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Em tempos de confusão entre estado laico e antirreligioso (anti-cristão, na verdade), e também de feminismo que mais parece um ataque aos homens, busquei refúgio num pequeno livro sobre as Cruzadas, de Abigail Archer. Com o benefício do retrospecto de nove séculos, parece estranho, até impensável e incompreensível que aquela gente tenha se metido em aventuras tão improváveis para resgatar a “Terra Sagrada”.

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Que tipo de fervor religioso explica isso? Quais foram as consequências dessas expedições militares nos séculos XI, XII e XIII? Apesar dos vários recuos e perdas, aqueles cristãos insistiram por mais de 200 anos nessa tentativa. Mas nem tudo seria em vão. As Cruzadas mudaram o mundo. E sim, houve vários pontos positivos nessas mudanças.

Claro, as Cruzadas nos lembram também dos horrores possíveis pelo fanatismo religioso. Cidades saqueadas, povos massacrados, tudo em nome de Deus. Para muitos, inclusive cristãos, as Cruzadas são comparadas hoje à Inquisição, um símbolo do excesso de fanatismo religioso que só teria produzido vergonha para a trajetória do Cristianismo. Mas foi isso mesmo?

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Os cruzados se viam como soldados de Deus, e se enxergavam como purificadores, expulsando os infiéis que desafiaram os valores sagrados. Era preciso levar a palavra divina àqueles que iriam para o Inferno. Mas, na prática, as sociedades muçulmanas naqueles tempos eram mais avançadas do que muitas sociedades cristãs. Nesse sentido, os cruzados não eram muito diferentes dos radicais islâmicos em pleno século XXI, que olham para a civilização ocidental mais avançada com desdém e querem expurgar o “pecado” do mundo.

Se o mundo muçulmano era mais avançado no fim do primeiro milênio, o mesmo não se pode dizer hoje. Como seria o mundo, então, se os seguidores de Alá tivessem conquistado ainda mais territórios? Se os Otomanos ainda fossem os dominadores de ontem? Basta comparar as principais sociedades cristãs e muçulmanas de agora para ter calafrios com essa ideia.

O Ocidente, sob a influência do Cristianismo, foi quem pariu os valores básicos universais de tolerância ao indivíduo e democracias liberais, apesar de também ter produzido os totalitarismos do sangrento século XX. E hoje o Ocidente se encontra ameaçado por bárbaros intransigentes que se julgam soldados de Alá. É possível proteger nossos valores ocidentais sem fortes convicções religiosas e morais? Os materialistas utilitaristas modernos estão em condições de enfrentar tal desafio?

Mas o fato é que, naquela época, o contato maior com o mundo islâmico acabou gerando trocas benéficas para o próprio Ocidente. As Cruzadas estão entre as grandes forças que colocaram um término na Alta Idade Média e levaram ao Renascimento depois. A civilização ocidental nunca mais seria a mesma.

Ninguém duvida que outros interesses mais comezinhos e menos espirituais tiveram influência nos eventos. A disputa por poder, território, riquezas, tudo isso ajuda a explicar. Mas não basta. É inegável que a fé religiosa serviu de pano de fundo para muitos embarcarem naquelas aventuras, mesmo lordes e reis, além de papas. Recuperar os locais sagrados, o direito de visitar tais locais livremente, essa era uma meta concreta para muitos.

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É verdade que, para tanto, os papas ofereceram recompensas, como a redenção dos pecados, e até venderam indulgência para levantar os fundos necessários para as batalhas. O Paraíso também era ofertado como uma recompensa eterna, muito mais valiosa do que ouro e terras, portanto. Mas o excesso de cinismo não ajuda na análise. Esses papas também cobraram um comportamento mais digno dos guerreiros, principalmente quando os abusos ficaram evidentes e quando Jerusalém voltou ao controle cristão, ainda que temporário.

Vários aceitaram participar das aventuras por ignorância. Achavam que seria uma viagem curta e uma vitória fácil e certa, para depois usufruírem das maravilhas do Oriente. Entre a alta classe havia também a fantasia de grandes conquistas, e como muitos lordes tinham herdado nada além de dívidas de seus pais, e estavam com seus feudos falidos, essa era uma oportunidade de ouro. Ou assim parecia.

Apesar de tudo isso, as Cruzadas eram calcadas na fé mesmo. É a conclusão da autora. Mulheres praticamente obrigavam seus maridos a partirem para o combate, receando a vergonha de traírem sua fé. Até crianças se mobilizaram! Havia um sentimento de luta pelo sagrado, que simplesmente não pode ser descartado. A sobrevivência não era o único objetivo. O sacrifício por uma causa maior, tida como nobre, era parte dos valores daqueles povos. Soa estranho aos ouvidos modernos, não é mesmo?

Entre os efeitos das Cruzadas, temos o avanço na arte da guerra. Aqueles lordes e seus soldados tornavam-se mais eficientes nos combates, desenvolviam armas melhores, e também um senso de união e camaradagem. Afinal, os próprios lordes e até reis lideravam seus exércitos, combatiam no chão, juntos. Não eram como os políticos de hoje que autorizam bombardeios e ataques terrestres do conforto de suas salas.

Outra consequência foi o maior comércio, não só com o Oriente, mas entre os próprios feudos. Afinal, os senhores precisavam de recursos para financiar essas guerras sagradas, e para tanto tiveram que incentivar o comércio em suas propriedades. Como descobriram os prazeres do estilo de vida oriental, também se acostumaram com mais luxo, que teria de ser bancado com mais recursos. Foi uma época de avanço das cidades feudais, dando início aos estados-nações depois. Bancos proliferaram, assim como outros negócios.

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E, talvez o mais importante subproduto das Cruzadas, surgiu o conceito de cavalheirismo. Muitos cavalheiros eram corruptos e inescrupulosos, mas emergia um código de conduta cada vez mais exigente que iria perdurar por um bom tempo. As virtudes que passaram a ser cobradas desses cavalheiros ajudaram a criar o sentimento de nobreza neles. Coragem, lealdade, humildade ao servir, tudo isso passava a configurar um legítimo cavalheiro medieval.

O complexo relacionamento entre Ricardo Coração de Leão, filho da poderosa Leonor de Aquitânia, e Saladino, o sultão do Egito e da Síria, demonstra bem isso. Ambos se respeitavam, preservavam uma esfera de dignidade e admiração pela conduta do outro. Eram inimigos, mas nem por isso deixavam de reconhecer a nobreza do adversário. E por diversas vezes demonstraram inclusive generosidade. Não bastava um cavalheiro ser corajoso em combate; ele precisava ser também generoso no espírito.

Tivemos, ainda, os Templários, com um rigor ainda maior do que os demais. Frequentavam a missa três vezes por semana, aceitavam qualquer combate, não importa o quão em desvantagem numérica estivessem, e apesar da Ordem dos Templários ser rica e poderosa, seus membros não possuíam nada além de suas armas. Honra era um conceito cada vez mais valorizado. O longo processo árduo e solene que criava um cavalheiro fazia surgir nele a noção de aristocracia, que o diferenciava do restante dos homens comuns. E ele tinha que reagir à altura das expectativas.

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Como parte desse código dos cavalheiros, surgiu ainda o galanteio, o “amor cortês”, platônico, simbolizado nas reverências que o jovem prestava a alguma mulher nobre, especialmente após os populares torneios. Começou com o conceito de que as mulheres poderiam ser uma força espiritual e moral enobrecedora. Os trovadores também se destacaram nessa época. É curioso pensar em como o feminismo consegue pintar uma quadro de que as mulheres não eram valorizadas no passado, quando tudo girava em torno delas. Como diz a autora:

Não se deve pensar que as senhoras desta época eram suaves, aves frágeis ou princesas de contos de fadas. Elas poderiam herdar bens e serem proprietárias de terras feudais, e elas sabiam como defender suas terras. Elas eram treinadas para montar e caçar, usar armas, para comandar as ordens inferiores como seus maridos e pais fizeram, e quando os seus homens saíam para uma cruzada sem elas, elas eram capazes de gerir a propriedade e protegê-la.

Não combina muito com a caricatura que fazem da Idade Média, não é mesmo? Mas, claro, o lado feminino, que só feministas desprezam, também foi fortalecido naquele período de grandes mudanças:

Ainda assim, as mulheres também mudaram sob a influência da época. Elas descobriram sedas e tecidos de ouro, perfumes; elas fizeram seus aposentos mais bonitos com ornamentos e pinturas; plantaram ervas aromáticas e flores em seus jardins; elas cultivaram música e poesia.

Já uma das lições que ficam das Cruzadas está na constante disputa interna como fator de enfraquecimento do próprio Ocidente. Lordes invejosos, disputando quem iria comandar as cidades conquistadas antes mesmo das batalhas ocorrerem, intrigas constantes, traições, tudo isso facilitou o caminho dos Sarracenos, como os cristãos medievais chamavam os árabes. Jerusalém foi conquistada e perdida. Mesmo com todo o fervor religioso e coragem, o resultado foi um fiasco.

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Ou nem tanto. Como um ideal que afetou muitas vidas, o cavalheirismo deixou seu legado e ninguém mais podia deixar de ser movido por suas virtudes: ser leal, humilde, servir aos homens e a Deus, ser corajoso apesar de todas as probabilidades de derrota, e ainda ser cortês, gentil. Será que são mesmo valores tão machistas, tão ruins, tão ultrapassados, perdidos numa época de fanatismo religioso? Será que tudo foi evolução?

Rodrigo Constantino