Quando um conservador faz críticas ao esquerdismo, a reação costuma ser a de nem sequer escutá-lo, sendo mais fácil rotular o crítico de “fascista” ou questionar suas intenções. Mas não é possível fazer isso quando alguém como o professor Mark Lilla tece duras críticas à esquerda. Ele é um esquerdista acima de qualquer suspeita, professor da área de humanas em Columbia, Nova York.
Em seu novo livro, The Once and Future Liberal: After Identity Politics, Lilla chama a atenção de seus colegas para o fenômeno recente que, em sua visão, tem colaborado para a destruição do “liberalismo” (no sentido americano do termo). Todos focam demais em Donald Trump, mas Trump seria um sintoma, não a causa dos problemas.
Se os democratas não fizerem uma autocrítica sincera, então não terão como resgatar o poder para que possam implementar as políticas “progressistas”. Por que aqueles que falam em nome dos americanos e das minorias se tornaram tão indiferentes aos sentimentos dessa gente toda, a ponto de perder sua confiança? É essa questão que Lilla explora em seu livro.
O autor se considera um “liberal frustrado”. Ele acha que os “liberais” perderam o contato com o povo, que não conseguem mais formular uma visão conjunta de mundo que desperte o interesse dos demais. Sua narrativa se divide em dois grandes momentos em que lideranças políticas foram capazes de seduzir as massas com uma mensagem forte e de união: Roosevelt e Reagan.
Após a Grande Depressão, Roosevelt foi capaz de mobilizar os cidadãos em torno de um ideal coletivo, de se proteger do risco, buscar direitos inalienáveis com base na solidariedade, no dever cívico. Essa visão seria depois resumida por outro democrata, JFK, ao pedir aos americanos que perguntem não o que o país pode fazer por eles, mas o que eles podem fazer pelo país.
Já a era Reagan foi a reviravolta individualista, que clamou os cidadãos a romper os grilhões estatais e permitir o florescimento das famílias e pequenas comunidades em ambiente mais livre. O governo passava a ser o problema, não a solução. Em parte, isso era uma reação ao excesso de burocracia criada pelo avanço do Estado durante a Grande Sociedade, o projeto “liberal” colocado em prática por Lyndon Johnson. A incompetência de Jimmy Carter também deu sua ajuda à reação liderada por Reagan.
O primeiro grande movimento foi político, o segundo foi antipolítico. Como parte do movimento político, associado aos “liberais”, Lilla cita as políticas sociais voltadas para as minorias, como os negros e as mulheres. Com o intuito de reparar erros passados, esses movimentos mobilizaram as massas em torno da luta por instituições políticas que assegurassem os direitos dessas minorias.
Mas o pêndulo extrapolou. As políticas de identidade deixaram de ser um projeto político e se transformaram em um projeto evangélico. Eis a diferença: um movimento evangélico é sobre falar a verdade para o poder, enquanto um político é sobre tomar o poder para defender a verdade. Lilla acredita que a esquerda deixou de lado a parte importante da política: como efetivamente vencer eleições em todas as esferas para garantir que “progressistas” estarão no comando das instituições para preservar esses direitos.
A parte cultural continuou sob amplo controle desses “liberais”, mas Lilla acha que os professores criaram guetos onde podem ensinar seus jovens alunos a repetir seus mantras, sem com isso, porém, conquistar o poder efetivo. Sua mensagem deixou de ecoar pela nação, não trata todos como cidadãos de uma empreitada comum. Falta à esquerda um projeto de país que desperte o interesse de todos.
Curiosamente, a esquerda abraçou o individualismo de Reagan de forma até bem mais radical. Os desejos e necessidades dos indivíduos passaram a ser tratados como prioridades absolutas em relação àqueles da sociedade. A revolução que moldou a América nas últimas décadas fez com que cada um se considerasse uma ilha, de forma egoísta e narcisista, e nada além disso tem muita importância.
Na visão coletiva de Roosevelt, quatro liberdades eram consideradas universais e evidentes: liberdade de expressão, de culto, liberdade do medo e da necessidade. Três gerações de “liberais” encontraram nisso esperança, confiança, orgulho e um espírito de sacrifício pessoal, além do patriotismo.
Hoje tudo isso mudou. Os “liberais” falam em tolerância, mas calam palestrantes dissidentes nas universidades. O Islã pode ser defendido, mas o cristianismo é constantemente atacado. E os “progressistas” rasgam bandeiras americanas ou se recusam a cantar o hino nacional. Enquanto os imigrantes do passado deviam assimilar a cultura local, hoje eles formam guetos isolados em nome do multiculturalismo, que não encontra mais no projeto americano algo excepcional, mas “apenas diferente”.
O conceito de cidadania americana perdeu valor para a esquerda. O “nós” perdeu relevância para o “eu”, e como cada um quer se definir ou se identificar passou a ser a coisa mais importante do mundo. A Nova Esquerda não foi capaz de contribuir para uma unificação do Partido Democrata, tampouco desenvolver uma visão “liberal” de um futuro compartilhado por todos na América. Houve muita segregação e radicalismo, e Hillary Clinton chegou a chamar metade dos eleitores de Trump de “deploráveis”.
Os professores marxistas tentaram doutrinar seus alunos, mas a grande história, para Lilla, é outra: como eles conseguiram incutir na mente da juventude uma ideia idiossincrática da política, baseada em suas próprias experiências particulares. O marxismo ao menos tinha um interesse no destino de todos os trabalhadores, mas os grupos de estudos de identidade parecem só se preocupar com seus feudos, e vemos uma proliferação de departamentos e centros de pesquisas voltados somente para “minorias” específicas – todas bancando a vítima.
Uma cidadania democrática exige direitos e deveres recíprocos. Mas os narcisistas da sociedade moderna só querem saber de seus “direitos”, e os debates políticos só giram em torno do “eu”. Lilla está convencido de que essa política de identidade tem sido responsável pelas derrotas “liberais” no espaço político.
Artigo originalmente publicado na versão impressa da Gazeta do Povo
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