Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Entre as tarefas centrais a que se dedicam as “mentes pensantes” de um país, está a de avaliar o substrato histórico-cultural fornecido pela sua própria comunidade política e meditar sobre a extensão e natureza das mudanças necessárias. A isso se propõe a nova obra Poder e Federalismo no Brasil e nos EUA, lançamento da editora Lumen Juris, de autoria de João Paulo Seixas.
Advogado, bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis em graduação sanduíche com a Universidade do Porto, pós-graduado latu sensu em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, João Paulo é um leitor e colaborador do Instituto Liberal (IL), já tendo contribuído com artigos para esta instituição. Em sua gentil dedicatória no exemplar que recebi, João afirma que o trabalho é muito influenciado pelos autores que descobriu através do IL, como Friedrich Hayek e Bertrand de Jouvenel, ambos fundadores da Sociedade Mont Pèlerin.
Indiscutivelmente, a bibliografia farta empregada envolve diversas escolas econômicas liberais, desde a Teoria da Escolha Pública até a Escola Austríaca, com destaque para as abordagens do pensamento da escola Neoinstitucionalista, que procura avaliar o impacto das instituições na determinação dos resultados sociais e políticos. Não poderia ser diferente, já que o foco é fazer, de forma séria e devidamente aprofundada, uma comparação que o senso comum está muito habituado a executar: a comparação entre o Brasil e os EUA.
Inspirando-se ambos, ao menos em termos, no que se convencionou chamar “federalismo”, definido pelo prefaciador Guilherme Peña de Moraes como “descentralização do poder imanente ao Estado em diversos entes federados, pela qual se atribuiria legitimidade a essas unidades para se auto-organizarem, de modo a conservar a cultura local sem prejuízo da união indissolúvel com o poder central que lhe confere essa prerrogativa” – em síntese, uma união de estados em torno de um Estado central, com relativa autonomia, mas formando uma mesma comunidade política -, os dois grandes países americanos apresentaram conformações bem diferentes dessa organização política, com consequências também bastante diferentes. O estudo procura investigar o que podemos aprender com o exemplo dos vizinhos do norte.
Produzido por um autor da área do Direito, mas que realiza uma pesquisa essencial nas áreas da História e da Ciência Política para dar conta de seu tema, o livro merece reconhecimento pelo esforço por apresentar, em um trabalho de dimensões reduzidas, uma visão bastante abrangente da questão. Tanto que o primeiro dos três grandes capítulos que perfazem a obra não aborda diretamente a questão central da diferença entre os federalismos brasileiro e americano, mas esboça uma vasta genealogia das reflexões e organizações históricas do ponto donde parte toda a discussão: o problema do poder.
O Poder: Teoria de seu exercício e de sua contenção aborda, desde os tempos mais remotos, os critérios de legitimação dos poderes nas sociedades organizadas, transplantados de uma soberania de fundo mitológico para uma soberania popular, constituindo-se uma burocracia “investida pela vontade popular” que “passa a enxergar o Poder por sua suposta finalidade: promover o bem comum”. Apesar da justificativa, o poder cede a uma tendência implacável de aumento e centralização, verificada na formação dos Estados modernos. Isso motivou o desenvolvimento de ferramentas de controle, regramento e distribuição desse poder; tal projeto está na gênese do liberalismo e do federalismo, este último com a clara pretensão de reduzir o poder central.
Em Origens e Consequências da Centralização do Poder Político no Brasil e Federalismo e Organização do Estado: a Comparação do Modelo Americano e o Brasileiro, os dois capítulos restantes, João Paulo se propõe a traçar um histórico da dinâmica do conceito de federalismo nas duas nações. Além de recorrer aos clássicos do liberalismo, o autor recorre aos autores da Escola Weberiana brasileira e aos principais ensaístas e sociólogos que estudaram a formação de nossa sociedade para identificar o legado patrimonialista que desenvolvemos. Esse legado segue oferecendo obstáculos ao enraizamento da impessoalidade de todos perante a lei e ensejando a apropriação das instituições pelas autoridades – como no caso de Getúlio Vargas, que se tornou basicamente o dono do Brasil.
Passeando pelos trabalhos de Raymundo Faoro, Roberto DaMatta, Antonio Paim, Ricardo Vélez Rodríguez, entre outros importantes autores nacionais, ao lado de Ludwig von Mises e Hannah Arendt, bem como pelos novos autores liberais e conservadores como Flávio Gordon e Bruno Garschagen, para permitir ao leitor um relance da riqueza bibliográfica da obra, João Paulo demonstra que nossa História é marcada por aberturas e fechamentos de regimes, sempre possibilitados pela permanência das estruturas patrimonialistas e do “estamento burocrático” de que falava Faoro – ou das oligarquias que permanecem no gozo de privilégios e facilidades mesmo no regime democrático, de acordo com o que o sociólogo Robert Mitchels chamou de “Lei de Ferro da Oligarquia”: sempre, no fundo, poucos acabam dando as cartas. “A centralização é elemento indispensável para que se implementem medidas antidemocráticas, antimajoritárias e para que sejam sufocados todos os outros meios de ação individuais ou coletivos que poderiam resistir à tirania. É certo que a Constituição de 1988 obteve significativo avanço nesta seara, mas ainda se encontra parcialmente contaminada pela mentalidade centralizadora que permeia a história brasileira”, pontua o nosso autor.
Desde o Marquês de Pombal, essa índole de centralização permanece poderosa, fazendo com que nosso federalismo formalista se revista na prática – às vezes mais, outras menos, ora concentrando todo o poder político nas mãos de um regime ditatorial, ora mantendo uma profunda centralização tributária mesmo em um regime democrático – das características de um Estado essencialmente unitário. Nosso federalismo é explicado como uma concessão limitada feita pelo poder central já instituído, enquanto o federalismo americano, associado ao desenvolvimento de instituições inclusivas e estimulantes ao desenvolvimento da riqueza, da impessoalidade perante a lei e da livre iniciativa, partiu de um movimento de agregação deliberada dos estados para se organizarem em torno de um centro, preservando significativa cota de autonomia original.
Isso tecnicamente significa dizer que nosso federalismo teve formação centrífuga e o federalismo americano teve formação centrípeta. A conclusão de João Paulo é que todo esse legado político-cultural tornou insuficiente, no Brasil, a preocupação federalista, que não foi capaz de conter a tendência à centralização do poder. Porém, dentro do que preconiza a Escola Institucionalista de Economia, “reformando as instituições, é possível produzir os incentivos adequados para criação de uma sociedade mais livre, dinâmica, rica e plural”. O caminho para reformar o federalismo brasileiro, tornando-o mais efetivo, aproximando “o Poder do indivíduo, para que floresçam instituições inclusivas e a prosperidade”, passaria por apresentar uma reflexão crítica à visão ilusória do poder, atuante através do Estado, como uma força de suma benevolência, assimilando a necessidade de ceticismo na vida pública.
Se me fosse dado fazer alguma consideração crítica, diria apenas que o autor tornaria sua abordagem ainda mais completa se, ao citar, como oportunamente o fez, o Visconde de Uruguai, grande estadista do Império brasileiro, ressaltasse que, figurando entre os integrantes do Partido Conservador, este autor defendia a necessidade, à época, de uma maior centralização política, distinguindo-a da centralização administrativa, que deveria ser combatida. De toda sorte, dentro do debate atual, as preocupações de João Paulo são as mais genuínas preocupações liberais.
Sua conclusão é a mesma do professor Antonio Paim, que, em A Querela do Estatismo, esboçaria a agenda prática dos liberais contemporâneos como perpassando a revisão da estrutura administrativa da União – o que envolve sua relação com os estados, isto é, o federalismo – e o labor teórico pela reconexão com a tradição liberal brasileira e o combate à agenda do patrimonialismo modernizador. Que mais trabalhos surjam com esse propósito, a mais persistente urgência de nossos dias.
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