Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Era 1982. Ocorria o debate eleitoral dos candidatos ao governo do Rio de Janeiro, nos estertores do regime militar. Miro Teixeira, então no PMDB, atacou a professora Sandra Cavalcanti, ex-presidente do Banco Nacional de Habitação, parlamentar, constituinte e ex-secretária de Serviços Sociais do governo Carlos Lacerda – que, em tempos sem UDN, por contingências da política, concorria ao cargo pelo PTB.
Teixeira vociferou que a professora Sandra havia mandado jogar no Rio da Guarda mendigos e moradores de rua durante o governo Lacerda. Relata o jornalista Hélio Fernandes que, no debate seguinte, a professora Sandra chegou com todas as acusações de Miro Teixeira redigidas de forma organizada por um advogado e o desafiou a assinar em público. Ele rapidamente assinou sem ler para demonstrar firmeza. Foi processado, condenado e pediu desesperadamente por uma conciliação, generosamente concedida, para que seu nome fosse limpo.
Essa é apenas uma história a ilustrar a personalidade forte e destemida da professora Sandra Cavalcanti, uma figura histórica ímpar que merece maior atenção dos interessados em vasculhar os vultos de dignidade do nosso passado. A mentira de Miro Teixeira, porém, entre outros fatores, sepultou a candidatura de Sandra, facultando o triunfo de um de seus maiores adversários desde os tempos históricos da UDN, aquele que ela considerava um dever de Estado combater: o demagogo Leonel Brizola, com seu “socialismo moreno”.
O que foi do Rio governado por Brizola, já sabemos bem. Que teria sido se o projeto político de Sandra Cavalcanti tivesse triunfado? Essa é uma questão que me ocorre principalmente por dois motivos. O primeiro, naturalmente, o fato de que, sendo autor do livro Lacerda: A Virtude da Polêmica, ciente de que lamentavelmente o lacerdismo – pujante entre os anos 50 e 60 – não conseguiu sobreviver sob a forma de uma corrente político-partidária organizada com a destruição de seu grande líder, vejo na professora Sandra o exemplo mais expressivo de uma continuidade política em relação a Lacerda, individualmente e dentro das possibilidades da Nova República. Ela foi, sem dúvida, a lacerdista mais importante depois do fim de Carlos Lacerda.
O segundo, o fato de que é uma das poucas personalidades históricas brasileiras, dessa epopeia nacional sobre a qual tanto me debruço, que tenho a honra inestimável de conhecer pessoalmente. Amavelmente recebido por ela em sua residência, aos 93 anos – então às vésperas de completar 94 -, pude obter dela palavras de reconhecimento e encorajamento, um texto de orelha precioso para meu livro sobre seu amigo e antigo líder e o privilégio de apertar as mãos e beijar o rosto da História. Travei contato direto com sua altivez, verve, inteligência e lucidez.
Recebi, com isso, como presente direto, seu livro Política nossa de cada dia. Trata-se, nada mais, nada menos, que, em linguagem didática e direta, um autêntico programa de governo, com suas ideias para o estado do Rio – e, de maneira geral, para o país -, publicado precisamente naquele ano de 1982. Esse documento histórico permite um vislumbre do que poderia ter sido. Que ideias inspiravam Sandra Cavalcanti, esse exemplo peculiar no passado nacional de grande liderança feminina avessa às teses da esquerda?
Em linhas gerais, pude constatar a afinidade da professora com as principais teses de Carlos Lacerda. Ela exibe em seu trabalho o reconhecimento da importância das lideranças carismáticas, mesmo em uma democracia, rejeitando a identificação disso com qualquer pensamento autoritário. Ressalta sua aversão à tecnocracia e ao “economês” insosso. Influenciada pela democracia cristã, tal como Lacerda, defendeu a existência de bancos estaduais de caráter estatal, ainda que modestos, voltados a fornecer crédito exclusivamente para ajudar pequenos empreendimentos. Defendeu a necessidade de aumentar a participação popular, das associações civis, até das associações de moradores, no processo político e social. Sustentava a importância de encarar as diferenças entre a Região Metropolitana do Rio e as demais regiões. Defendeu também a preocupação com o meio ambiente e o transporte ferroviário e combateu os preconceitos e temores relativos à energia nuclear (ainda combate, como me disse pessoalmente). Segurança, energia, transporte, educação, habitação, todos os principais tópicos concebíveis estão cobertos em seu livro.
Em vez de um resumo muito detalhado, porém, achei por bem trazer ao leitor citações que demonstram os aspectos mais liberais do pensamento de Sandra Cavalcanti. Eles permitirão uma avaliação precisa da oportunidade que perdemos, cá no Rio, escolhendo o filhote da ditadura Vargas para nos governar. Senão vejamos:
“O ensino, num mundo livre, de pessoas livres, também deve ser livre. Ou seja, o ensino deve ser variado, deve retratar as múltiplas filosofias e doutrinas que, numa democracia, aprendem a conviver civilizadamente. É típico dos Estados totalitários querer manipular as escolas, fazendo desde cedo a cabeça das novas gerações. É exatamente nos países dominados pelo partido único, pela doutrina única e pela casta única que o ensino é estatal em todos os níveis, sem a menor discrepância. Nos chamados países livres, onde as criaturas ainda são tratadas como seres racionais, dotados de vontade própria e inteligência, a educação é múltipla. As escolas seguem várias correntes de pensamento, de acordo com os segmentos diferenciados da sociedade.”
“Cada vez que vejo surgir uma nova entidade pública para fazer algo que a iniciativa privada poderia perfeitamente executar, já sei que o nosso dinheiro vai ser jogado fora.”
“O grande efeito das empresas estatais é a sua tendência inexorável a abandonar os objetivos que determinaram a sua criação.”
“O atual modelo econômico do Brasil está muito mais perto do modelo socialista, preconizado pelas esquerdas caboclas, do que de um modelo que respeite a livre empresa. Ou seja: aqui, entre nós, o Estado é todo-poderoso de duas maneiras: pela imensa área que já ocupou e tomou para si e pela tirania que exerce impiedosamente sobre a iniciativa privada.”
“É preciso enraizar na nossa gente a ideia de que nós não dependemos do governo. Ele é que depende de nós.”
“O bicho deve ser posto fora da lista de contravenções. Deve ser enquadrado dentro de uma categoria qualquer das atividades privadas.”
“É só raciocinar um pouco para ver que a solução está à vista. Se não aproveitarmos a hora do álcool, perderemos o bonde da História. Na minha opinião, não se pode ficar esperando o que o governo vai fazer. Ele não vai fazer nada. Governo não deve mesmo fazer. A iniciativa privada é que tem que se mexer.”
“O Carnaval carioca é um bom exemplo disso. Todos os anos a coisa se repete. Gastos gigantescos para preparar o local dos desfiles e irregularidades flagrantes nas concorrências. (…) No dia em que o desfile puder ser empresado por grupos especializados em turismo, shows e grandes espetáculos, só nesse dia é que a corrupção nos ingressos e um Carnaval de privilégios dos altos burocratas vai acabar. Carnaval não é com o governo! Já basta o carnaval que eles fazem o ano inteiro na vida da gente… Carnaval é assunto de iniciativa privada. (…) É assunto que interessa ao turismo, à hotelaria, aos clubes, aos restaurantes, aos bares, às empresas de serviços, aos figurinistas, aos cabeleireiros, às modistas, às escolas de samba, aos ranchos, aos cordões carnavalescos, às associações recreativas (…) Enfim, ao povo e às suas mais legítimas expressões comunitárias, comerciais, artísticas e culturais. Portanto, se um grupo privado quisesse construir e explorar uma passarela do samba, por que não? Se amanhã um grupo privado se instrumentasse para organizar o Carnaval, por que não? (…) Seria ideal a construção de uma passarela do samba a cargo de um grupo privado que viesse a arcar com todas as despesas do empreendimento. (…) Se o Carnaval do Rio continuar a ser assunto de repartição pública, estamos fritos!”
“Alcançar a verdade orçamentária significa discriminar adequadamente a despesa. Eliminar orçamentos paralelos. Saber quanto se gasta com o funcionalismo, sem escamotear os gastos com assessorias e privilégios. Significa eliminar obras suntuosas e desnecessárias. Acabar com a mania do canteiro de obras, pois governar não significa placas e inaugurações.”
“Mas também será preciso estabelecer as linhas de uma reforma, com o espírito de atuar na descentralização dos recursos, acabar com a situação vigente de União rica e Estado pobre.”
Em sua conclusão, por fim, ela cita elogiosamente o social liberal José Guilherme Merquior. Que me dizem? Foi melhor ter escolhido Brizola e Darcy Ribeiro? Pois é…