Deve ter sido o décimo livro que li de Theodore Dalrymple, pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. Trata-se de Admirable Evasions: How Psychology Undermines Morality, em que o autor liga sua metralhadora giratória contra as principais correntes da psicologia por criarem um discurso social que retira a responsabilidade do indivíduo por seus atos.
Dalrymple é sempre leitura proveitosa, e o deleite de acompanhar seu raciocínio claro e sua linguagem objetiva é garantido. Num livro em que também ataca o blá-blá-blá da linguagem utilizada por muitos de seus pares, esse contraste fica mais interessante ainda. Ele escreve para quem quer de fato melhorar a compreensão acerca do homem, não para quem pretende simular um conhecimento que não detém.
E essa é uma de suas premissas: conhecemos hoje não muito mais do que era conhecido nos tempos de Montaigne ou Shakespeare sobre o homem e sua mente. Mas poucos têm coragem de admitir isso, pois precisam crer num controle cada vez maior do nosso cérebro com base no avanço da ciência e tecnologia.
Seria a perigosa ilusão do autoconhecimento, tão difundida na era moderna. Os homens estariam finalmente livres dos seus conflitos internos: uma promessa fadada ao fracasso. Ironicamente, no mesmo momento em que tantos celebram o suposto aumento do nosso autocontrole com base no avanço da ciência, cerca de 10% da população nos países desenvolvidos toma antidepressivos. Algo falhou aqui.
Os alvos do autor são vários, desde a psicanálise, passando pela própria psiquiatria, o behaviorismo, a neurociência e o sócio-darwinismo, com a crença de que tudo ou quase tudo que fazemos pode ser explicado com base no “egoísmo dos genes”. Teorias simplistas e reducionistas que falham em capturar a complexidade da mente humana.
O primeiro ataque é desferido contra Freud e seus seguidores. Casado com e filho de psicanalistas, tive a oportunidade de debater ad nauseam o assunto e compreender melhor o outro lado da história, para saber que Dalrymple espanca mais um espantalho do que propriamente o “pai da psicanálise”. Até porque a psicanálise séria vai justamente “implicar o sujeito” em suas ações, colocando em xeque seu gozo nas lamentações de vítima.
Mas ele está – assim como eu – mais preocupado com os efeitos sociais da narrativa “psi” do que com os resultados práticos – ainda que de difícil mensuração – dos consultórios (apesar de destacar que nove dos primeiros psicanalistas de Viena, um em cada 17, cometeram suicídio, dado assustador que prova, ao menos, que o contato deles com a psicanálise não garantiu muito avanço).
Freud teria, pela ótica do autor, ajudado a alienar os homens em relação à sua consciência ao alegar que o que se passa em nossas mentes não é muito mais do que um jogo de sombras, e que a verdadeira ação se dá bem mais ao fundo, tudo inacessível sem muitas horas de falatório sobre si mesmo na presença de um analista. Para o médico britânico, a psicanálise não é tanto uma reflexão, mas uma forma rasa de adivinhação gnóstica. Diz ele:
“Ela começa com a hipótese de que todos os pensamentos nascem iguais, pelo menos no mais profundo significado psicológico, e que a tentativa consciente de discipliná-los, para peneirar o verdadeiro do falso, o importante do trivial, o útil do inútil, na verdade inibe ou impede a realização de autoconhecimento”.
Este só viria com o paciente falando sem parar, por anos a fio, de sua própria vida, enquanto o analista captura, por “associação livre”, o que se mostra relevante em meio a tanta coisa, e faz as devidas “pontuações”. O que incomoda tanta gente nesse tipo de abordagem é seu caráter pouco científico. Seria uma espécie de arte, não de ciência, da qual o viajante nunca retorna. Woody Allen satiriza isso em “O Dorminhoco”, quando acorda num futuro bem distante e, ao tomar conhecimento do fato, declara que já estaria quase terminando sua terapia.
Tudo é passível de interpretação, o que a pessoa considera da maior seriedade pode ser irrelevante, e o que ela considera trivial pode ser da maior importância. Viva o ato falho! É verdade que Freud mesmo disse que um charuto pode ser apenas um charuto – não uma escolha aleatória, uma vez que era um viciado em charutos – mas não ofereceu um critério minimamente objetivo para diferenciar quando era apenas um charuto e quando era um objeto fálico com simbolismos relevantes (talvez na boca dos outros).
Injustiças à parte com Freud e a psicanálise, eis o que merece destaque nessa análise de Dalrymple: qualquer bobagem dita pode adquirir o sentido mais profundo do mundo, tudo que é dito passa a ter um significado oculto, os desejos humanos são de natureza sexual, e agem como um compartimento hidráulico, em que, ao serem comprimidos de um lado, se manifestariam de alguma outra maneira patológica, daí a frustação do desejo ser fútil ou perigosa.
Além disso, e principalmente, Dalrymple ataca a ideia vulgar de que, após desenterrar do passado a causa biográfica do sintoma patológico, ele desapareceria por si só, sem a necessidade do esforço do indivíduo no autocontrole. Sei que muitos psicanalistas já devem estar revoltados com o autor nessa hora, mas peço calma.
Não creio que seja possível negar que a popularização da psicanálise, especialmente com os “especialistas” que falam na grande mídia, ajudou a contribuir para um discurso de que o homem não é dono de sua morada (mente) e que a tentativa de impor maior controle consciente a seus atos é infrutífera, ou coisa pior: prova da patologia de um obsessivo. No que nos interessa aqui – a moralidade sendo relaxada com a gradual diluição da responsabilidade individual – uma narrativa que retira do sujeito a capacidade de freio consciente é um convite à irresponsabilidade seguida da vitimização: “matei porque minha mãe não me deu amor suficiente, doutor”.
Dessa forma, nem os atos bons, nem os ruins são tomados a valor de face, mas vistos como diferentes do que parecem, frequentemente como opostos na verdade. O próprio conceito de bom e mau vai desaparecendo: aquele que age de forma moralmente correta o faz porque tem também suas questões, e o marginal demonstra igualmente ter lá seus “issues”. Onde fica o mérito pelas escolhas individuais? Onde está o livre-arbítrio, a capacidade de, entre o estímulo e a resposta, processar, refletir?
Como o terapeuta, para aplicar sua técnica (repito, mais artística do que científica), não pode julgar seu paciente do ponto de vista moral, muitos psicanalistas acabaram transportando isso para a sociedade, e pregam o relativismo moral. Não devemos julgar ninguém, dizem, sempre caindo em contradição, pois são os primeiros a julgar, com muito preconceito, os outros, quando resolvem divergir ou defender um código de valores morais mais sólidos. Seria fácil aplicar suas próprias teorias para explicar suas taras pelos conservadores, por Bolsonaro, por exemplo. A “análise selvagem” é uma via de mão única: só pode ser usada para inocentar bandidos e condenar “reacionários”.
Na narrativa hedonista que ganhou o mundo moderno, o paraíso é pavimentado por desejos realizados, e todo tipo de repressão acaba sendo perigoso. Quão terrível, então, seria os pais ficarem juntos pelo dever de cuidar melhor de seus filhos quando um deles “precisa de mais espaço”, ou porque o relacionamento “não está funcionando”.
Não é ser contra o divórcio em qualquer situação, claro, mas compreender o extremo oposto a que chegamos: qualquer coisinha já é vista como motivo para a separação, e pro inferno com a educação dos filhos e demais responsabilidades! Os desejos imediatos precisam ser satisfeitos, ou sabe-se lá o que a pessoa fará. Como disse um paciente do autor: “Eu tive que matá-la, doutor, ou eu não sabia o que teria feito”. Alguma coisa séria, quem sabe…
Me alonguei mais no caso da psicanálise por ser aquele que julgo menos óbvio no livro. Quando pensamos no behaviorismo, por exemplo, fica evidente o caminho para a evasão de responsabilidade do indivíduo. Se somos autômatos governados por estímulos externos sem a menor capacidade de reflexão e escolha, então tudo aquilo que fazemos de errado não foi, de fato, culpa nossa (normalmente as pessoas esquecem do behaviorismo quando praticam atos bons). Não há mais sentido algum em nossas ações, somos como animais irracionais, perdemos aquela distinção que mais nos separa dos outros bichos: a capacidade de autoconsciência.
Para Dalrymple, o grave erro dos behavioristas como Skinner foi aquele do tipo “nada além de” para explicar a complexa história da humanidade. Para os marxistas, tudo é explicado com base na luta de classes, tudo é fruto de incentivos econômicos etc. Uma coisa é reconhecer que somos suscetíveis a determinados estímulos, que sofremos a influência de certas forças externas. Outra, bem diferente, é reduzir todo nosso comportamento a essa causa única, deixando de fora qualquer possibilidade de ação consciente.
O caso da neurociência vai na mesma linha: tudo passou a ser explicado com base nos “desequilíbrios químicos” de nosso cérebro. A diagnose psiquiátrica se expandiu de forma impressionante, e basta pensar em como qualquer sentimento de tristeza hoje já é associado à depressão para reconhecer isso. E tome remédio!, pois o homem é apenas vítima de uma doença, da falta de lítio, por exemplo, e é isso que explica todo o seu comportamento.
Banalizaram o conceito de depressão e melancolia, além de terem oferecido a desculpa perfeita para quem age de forma antissocial: nada está sob seu controle, é tudo o resultado de seus neurotransmissores danificados. O viciado em drogas é apenas mais um doente, como um esquizofrênico ou alguém que efetivamente sofre de demência, e não há nada do ponto de vista moral que pode diferenciar um do outro. Ele se intoxica com várias drogas da mesma forma sem controle que o outro escuta vozes.
A resenha já está longa demais, e vamos pular para a conclusão: as diferentes teorias psicológicas têm servido, de alguma forma, para fornecer meios aos indivíduos de se evadir da responsabilidade por seus atos. Ninguém precisa negar o inconsciente, as influências do passado ou dos neurotransmissores, algum impacto do “egoísmo” dos nossos genes, para perceber como essas escolas flertaram perigosamente com um determinismo que praticamente anula a capacidade de reflexão consciente do homem antes de agir.
O resultado social desse discurso é uma quantidade cada vez maior de vitimização e da mentalidade de não-julgamento acerca dos valores morais das atitudes individuais. Isso, nunca é demais lembrar, ocorre de forma seletiva e hipócrita, já que os eleitores de Bolsonaro ou Trump nunca merecem a mesma indulgência. Devemos ser compreensivos e evitar a censura moral, ao menos quando isso for do interesse dos relativistas. Em nome da “autoestima” de todos, devemos suspender o julgamento do caráter e dos atos individuais.
Responsabilidade, como o nome já diz, é a habilidade de resposta, ou seja, entre o estímulo e a ação há sempre alguma possibilidade de filtro, por mais que estejamos limitados sob a influência de vários fatores externos. Uma narrativa que reduz a responsabilidade individual em troca de evasões diversas serve para minar a moralidade na sociedade. O resultado está aí: a geração “mimimi” sempre se vitimizando, os atos indecentes escalando e a busca por pílulas mágicas para dar conta das frustrações aumentando exponencialmente.
PS: Quem discordar totalmente do texto e for me atacar com adjetivos e rótulos, alerto que, pela ótica contrária, não tenho a menor responsabilidade por essas palavras, que foram produzidas por puro instinto, impulsos incontroláveis, genes egoístas e desejos reprimidos na minha infância. Mas sei que o alerta tampouco serviria, pois seus ataques também não seriam de responsabilidade dos críticos, não é mesmo?