Por que no Chile vemos a tentativa de um golpe contra a democracia, enquanto na Bolívia vimos uma legítima pressão popular pela saída de Evo Morales, o que interrompeu um golpe em curso? Qual a diferença entre ambos os casos? E por que a esquerda grita "golpe" no caso da derrubada de Morales, mas aplaude os baderneiros nas ruas chilenas contra Sebastian Piñera?
Dois textos publicados hoje ajudam a esclarecer os pontos. O primeiro deles é de Demétrio Magnoli, sociólogo com evidente inclinação à esquerda, mas que se tornou crítico firme da extrema esquerda, e por isso acaba sendo rotulado por essa turma como alguém de direita, o que é absurdo. Demétrio lembra o básico: para se falar em golpe, é preciso ter um regime democrático vigente, o que faltava na Bolívia, mas existe no Chile. Diz ele:
Na Bolívia, o golpe foi um contragolpe. Seguindo o roteiro do populismo caudilhista, Morales violou as regras do jogo democrático para se eternizar no poder. Em busca de um quarto mandato, rasgou a Constituição e, com o auxílio de uma corte suprema curvada à vontade do caudilho, ignorou o resultado do plebiscito popular que lhe negara a terceira reeleição. O golpe em câmera lenta conduzido por Morales concluiu-se com as irregularidades constatadas no primeiro turno, que provocaram a onda de manifestações oposicionistas.
Demétrio, em seguida, mostra como Morales tentou seguir com um projeto autoritário, dissolvendo a independência do Poder Judiciário, e tentando controlar as Forças Armadas, como fez Maduro na Venezuela. Ficou faltando essa parte em seu projeto, o que explica sua derrocada, enquanto seu companheiro chavista continua no poder na Venezuela, cada vez mais opressor.
A maior virtude da democracia não está na escolha acertada dos governantes, mas sim na possibilidade de alternância pacífica de poder, ou seja, de retirar os piores sem derramamento de sangue. Liberais como Popper e Mises defenderam a democracia com base nesse argumento, endossado por Demétrio:
A democracia cumpre, entre outras, a função crucial de promover transições pacíficas de governo. Nela, em geral, presidentes só têm seus mandatos abreviados por meio de impeachment, um instrumento legal de última instância.
Ou seja, é quando esse processo democrático é interrompido, por meio de fraudes ou golpes internos, que podemos falar em golpe. A esquerda tem essa via no Chile, e inclusive a socialista Michelle Bachelet foi presidente do país recentemente. Tentar derrubar Piñera na marra, portanto, é clara tentativa de golpe. O mesmo não pode ser dito sobre Morales. Demétrio conclui:
A lição é que o termo “golpe” só se aplica a sistemas democráticos. O golpe é a interrupção da regra do jogo sucessório. Fora da democracia, em ditaduras abertas ou em regimes semiautoritários, o jogo sucessório não obedece a regras claras de aceitação geral. Aí, surgem o “golpe dentro do golpe”, o “contragolpe”, a “revolução popular”. Morales não tem do que reclamar. Já os bolivianos merecem a reconstrução da democracia, não um regime autoritário apoiado no pretexto da retribuição.
O outro texto é do jornalista Leonardo Coutinho na Gazeta do Povo. Ele faz a importante distinção entre golpe e revolução, e diz que para a esquerda todo golpe vira "revolução" quando lhe interessa. O duplo padrão é evidente: se barbudos fardados tomam o poder em nome da esquerda, estamos diante de uma linda "revolução" libertadora; mas se um ditador socialista é derrubado por pressão popular, aí estamos diante de um golpe das "elites" que não suportam os "avanços" populares. Diz Coutinho:
Os protestos no Chile, marcados pelo vandalismo e violência, são tratados com parcimônia por muitos que veem a turba como a eclosão de uma rebelião popular. Uma reação à desigualdade naquele que, de longe, tem o melhor Índice de Desenvolvimento Humano da América Latina. O até então estável Chile passou a ser visto com desconfiança. Algo do tipo: por trás do melhor país da região estava adormecido uma Somália? As imagens dos protestos no país vizinho muitas vezes lembram a conturbada e sangrenta Mogadício.
A baderna generalizada, que ameaça um país estável e coloca o seu presidente contra as cordas, nada mais é que um golpe. Parece esquisita a definição, mas o que acontece é que quando a esquerda trabalha para derrubar um governo, o nome da manobra é revolução. Eles definiram e ensinam que golpe é um monopólio da direita – principalmente se tiver alguém fardado para ornamentar – e, de forma geral, a maioria aceita o jogo de significados.
O golpe em curso no Chile nada mais é que uma reação da esquerda latino-americana ao que mais os assombra: desenvolvimento. Mesmo passando por governos esquerdistas, os chilenos jamais abandonaram a rota do liberalismo econômico que está na base do sucesso que descolou o país do modelo regional, que vigora nas quebradas Argentina e Venezuela.
Coutinho, então, passa a descrever as gritantes diferenças para o caso boliviano, onde Morales vinha dando um golpe de dentro da democracia. Trata-se do pior tipo de golpe, pois sem tanques ou militares nas ruas, o que o torna mais discreto, sutil e enganoso. Coutinho conclui:
Então, Evo Morales partiu para a mais descarada fraude. Meteu a mão nos resultados. Flagrado, seguiu o script que sempre lhe garantiu sossego. O de pobre índio vítima da elite branca racista. Mas nem os seus antigos parceiros toleram a malandragem. Muitas regiões, com população majoritariamente indígenas, que outrora sustentavam as trapaças de Morales, juntaram aos movimentos pela renúncia. Evo Morales governou por quase quatorze anos dando golpes atrás de golpes. E até quando caiu, deu mais um. Pintou de golpe a primavera boliviana.
Eis o resumo da ópera: a esquerda radical julga ter o monopólio das revoluções libertadoras, e sempre que houver um golpe socialista contra governantes legítimos, isso será uma "revolução", sendo que se o povo for às ruas e conseguir depor um tirano socialista, isso será "golpe". Para a esquerda, só existe "democracia" se um esquerdista estiver no poder; se der cara ela ganha, se der coroa você perde...
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