a arte da conversação. A maestria nesses quesitos elevou Quincas a estrela de primeira grandeza. Solidificou-se como sedutor incorrigível e irresistível. Voltou-se especialmente para as mulheres maduras (…)” [Alonso, 2007: 33-34].
Com uma delas ocorreu o seu primeiro affaire romântico. Tratava-se de uma senhora casada (Carolina Delfim Moreira). A paixão começara nos salões cariocas e prolongou-se no paraíso de Petrópolis. Completamente enamorado, Quincas confessava ao amigo Sancho, em setembro de 1871: “Quisera que a felicidade me venha sempre sob a forma que tomou para mim e que eu suponho a definitiva” [apud Alonso, 2007: 34]. A fim de evitar o escândalo, o marido traído viajou para a Europa com a família. Quincas teria gostado de seguir a amada. Formado em Ciências Sociais e Jurídicas pela Faculdade do Recife, em 1870, o jovem bacharel não quisera praticar a profissão à frente de um escritório de advocacia. Preferia empreender uma viagem – mesmo que romântica – à Europa, como, aliás, faziam os jovens aristocratas da época; mas os recursos familiares eram parcos, para lhe garantir longa permanência no Velho Continente. A hegemonia dos conservadores no poder, de outro lado, diminuía as chances de conseguir algum emprego oficial digno da sua estirpe. Procurou, junto ao ministro do Império, o conservador João Alfredo Correia de Oliveira (1835-1919), obter uma bolsa de estudos para “aprofundar seus estudos na Europa”. O ministro recusou a concessão da bolsa a Quincas com um argumento arrasador: “Sei que o moço quer pretexto para uma viagem romântica, acompanhando pessoa que já partiu, ou vai partir; e se eu não tivesse outros motivos para recusar a proposta, este seria peremptório” [apud Alonso, 2007: 35-36]. De nada valeram os bons ofícios do diretor da Inspetoria da Instrução Pública Primária e Secundária do Rio de Janeiro, Francisco Inácio Marcondes Homem de Mello (1837-1918), amigo do senador Nabuco de Araújo, nem sequer a intermediação do próprio Imperador. O austero ministro impôs a sua vontade. Funcionário público imperial era outra coisa.
Em 31 de agosto de 1873, o nosso autor partiu para a sua primeira viagem à Europa. No navio conheceu a jovem aristocrata, sobrinha do conservador Barão de Vassouras, Eufrásia Teixeira Leite, com quem iniciou tumultuado namoro, que se prolongaria por anos a fio, sem que tivessem chegado ao casamento. Ela, herdeira de grande patrimônio. Ele, aristocrata remediado. As diferenças econômicas teriam sido o motivo das dificuldades que o namoro teve. A primeira escala do jovem viajante foi Paris. Ali, pela mão de aristocratas brasileiros, amigos de seu pai, como Marcos Antônio de Araújo e Abreu, barão de Itajubá (1842-1897), circulou pelos mais importantes salões, tendo tido a oportunidade de conhecer figuras importantes como Adolphe Thiers (1797-1877), Jules Simon (1814-1896), Victor Schoelcher (1804-1893), Edmond Schérer (1815-1889), Édouard de Laboulaye (1811-1883), Ernest Renan (1823-1892), Hipólito Taine (1828-1893) e a velha baronesa e escritora Amandine Aurore Lucile Dupin (1804-1876), conhecida pelo pseudônimo de George Sand, com quem conversou sobre amenidades literárias e políticas.
Em junho de 1874, o nosso autor chegou a Londres. A majestade da city impressionou fortemente Nabuco. No entanto, ele ficou balançado entre a feminina Paris e a máscula capital britânica, Meca do capitalismo. Mas a balança pendia, no peito do jovem viajante, em favor da metrópole francesa. Quincas avaliava esta com o coração e Londres com a razão. Como, aliás, fazia com os seus inúmeros amores parisienses. Eufrásia, radicada na capital francesa, era a prima donna das suas preferências afetivas. As namoradas britânicas que teve, durante as várias permanências em Londres, eram pragmáticas demais para o jovem advogado.
Em Minha formação escreveu a respeito dessa ambiguidade, transportada para os respectivos povos, o francês e o inglês: “Às vezes me distraio a pensar que povo eu salvaria, podendo, se a humanidade se devesse reduzir a um só. Minha hesitação seria entre a França e a Inglaterra – aliás, sei bem que no começo do século quem eliminasse a Alemanha do movimento das ideias, da poesia, da arte, eliminaria o que ele teve de melhor. Entre a França e a Inglaterra, porém, fico sempre incerto. O meu dever seria, talvez, socorrer a França. Se madame Récamier (1777-1849) e eu estivéssemos a nos afogar, qual de nós duas o senhor salvaria? – perguntou uma vez madame de Staël (1766-1817) ao seu amigo Talleyrand (1754-1838). Oh! Madame, vous savez nager. A Inglaterra, também, sabe nadar” [Nabuco, 2005: 70].
Mesmo a Inglaterra sabendo nadar, ou talvez por isso, desde o início, a preferência prática de Nabuco foi por Londres e não por Paris. Foi na city onde o nosso autor passou a maior parte dos anos vividos na Europa, antes da sua final destinação estado-unidense. Vale a pena acompanhar o raciocínio de Nabuco em relação à sua apreensão de ambas as metrópoles, que é uma apreciação das duas culturas, a inglesa e a francesa, muito semelhante, aliás, à que já tinha efetivado François Guizot (1787-1874) nessas duas magistrais lições (13 e 14) da sua Histoire de la civilisation en Europe.
O nosso autor escreveu, a respeito: “O gênio francês tem todos os raios do espírito humano, principalmente os raios estéticos; o gênio inglês não os tem todos, tem até uma opacidade singular nos focos do espírito, que merecem o nome de franceses, em quase todos os que merecem o nome de atenienses. A Inglaterra – a associação de ideias tem sido muitas vezes feita – é a China da Europa; isto é, tem uma individualidade inamolgável, incapaz de tomar a fisionomia comum. Latinos, alemães eslavos formarão uma só família, por muitíssimos traços comuns, antes que o inglês deixe de ser um tipo sui generis, à parte do tipo coletivo europeu. Por esse motivo, a França, só, representaria melhor a humanidade do que a Inglaterra; há nela mais atributos universais, maior número de faculdades criadoras, de qualidades de tronco, maior soma de hereditariedade humana, de possibilidades evolutivas portanto, do que no particularismo e no exclusivismo inglês. Em compensação, a raça inglesa parece ser mais sã, mais elástica; ter maior vigor mesmo de gênio e de criação; maior provisão de vida e de força – ainda que a força sem a imaginação e a cultura (que na Inglaterra tem sido, em grande parte pelo menos, estrangeira) possa degenerar em brutalidade e egoísmo. Estão aí as razões da minha hesitação, quando imagino um novo dilúvio universal e me pergunto que país, nos mais altos interesses da inteligência humana, mereceria o privilégio de construir a arca” [Nabuco, 2005: 70].
Londres, para Nabuco, era grande como grande foi a Roma dos Césares. “Qualquer que seja a explicação, – escreveu em Minha formação – o fato é que nunca experimentei esse prazer de viver em Paris, que foi e é a paixão cosmopolita dominante em redor de nós. A grande impressão que recebi não foi Paris, foi Londres. Londres foi para mim o que teria sido Roma, se eu estivesse entre o século II e o século IV, e um dia, transportado da minha aldeia transalpina ou do fundo da África Romana para o alto do Palatino, visse desenrolar aos meus pés o mar de ouro e bronze dos telhados das basílicas, circos, teatros, termas e palácios; isto é, para mim, provinciano do século XIX, foi, como Roma para os provincianos do tempo de Adriano ou de Severo: a Cidade. Essa impressão universal, da cidade que campeia acima de todas, senhora do mundo pelo milliarium aureum, o qual no século tinha de ser marítimo; essa impressão soberana, tive-a tão distinta como se a humanidade estivesse ainda toda centralizada. O efeito dessa impressão de domínio foi uma sensação de finalidade, que somente Londres me deu (…)” [Nabuco, 2005: 70-71].
Porém, não foi a City, como monumento, foram as instituições políticas inglesas, todas elas criadas para garantir a liberdade dos cidadãos, as que mais fortemente impressionaram Nabuco. Após a sua permanência em Londres, o nosso autor passou a defender, com ardor, o modelo britânico de monarquia constitucional como o mais civilizado da Terra. As instituições do governo representativo, a magistratura e o papel simbólico da monarquia: eis os três elementos que constituíam a pedra de toque das instituições britânicas.
A propósito, escreve Nabuco: “O que deixa tão funda impressão na Inglaterra é, antes de tudo, o governo da Câmara dos Comuns: a suscetibilidade daquele aparelho, ainda perante as mais ligeiras oscilações do sentimento público, a rapidez dos seus movimentos e a força, em repouso, da reserva, que ele concentra. Mais ainda, porém, do que a Câmara dos Comuns, é a autoridade dos juízes. Somente na Inglaterra, pode-se dizer, há juízes. Nos Estados Unidos a lei pode ser mais forte do que o poder; é isso que dá à Corte Suprema de Washington o prestígio de primeiro tribunal do mundo, mas só há um país no mundo em que o juiz é mais forte do que os poderosos: é a Inglaterra. O juiz sobreleva à família real, à aristocracia, ao dinheiro e, o que é mais do que tudo, aos partidos, à imprensa, à opinião; não tem o primeiro lugar no Estado, mas tem-no na sociedade (…). Esta é, a meu ver, a maior impressão de liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de igualdade de direitos ou de pessoa na mais extrema desigualdade de fortuna e condição é o fundo da dignidade anglo-saxônia” [Nabuco, 2005: 83].
Fazendo especial referência à instituição monárquica, eis a apreciação entusiasmada de Nabuco, convertido, após a sua primeira viagem a Londres, em incondicional defensor da monarquia constitucional: “Foi na Inglaterra que senti que nunca a nossa raça atingiu o mesmo ponto de altivez moral que em uma Monarquia. Com o privilégio dinástico, que também o meu radicalismo rejeitava, eu agora o via bem, não se fazia no século XIX senão aproveitar a tradição nacional mais antiga e mais gloriosa para neutralizar a primeira posição do Estado. A concepção monárquica ficava sendo esta: a do governo em que o posto mais elevado da hierarquia fica fora de competição. Era uma concepção simples como a da balança, como a do eixo. Nenhum direito se transformou tanto no decurso deste século no Ocidente como o direito real, que de divino passou a ser passivo. O rei da Inglaterra, se quiser influir na política com as suas ideias próprias e a sua iniciativa, tem primeiro de abdicar e – se a hipótese é admissível – fazer-se eleger à Câmara dos Comuns ou tomar a direção da Casa dos Lordes. Entre o czar e a rainha Vitória a diferença de autoridade é infinitamente maior do que entre a rainha Vitória e o presidente dos Estados Unidos. O governo pessoal é possível na Casa Branca; é impossível em Windsor Castle” [Nabuco, 2005: 84-85].
II – Uma pauta política: O abolicionismo.
Quincas entrou, tardiamente, no universo da política partidária. Preferiu, antes dela, a tarefa de correspondente de imprensa, como colunista do Jornal do Comércio em Londres. Deu preferência, outrossim, aos trabalhos como consultor de empresas, atividade que desempenhou juntamente com o jornalismo econômico. Também escreveu artigos jornalísticos sobre política, mas em menor escala, em decorrência do fato de o jornal para o qual escrevia estar interessado mais naquilo que tangia aos negócios. Quincas exerceu, outrossim, funções públicas: primeiro, como adido da Legação Brasileira nos Estados Unidos (entre junho de 1876 e fevereiro de 1878) e, depois, na mesma função junto à Legação em Londres (entre fevereiro e abril de 1878). Morto o pai nesse ano, Nabuco viu-se obrigado a regressar ao Brasil e ocupar a trincheira parlamentar que o seu progenitor tinha dignificado durante décadas, como senador do Império. Em 5 de setembro, o nosso autor elegeu-se deputado.
Embarcado na carreira política pouco à vontade, Nabuco passou a buscar um norte para a mesma, na escolha de algum tema que lhe servisse de bordão parlamentar. Curiosa a situação do Quincas, muito parecida, aliás, com a vivida, décadas atrás, pelo jovem advogado Alexis de Tocqueville (1805-1859), que procurava uma atividade diferente daquela para a qual foi encaminhado pela família, como magistrado. Descontente com a dificuldade oratória para as funções de juiz, Tocqueville partiu, em 1831, para viagem de pesquisa sobre o sistema penitenciário americano, em companhia do amigo Gustave de Beaumont (1802-1866). Nove meses depois, o ainda magistrado desembarcava na França com um ensaio sobre o tema mencionado, mas, também, munido do rascunho da obra que marcaria a sua vida daí para frente: A democracia na América (1833). O jovem advogado, deixada a magistratura que exercia em Versailles, dedicou-se aos estudos sobre o grande tema da democracia moderna, que lhe deu inspiração para a sua participação no parlamento como deputado. Diferentemente de Tocqueville, Quincas estava bem dotado para a oratória parlamentar e elaborou acurada análise acerca de um tema de momento: a escravatura, que deu ensejo ao seu livro O abolicionismo. Na defesa das teses levantadas na obra, Joaquim Nabuco virou figura de prol do parlamento brasileiro e se firmou, outrossim, como ativista humanitário em nível internacional.
Marco Aurélio Nogueira (1949) sintetizou, com claridade, nos seguintes termos, a contribuição do nosso autor ao debate parlamentar sobre a escravatura: “O abolicionismo e Nabuco se completaram. A causa da libertação ajudou a amortecer o impacto da política imperial sobre o jovem deputado (impedindo que ele fosse, por exemplo, cooptado) e nele acabou por encontrar um de seus mais brilhantes e talentosos porta-vozes. Como parlamentar e propagandista – e, nos momentos eleitorais, eficiente agitador -, Nabuco deu o melhor de si ao abolicionismo, ajudando decididamente a fazer com que o movimento adquirisse operacionalidade política e os protestos das senzalas ecoassem no parlamento, nos jornais, nas cidades. Nele, pôde ser verdadeiramente radical, ir às raízes da sociedade. Personalidades, instituições, partidos, doutrinas e procedimentos, nada escaparia à sua crítica ferina e veemente, mas sempre ponderada; saberia como poucos aliar à denúncia apaixonada dos crimes da escravidão uma análise abrangente da estrutura social brasileira e dos grandes problemas nacionais. Beneficiado pelo renascimento do liberalismo brasileiro, que naquela década agitava-se como um todo, Nabuco não se limitaria a ser um mero repetidor das plataformas partidárias ou dos jargões abolicionistas: seria um renovador, um ideólogo. E acabaria por se aproveitar (não se sabe com que dose de consciência) da formação inglesa recebida ao longo dos anos 70, que lhe permitirá manter saudável distância do liberalismo mesquinho e limitado que se praticava no Brasil. Pôde, com isso, aderir de forma intransigente e não conservadora à luta pela emancipação dos escravos – uma causa grandiosa e humanitária até então desfocada pelo viés liberal-conservador predominante dos partidos e no sistema político” [Nogueira, 1988, apud Nabuco, 2000: 10-11].
Uma breve anotação acerca da forma em que Nabuco utilizou as fontes inglesas. A magnífica biografia escrita por Angela Alonso deixa claro que o nosso autor louvou-se, conscientemente, na questão abolicionista, de duas fontes: de um lado, os discursos reformistas de Gladstone, que se encaminhavam em direção da democratização das instituições (sem pregação republicana e mantendo os institutos da monarquia constitucional); de outro lado, a plêiade de autores britânicos, irlandeses e americanos que, a partir da The British and Foreing Anti-Slavery Society, fundamentavam a luta abolicionista, pelo mundo afora, como uma questão de ordem moral. A Sociedade Brasileira contra a Escravidão (SBCE), nascida em 1880, na casa dos Nabuco, no Rio de Janeiro, recolheu essa herança moderada (as grandes mudanças sociais realizam-se com reformas liberais, à la Gladstone, não com revoluções, à la Karl Marx), bem como a idéia dos anti-escravagistas anglo-saxões da criação de uma rede política internacional que pressionasse o governo brasileiro em prol da abolição [Cf. Alonso, 2007, p. 116 seg.].
Quais foram as teses centrais da obra de Nabuco, O abolicionismo, publicada pelo autor, em Londres, em 1883? Essas teses (que passaram a inspirar a pregação parlamentar do nosso autor, ao longo da segunda parte da década de 1880), são as seguintes, nas palavras dele:
“Queremos acabar com a escravidão (…) pelos seguintes (motivos): 1- Porque a escravidão, assim como arruína economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompe-lhe o caráter, desmoraliza-lhe os elementos constitutivos, tira-lhe a energia e a resolução, rebaixa a política; habitua-o ao servilismo, impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitais do seu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre classes, produz uma aparência ilusória de ordem, bem-estar e riqueza, a qual encobre os abismos de anarquia moral, de miséria e destruição, que do Norte ao Sul margeiam todo o nosso futuro. 2 – Porque a escravidão é um peso enorme que atrasa o Brasil no seu crescimento em comparação com os outros Estados sul-americanos que a não conhecem; porque, a continuar, esse regime há de forçosamente dar em resultado o desmembramento e a ruína do país; porque a conta dos seus prejuízos e lucros cessantes reduz a nada o seu apregoado ativo, e importa em uma perda nacional enorme e contínua; porque somente quando a escravidão houver sido de todo abolida, começará a vida normal do povo, existirá mercado para o trabalho, os indivíduos tomarão o seu verdadeiro nível, as riquezas se tornarão legítimas, a honradez cessará de ser convencional, os elementos de ordem se fundarão sobre a liberdade, e a liberdade deixará de ser privilégio de classe. 3 – Porque só com a emancipação total podem concorrer para a grande obra de uma pátria comum, forte e respeitada, os membros todos da comunhão que atualmente se acham em conflito, ou uns com os outros, ou consigo mesmos: os escravos, os quais estão fora do grêmio social; os senhores, os quais se veem atacados como representantes de um regime condenado; os inimigos da escravidão, pela sua incompatibilidade com esta; a massa inativa da população, a qual é vítima desse monopólio da terra e dessa maldição do trabalho; os brasileiros em geral que ela condena a formarem, como formam, uma nação de proletários” [Nabuco, 2000: 91-92].
Em síntese, o que Nabuco pregava era, apenas, que o Brasil se modernizasse plenamente, alargando a conquista da liberdade a todos os habitantes deste imenso país e adotando, de forma plena, uma economia de mercado que preservasse as instituições de governo representativo existentes no Império. Não aderia à pregação republicana. Exorcizava, pioneiramente, a deletéria tese, nascida nos arraiais do jacobinismo e do socialismo revolucionário, da divisão definitiva da Nação brasileira em campos irreconciliáveis que confrontassem, em fratricida luta, negros contra brancos, empresários contra empregados, silvícolas contra habitantes das cidades, etc. Pena que o nosso autor não tivesse compulsado os escritos de Alexis de Tocqueville (com os quais, certamente, encontraria plena identificação, de forma semelhante à simpatia que despertaram nele os discursos de Gladstone). É que os tempos eram outros e Tocqueville, nos idos de 1870, tinha se ocultado nos canais subterrâneos das tradições que não são esquecidas, mas que dormitam à espera de um novo amanhecer: o grande escritor francês somente seria redescoberto no século XX, ao ensejo da luta heroica da Europa, arrasada por duas guerras mundiais, na trilha do combate entre o totalitarismo e a Liberdade.
Concluamos.
Qual foi a relevância de Joaquim Nabuco para o pensamento brasileiro? Responderia brevemente: a lição de moderação liberal nas reformas a serem executadas, a defesa das instituições que – como a monarquia e o governo representativo – garantiam o exercício da liberdade por parte de todos os cidadãos, a coragem para lutar por aquilo que ele considerava questão de justiça (a abolição da escravatura, notadamente) e, em matéria de política externa, um sadio realismo que consultava os interesses da Nação, não apenas as mesquinhas perspectivas partidárias ou de pessoas. Este último ponto exigiria que fosse analisada, com detalhamento, a passagem de Nabuco pela embaixada brasileira em Washington, no final da sua brilhante corrida de estadista.
Façamos, para terminar, uma apertada síntese do que significou a lição de diplomacia deixada pelo nosso autor. Duas tendências da política externa brasileira foram delineadas no início da República: o Brasil deveria privilegiar, no seu relacionamento internacional, a perspectiva sul-americana, em decorrência da urgência de delimitação clara das nossas fronteiras, a fim de evitar confrontos ulteriores. Esta foi a opção adotada pelo ministro do exterior, o Barão do Rio Branco. A segunda tendência, formalizada por Nabuco, consistia em privilegiar, na nossa política externa, a perspectiva de pan-americanismo que se desenhava nesse momento e que ia colocar o Brasil no contexto da globalização da época, ao abrigo da doutrina Monroe. O nosso autor achava que essa opção não conflitava com a primeira; mas destacava que não poderia o Brasil se fechar numa opção sul-americana, que comprometesse a abertura ao grande mercado que se desenhava, o norte-americano, e que nos trancafiasse, ressentidos, no pequeno universo da nossa vizinhança. Pareceria que o nosso primeiro embaixador em Washington tivesse enxergado os impasses ensejados por uma visão terceiro-mundista, ao ensejo de uma Unasul contraposta à Organização dos Estados Americanos. Tremenda atualidade das lições diplomáticas de Joaquim Nabuco!
Uma última observação. Cometi a injustiça de não analisar, nestas páginas, uma das obras-mestras do nosso autor, Um estadista do Império. Problema de tempo e de espaço que espero futuramente equacionar. Mas valha, apenas, destacar uma lição que se depreende dessa magna obra: a defesa desassombrada do Segundo Reinado, não na trilha de um saudosismo vácuo, mas no caminho construtivo de mostrar o quanto essa experiência poderia iluminar a nossa vida republicana. O Império, para Nabuco, colocou em alto a ideia da necessidade de uma aristocracia sobre a qual tivesse estabilidade o serviço público. Ele próprio trocou a aristocracia dos salões pela encontradiça nos círculos intelectuais, como a Academia Brasileira de Letras. Ora, o nosso autor adaptou essa consideração às exigências republicanas, quando da sua fecunda passagem pela embaixada de Washington, cargo no qual culminou a sua brilhante carreira – e a vida.
Fez algo semelhante ao que Tocqueville pensou quando, ao ensejo da descoberta da democracia americana, percebeu que, nos Estados Unidos, a velha aristocracia de origem feudal foi substituída pela ideia de idoneidade e de responsabilidade nas funções de gestão do Estado. Desde os Selected Men das localidades até os Ministros de Estado, os Magistrados da Suprema Corte, os Congressistas e o Chefe do Executivo, o pensador francês encontrava, em todos eles, a exigência, de parte da sociedade, de uma capacitação para o exercício do cargo, bem como a pressuposição de que todos eles fossem responsáveis perante os cidadãos, não ficando ninguém fora do domínio da lei. Ora bem, essa foi exatamente a lição que Nabuco tirou do estudo do sistema inglês, bem como da sua adaptação à democracia americana. Em todos esses contextos, como, aliás, no desenho que traçou do ideal de regime republicano brasileiro (tardia e pragmaticamente aceito), o pensador pernambucano destacou os dois ideais de capacidade e de responsabilidade dos funcionários públicos, sem exceções. Bela lição de civilidade, muito atual em momentos em que o Brasil se debate no populismo, que reforça a velha tradição patrimonialista.
BIBLIOGRAFIA
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NOTAS
[1] Este ensaio foi apresentado na semana comemorativa do centenário da morte de Joaquim Nabuco, realizada pelo IHGB em Junho de 2010, com o título: “Joaquim Nabuco e o pensamento brasileiro”.
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