A ideia de que a coisa mais importante do mundo é a busca pela felicidade está tão enraizada na era moderna que faz parte até da Declaração de Independência da América, como um direito inalienável. Muito justo, mas surge a questão: e quando “ser feliz” deixa de ser um direito e se transforma basicamente num dever? E quando a obsessão por ser – ou parecer – feliz é tão grande que essa constante busca produz apenas seu oposto, mais angústia e sofrimento?
O psicólogo canadense Jordan Peterson, que acabou se transformando em popstar recentemente e cujo livro novo foi o tema da última coluna, costuma dizer que perseguir a felicidade não é uma boa meta na vida; que seria melhor buscar ser uma pessoa boa, fazer a coisa certa, e esperar, quem sabe?, momentos de alegria em nossa passagem um tanto trágica pela existência.
Ele adota um tom pessimista, ou realista, de que a cada cinco anos há grande probabilidade de você ou algum ente querido enfrentar uma tristeza, um momento ruim ou mesmo uma desgraça. Ter maturidade, um grau de serenidade ou mesmo de estoicismo pode ser a diferença entre sucumbir ao desespero ou manter a cabeça no lugar, apesar de tudo.
Na mesma linha foi Pascal Bruckner com seu excelente A euforia perpétua: Ensaio sobre o dever de felicidade. O pensador francês toca em algumas feridas delicadas na obra, mas, apesar de flertar com a melancolia, não deixa uma mensagem de niilismo. Ao contrário: é justamente essa sensação de que precisamos ser felizes o tempo todo, e que isso está logo ali, ao nosso alcance, que estaria produzindo tanta angústia, tanto consumo de antidepressivos ou drogas ilícitas.
“A felicidade não é mais um acaso que nos acontece, um momento favorável em relação à monotonia dos dias, ela passa a ser a nossa condição, nosso destino”, escreve. Mas, assim como acaba ficando sem fortuna aquele que só pensa no dinheiro, esquecendo que ele costuma vir como subproduto de quem foca em outra coisa, como sua vocação ou paixão, aquele que só pensa em ser feliz provavelmente será um tanto infeliz.
As diferentes ideologias modernas acabaram embarcando nessa canoa furada, especialmente o socialismo, que passou a prometer o “paraíso terrestre” – e entregou apenas inferno. Mas mesmo o liberalismo, com resultados bem melhores, pode acabar pecando, pela ótica do autor, ao focar obsessivamente na questão da felicidade. As novas gerações só querem saber de seus “direitos”, de prazeres momentâneos, o que ameaça a sobrevivência do próprio liberalismo, sem entregar o prometido: a tal “felicidade plena”.
Para Bruckner, a regra atual é: sejam felizes! E essa mensagem é repetida desde a mais tenra idade. Como consequência, “hoje em dia não se fazem mais crianças para transmitir a elas valores ou uma herança espiritual, mas para multiplicar o número de satisfeitos sobre a terra”. E o que parecia um privilégio acaba se tornando um fardo: os jovens se descobrem os únicos responsáveis por seus reveses ou por seus sucessos, constatando que “a felicidade tão esperada lhes foge à medida que correm atrás dela”.
O autor aponta três paradoxos desse projeto de ser feliz: um objeto fluido e impreciso, que se torna intimidante por isso; o tédio que advém tão logo se realiza, pois saciar o desejo renova a lista de desejos; e o disfarce do sofrimento, parte inexorável da vida e do engrandecimento humano, desarmando o indivíduo diante dele assim que este surge. Como resultado, temos jovens cada vez mais desesperados por prazeres insaciáveis, que acabam entediados e mimados, despreparados para enfrentar as inevitáveis frustrações da vida.
Assim, temos “uma sociedade inteiramente voltada para o hedonismo e para a qual tudo se torna irritação, suplício”. O que parecia uma ideia maravilhosa, de que o homem seria capaz de controlar mais seu destino e melhorar a própria existência, acabou se transformando num dogma, um “catecismo coletivo”. A palavra emancipadora do Iluminismo deixa de ser tão libertadora assim, passando até mesmo a escravizar o homem moderno.
Como explica Bruckner, não se trata de ser contra a felicidade, mas contra “a transformação deste sentimento frágil em verdadeiro entorpecente coletivo ao qual todos devem se entregar, em suas modalidades químicas, espirituais, psicológicas, informáticas, religiosas”. A crítica do autor é a de que saímos de um extremo, com o “sadismo da piedade” da era cristã, para outro extremo, com as fugas desesperadas de qualquer sofrimento, por meio da banalidade, da vulgaridade, do vazio espiritual. Do culto da dor e do sacrifício fomos ao prazer desenfreado que toma todo sofrimento como arcaísmo. E isso não foi positivo.
Basta pensar nas desgraças da Revolução Francesa e dos experimentos comunistas, que tinham uma promessa de felicidade endereçada à Humanidade inteira. Sem qualquer consolo do Além, os povos passaram a depender totalmente da melhoria deste mundo, e “fazer um mundo melhor” se tornou a única meta. Para tão “nobre” fim, qualquer meio era aceitável, mesmo impor um sofrimento sem precedentes às suas cobaias. Em nome do “progresso”, vale tudo!
Diz o autor: “Em outras palavras, as religiões detiveram sempre uma vantagem constitutiva sobre as ideologias seculares: a inutilidade de fornecer a prova. As promessas que elas nos fizeram não estão na escala humana ou temporal, ao contrário de nossos ideais terrestres, que devem se curvar à lei da verificação. Foi exatamente disso que o comunismo morreu, do choque brutal entre as maravilhas anunciadas e a ignomínia estabelecida”.
E, sem os álibis religiosos, o sofrimento perde qualquer sentido elevado, metafísico, “sobrecarrega-nos como uma odiosa mala carregada de misérias com a qual não se sabe o que fazer”. Essa sociedade da felicidade proclamada se torna uma “obcecada pelo desgosto, perseguida pelo medo da morte, da doença, do envelhecimento”. Bruckner sintetiza: “Sob uma máscara sorridente, fareja em toda parte o odor irrespirável do desastre”.
Toda essa “libertação” desde a década de 1960 produziu uma massa de sofredores hedonistas, despreparados para o sofrimento, incapazes de amadurecer. Talvez fosse melhor resgatar um pouco da sabedoria dos antigos, e não levar a sério demais a tal busca pela felicidade. Quem sabe assim, quando ela nos der o ar de sua graça em algumas ocasiões, possamos realmente apreciar a dádiva que é a vida?
Texto originalmente publicado na Gazeta impressa