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Por Jocinei Godoy, publicado pelo Instituto Liberal
Era uma vez um tempo em que a barbárie imperava. Mulheres, escravos, vencidos em guerras, pobres, deficientes físicos, leprosos, etc., não tinham vez. Suas vidas não tinham qualquer valor perante as pessoas mais privilegiadas, a depender da sociedade da qual faziam parte. Nesta época, mesmo a razão grega não foi capaz de humanizar de forma integral as mais diversas relações sociais estabelecidas em seu território. Um exemplo disso pode ser encontrado em escritos consagrados dos maiores filósofos gregos do período antigo, Platão e Aristóteles. Ambos defenderam o infanticídio. Platão escreveu na República sobre a aprovação da prática do infanticídio[1]. Aristóteles, do mesmo modo, em sua obra Política, defendeu que as crianças nascidas com deformações físicas não deveriam viver[2].
É claro que estes pontos não invalidam toda a contribuição que estes gigantes da filosofia legaram ao Ocidente. Porém, é inegável que, ao se observarem tais pontos, algumas questões desumanas, hoje centrais para a defesa da dignidade humana, eram tidas como defensáveis mesmo por estes dois baluartes da filosofia antiga. Não somente os gregos, mas o código legal romano permitia que os pais abandonassem seus filhos(as) com alguma fraqueza ou deformação (MANGALWADI, 2012, p. 352).
As atrocidades transformadas em entretenimentos, como nos jogos de gladiadores e atividades degradantes de prostituição, aconteciam em épocas em que a razão grega e o direito romano “iluminavam” as relações greco-romanas. A ideia de “olho-por-olho e dente-por-dente”, em que o agressor deveria ser punido da mesma forma ou com a mesma dor que ele causou a sua vítima, ainda era comum nas mais variadas civilizações antigas. Foi apenas com o advento da compaixão apregoada pela fé cristã que, verdadeiramente, o processo de humanização e de minimização da barbárie ocorreu.
O próprio pensador alemão mais paradoxal do século XIX, Friedrich Nietzsche (1844-1900), na obra Crepúsculo dos ídolos, dizia que o cristianismo é a religião antiariana por excelência, que o evangelho pregado aos pobres e humildes levou a uma insurreição conjunta das camadas baixas dos miseráveis e fracassados contra os superiores, de forma que a fraqueza da compaixão cristã venceu a força dos poderosos. Isso que dizer que, para além de uma tresloucada busca pela efetivação da vontade de poder, a humanidade se via agora sob o dilema presente no paradigma da compaixão cristã exposto pelos adeptos de um galileu fraco e crucificado (MANGALWADI, 2012, p. 348).
Obviamente, nem todos os adeptos de Cristo seguiram o elevado padrão ético por ele vivido e ensinado aos seus discípulos. Muitos, infelizmente, se utilizaram da religião como disfarce para levar a cabo seus anseios egoístas. Dito isso, conforme o tempo foi passando, mais e mais ações relativas à dignidade da pessoa humana, como a libertação de escravos, a valorização da mulher, a inserção da ética do cuidado na medicina de origem grega, dentre outras, foram sendo implementadas sob o firme fundamento da ética e compaixão cristãs. Foi o ideal cristão de amor a Deus e ao próximo que possibilitou a maior revolução de todos os tempos, em que uma vítima, mesmo inocente, a partir deste ideal, poderia olhar nos olhos do seu algoz e lhe conferir perdão.
Diante disso, e mesmo depois de toda a frágil argumentação filosófica de Schwartsman, em seu artigo “Por que torço para que Bolsonaro morra”, só posso torcer para que Schwartsman viva. Torço para que ele viva porque, graças à ética e compaixão cristãs, não mais vivemos no tempo da barbárie. Torço para que ele viva porque, mesmo aos moldes dos intelectuais que defendiam o nazismo e o comunismo, essa pobre alma carece de iluminação e perdão. É certo que uma sociedade altamente secularizada não dá conta desse tipo de compreensão. A cultura da compaixão só pode ser acessada por sociedades e indivíduos que se lançam para além de si mesmos, isto é, para o plano da transcendência.
Tanto o pobre Schwartsman como os que endossaram o seu artigo não compreenderam a beleza da compaixão e da ética cristã. Em suas parcas visões de mundo e de si mesmos, adotam e defendem filosofias defeituosas como o consequencialismo, fruto do utilitarismo ou do pragmatismo, ambas filosofias utilizadas para justificar – em parte – ações inescrupulosas como os genocídios ocorridos no século XX.
Por fim, torço para que Schwartsman viva para que ele encontre o verdadeiro sentido da vida. Torço para que ele perdoe e seja perdoado. Contudo, que ele possa se lembrar de que a sua própria razão ou seu próprio pathos não dão conta de tal reconhecimento. Como escreveu o filósofo e teólogo checo Tomáš Halík em seu livro Não sem esperança, o perdão é uma arte divina, nós a aprendemos de Deus, por nós mesmos jamais seríamos capazes de praticar o perdão.
Eis as razões por que torço para que Schwartsman viva.
[1] República 5.460c.
[2] A Política, A regulamentação dos casamentos e dos nascimentos.