Um foi tido como um fanfarrão pouco confiável no mundo da política britânica, até ter a oportunidade de se tornar protagonista como primeiro-ministro no embate de vida ou morte contra Hitler e os nazistas, tornando-se então o maior estadista do século XX. O outro era um escritor meio apagado, com alguns textos e livros de razoável repercussão, até retratar com perfeição o modelo totalitário comunista que ameaçava as mais básicas liberdades individuais, tornando-se um dos autores mais influentes do século XX.
As vidas de Winston Churchill e George Orwell suscitam inúmeras biografias e filmes. Quando ambas são retratadas em paralelo, por um jornalista premiado, o resultado é o imperdível Churchill & Orwell: The Fight For Freedom, de Thomas Ricks. Tanto Churchill como Orwell se viram no epicentro dos acontecimentos mais marcantes da história, quando regimes totalitários colocaram em xeque a sobrevivência da democracia liberal do Ocidente.
Hitler e seu nacional-socialismo de um lado e Stalin com seu comunismo do outro, os dois monstros desafiaram a essência do legado ocidental, que tinha no Reino Unido seu principal bastião (até a entrada mais ativa da América no jogo geopolítico). E tanto Churchill como Orwell reagiram com ferramentas similares: seus intelectos, sua confiança em seu próprio julgamento e suas convicções, mesmo quando muitos em volta flertavam com o inimigo e, acima de tudo, com suas palavras.
É importante lembrar que Churchill também era um jornalista e sua habilidade com a língua inglesa foi crucial em sua estratégia de defesa do Ocidente, sabendo extrair o melhor de seus concidadãos por meio de seus inesquecíveis discursos. O que estava em jogo – e ambos sabiam disso – era a própria liberdade de pensar por conta própria, de viver em um ambiente democrático, de se expressar e se associar sem o controle estatal.
O indivíduo autônomo, em suma, poderia deixar de existir se Hitler e Stalin vencessem, e Churchill, assim como Orwell, tinha plena noção do risco. Ainda que por caminhos distintos e perfis diferentes, inclusive ideológicos, o fato é que os dois compartilharam de uma causa comum, e por conta dela lideraram uma resistência à maré estatista assassina que teve começo nos anos 1920 e 1930, chegando ao seu apogeu na década de 1940.
Com o benefício do retrospecto é sempre mais fácil julgar. Mas Churchill e Orwell tiveram que superar obstáculos dentro do próprio ambiente britânico, já que muitos na elite flertaram com soluções autoritárias quando o modelo liberal parecia fadado ao fracasso após a crise de 1929. Coletivismos de matizes distintas pareciam oferecer a saída mágica, mas não para esses dois heróis: eles entenderam a importância do valor do indivíduo no mundo, um indivíduo que deveria ter o direito de discordar da maioria, de criticar as autoridades estabelecidas.
“Se liberdade significa alguma coisa, ela significa o direito de dizer às pessoas aquilo que elas não querem escutar”, resumiu Orwell. E era essa liberdade que estava morrendo pela aceitação do coletivismo. Mesmo Orwell, que se dizia um socialista, na prática condenava a essência do socialismo, ao menos aquele existente, o único possível, o “real”. Não por acaso retratou em suas distopias a realidade sombria do experimento soviético, e foi perseguido pelos comunistas.
Um ponto que merece destaque é como as oportunidades se apresentaram para os dois heróis, já com certa idade, e quando ambos pareciam desacreditados por seus pares. Churchill era considerado por muitos políticos ingleses como instável, com temperamento imprevisível e caráter questionável. Principalmente nos meios mais conservadores dos Tories, ele era um “outsider”, um ególatra, alguém que tentava se promover a todo custo.
Mas foi essa figura que assumiu a liderança na guerra contra Hitler, conquistando não só a aprovação do rei como de seus súditos, e de quase todos os políticos, liberais e conservadores. Muitos ainda tinham várias discordâncias e desconfiavam de seu estilo, mas reconheciam sua capacidade de liderar, assumir riscos numa posição de isolamento, sua coragem e determinação e sua obstinação incansável. Tudo isso foi revelado somente quando a chance bateu à sua porta.
Algo parecido aconteceu com Orwell. Eric Blair, seu nome verdadeiro, foi um menino franzino e doente e, na juventude, saiu em aventuras em busca de histórias para escrever ou da sensação de lutar por Justiça. Já em Burma, experiência que lhe rendeu um livro, aprendeu a ser cético com a autoridade e entendeu que o exercício do poder pode corromper uma pessoa, por melhor que ela seja. Essas ideias iriam acompanha-lo até mais tarde, sendo mais bem elaboradas, mas fundamentais para suas histórias em A revolução dos bichos e 1984, os dois livros que lhe garantiram fama eterna.
Quando foi combater fascistas na Espanha, acabou sendo perseguido por comunistas, o que significou uma lição preciosa: opressores são opressores, não importa qual ideologia utilizem. Sua visão de dentro da elite sempre o acompanhou como alerta para os defeitos da classe alta: ele chegou a sentir desprezo por seus pares. Não foi muito diferente com Churchill: seu lado americano, pela mãe, sempre foi motivo de desdém pelos aristocratas esnobes, e a recíproca era verdadeira.
Mas tanto Orwell como Churchill puderam manter o contato com a realidade do povo, sentindo o pulso da população em momentos importantes. Estavam em sintonia com a classe média, não necessariamente com as elites. Até porque as elites, com mais a perder, preferiam em grande parte apoiar o acordo de paz de Chamberlain com Hitler, como se isso fosse possível. Sabemos, historicamente falando, que o grosso do financiamento das ideologias totalitárias não vinha do proletário, mas das elites.
Em tempos de desespero, quando tudo parecia perdido, Churchill e Orwell não abaixaram suas cabeças; ao contrário: assumiram o fardo de enfrentar o inimigo de peito aberto, com clareza moral e realismo e, com enormes custos pessoais, contribuíram para a vitória da democracia liberal, principal legado da civilização ocidental. Não é pouca coisa.
Texto originalmente publicado pela Gazeta do Povo impressa
PF indicia Bolsonaro e mais 36 pessoas por tentativa de golpe de Estado
Lista de indiciados da PF: Bolsonaro e Braga Netto nas mãos de Alexandre de Moraes; acompanhe o Sem Rodeios
Seis problemas jurídicos da operação “Contragolpe”
Lula diz que “agradece” por estar vivo após suposta tentativa de envenenamento
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS