“Todo o problema com o mundo é que os tolos e os fanáticos sempre estão tão certos de si mesmos, mas as pessoas mais sábias, tão cheias de dúvidas.” – Bertrand Russell
Em 1951, Eric Hoffer escreveu um livro que logo se tornaria um clássico. The True Believer disseca as principais características que levam alguém a aderir a uma seita de forma fanática, dando início a um movimento de massa. O livro ainda é bastante atual, e serve como alerta para as diferentes formas de fanatismo, que acabam sendo bastante semelhantes entre si.
Os movimentos de massa produzem em seus adeptos a disposição de sacrifício pela causa santa, assim como um impulso à ação em conjunto. O entusiasmo, a esperança, a intolerância e o ódio aos que são diferentes representam sintomas deste tipo de fenômeno. Tais movimentos demandam fé cega de seus membros. A submissão é infinitamente mais importante do que o pensamento individual, o questionamento racional. Vale lembrar que Islã quer dizer justamente submissão.
Segundo Hoffer, todos esses movimentos distintos apelam ao mesmo tipo de mente. Talvez esta tenha sido a principal contribuição de seu livro: mostrar como são parecidos, no fundo, movimentos que na aparência são tão díspares. Apesar de vivermos em uma época “sem deus”, o fato é que vivemos em tempos bastante “religiosos”, onde inúmeras seitas fanáticas proliferam. Por isso é tão importante entender a mente típica do fanático.
Os principais tipos de movimento de massa que atraem estas pessoas são religiosos, revolucionários e nacionalistas. Dentre esses, Hoffer considerava o nacionalismo aquele com maior capacidade de duração nos tempos modernos, citando como exemplos as revoluções francesa e russa, que desembocaram no nacionalismo para sobreviver. Nem sempre o advento de tais movimentos será totalmente maléfico. O caso de Ataturk na Turquia demonstra que essas mudanças oriundas de movimentos nacionalistas podem deixar algum legado positivo também. Mas os riscos são sempre enormes.
E o que levaria tanta gente a aderir a tais movimentos? Para Hoffer, um dos principais motivos é a angústia que a autonomia traz para o indivíduo. Temos uma tendência de culpar forças exógenas pelos nossos fracassos, e as pessoas frustradas com suas vidas acabam desenvolvendo um fervor por mudanças radicais. O sentimento profundo de insegurança em relação ao presente faz com que essas pessoas abracem alguma boia de salvação que prometa um futuro melhor. Os movimentos de massa oferecem a sensação de um poder irresistível do grupo monolítico de moldar esse futuro maravilhoso.
A liberdade de escolha deposita no próprio indivíduo o peso de seus fracassos. Quanto maior forem as alternativas de escolha, mais espaço há para frustrações. Para Hoffer, muitos se unem aos movimentos de massa para escapar da responsabilidade individual. Como disse um jovem ardente defensor do nazismo, a meta era ficar “livre da liberdade”. Movimentos de massa fornecem aos fanáticos uma forma de dissipar sua individualidade até o ponto de anulá-la por completo. O fanático se transforma em uma massa amorfa igual a todos os demais membros da seita, disfarçando então seu complexo de inferioridade.
Para uma massa dessas, o principal alvo de ataque é o indivíduo que se sustenta por conta própria, que não depende de algum corpo coletivo que lhe ofereça apoio. A mente independente, blindada de rótulos simplistas e avessa a seitas, o indivíduo criativo que não necessita de um movimento de massa para encontrar algum sentido em sua existência, esse é o foco de inveja e ódio dos fanáticos de todas as matizes. Eles precisam destruí-lo, se não forem capazes de convertê-lo.
Hoffer aponta que movimentos de massa podem nascer sem deus, mas não sem um demônio: são os bodes expiatórios das seitas, culpados pela desgraça que é o presente. Os judeus dos nazistas, os kulaks dos bolcheviques, os ímpios e hereges dos crentes.
Não se comunica com esses fanáticos por meio da razão, e sim da fé extravagante. Eles precisam ser ignorantes acerca das dificuldades envolvidas nessa tarefa vasta e hercúlea, muitas vezes utópica, de criar um novo mundo. A experiência de casos passados atua como um inibidor aos revolucionários, e por isso o desconhecimento da história costuma ser crucial na seleção dos adeptos. Os envolvidos na Revolução Francesa, no bolchevismo e no nazismo eram em sua grande maioria pessoas sem experiência política.
Uma classe média em crise, que acaba de perder parte de seus bens e se encontra frustrada com o presente, representa um terreno fértil para movimentos de massa. Foi assim na Itália fascista e na Alemanha nazista. Um movimento em ascensão prega a esperança imediata, um futuro róseo logo depois da esquina, uma “boa nova” para os escolhidos, que impele seus membros à ação. Movimentos de massa já estabelecidos contam com a promessa de um futuro fantástico, porém distante, para manter acesa a chama da esperança. O marxismo era o que denunciava da religião: o ópio do povo russo.
O núcleo familiar representa um grande obstáculo a tais movimentos coletivistas. Por isso quase todos eles combateram a família em suas origens. A causa santa vem em primeiro lugar, a família fica em segundo plano. Os comunistas exortavam as crianças a denunciarem seus pais “contrarrevolucionários”. Hoje parece que os revolucionários descobriram métodos mais sutis e eficientes de destruir a família: transformá-la em qualquer coisa.
O ser humano em geral clama pela sensação de pertencimento a algum grupo maior. Suas frustrações alimentam ainda mais o desejo de sumir em meio a uma massa uniforme. O tédio diante da vida, a falta de sentido na existência, tudo isso joga mais lenha na fogueira, empurrando o indivíduo na direção da massa. Um movimento de massa representa o pacote completo que exime o sujeito da responsabilidade de desejar e arriscar por conta própria.
A submissão ameniza o fardo de sua autonomia. Seu fanatismo retira a necessidade de pensar e questionar por conta própria. A “certeza absoluta” da doutrina infalível fornecida pelo movimento conforta a angústia da hesitação. A aventura revolucionária estimula e reduz o tédio de sua vida vazia. A causa fanática alivia seu sentimento de culpa. O futuro fantástico lhe dá forças para enfrentar o presente medonho, um fardo temporário, um vale de lágrimas e sofrimento até o oásis por vir. O ideal glorioso e indestrutível oferece a força que lhe falta como indivíduo, a eternidade que acalenta sua inexorável mortalidade e aniquilação.
Eric Hoffer não era otimista quanto à possibilidade de persuasão de um fanático. Para ele, o apelo à razão não surtia tanto efeito sobre um fanático. Seus medos e inseguranças lhe comprometem, e sua causa santa é uma necessidade de se segurar a alguma coisa para aguentar a vida. O mais provável seria um fanático se converter, não se convencer. Por isso é comum ver fanáticos pulando de seita em seita. Para Hoffer, é mais fácil para um comunista fanático se converter ao fascismo do que se transformar em um liberal sóbrio com mente aberta. Os ateus fanáticos, que encontram sua razão de ser em Deus da mesma forma que os crentes, pois vivem em função de sua negação, entravam para o grupo dos fanáticos de Hoffer.
A propaganda se faz importante para a ascensão do movimento de massa, mas sua sustentação só será possível com base na coerção, pois raramente o fanatismo seduzirá a imensa maioria. Apesar disso, a conquista e a conversão de outras pessoas acabam dando legitimidade ao fanático. Trata-se do conhecido argumentum ad populum. Isso também explica porque os fanáticos, apesar de desejarem exterminar uns aos outros, odeiam ainda mais aqueles que não compartilham de fanatismo algum. Um fascista fanático pode até nutrir algum respeito pelo comunista fanático, mas ambos desprezam o liberal “sem fé”, moderado.
Esses fanáticos demandam um líder, alguém que assuma por eles o fardo da responsabilidade. Esse líder, segundo Hoffer, deve ter audácia, uma fé fanática na causa, e a habilidade de despertar a devoção fervorosa no grupo. A qualidade das ideias em si tem menor relevância. O que importa é o gesto arrogante, o completo desprezo pela opinião dos outros, o desafio ao mundo.
Algum grau de charlatanismo é fundamental para a liderança do movimento de massa. Os fatos precisam ser deturpados sempre a favor da seita, tarefa facilitada pela necessidade de crença dos fanáticos. Os fanáticos estão ávidos por obediência ao guru da seita. O crente deve ser acima de tudo uma pessoa obediente e submissa, que diz “amém” para seu guru.
Normalmente, o movimento de massa joga descrédito e suspeita sobre o governo estabelecido, mas acaba adotando as mesmas práticas ou até piores uma vez que consegue chegar ao poder. Os revolucionários franceses adotaram o Terror, fazendo a monarquia parecer suave. Os bolcheviques mataram milhões em poucos meses, mais do que o regime dos czares em toda a sua existência.
O que todos os fanáticos condenam em conjunto é a democracia liberal do Ocidente, acusada de decadente e pusilânime. Os indivíduos sob tal regime não estariam mais dispostos ao sacrifício por uma causa. A perda de vigor, de fé cega, seria sinal de podridão moral. Sem dúvida há alguma verdade nisso. De fato, as democracias modernas dão sinais de covardia, ainda mais quando comparadas às teocracias islâmicas e seus terroristas fanáticos dispostos a tudo pela causa.
Falar em reformas nunca tem o mesmo apelo emocional que falar em revolução, em derrubar todo o sistema podre, passar uma borracha no presente injusto e criar um novo mundo maravilhoso, com base na tábula rasa, ou então em resgatar um passado idealizado, um jardim do Éden sonhado, o paraíso perdido.
Mas a troca desse marasmo imperfeito por um movimento de massa revolucionário é algo extremamente perigoso. Talvez o mundo precise de alguns fanáticos de vez em quando, que abraçam causas santas com fé cega. Talvez alguns desses movimentos tenham tido efeitos líquidos positivos ao longo da história. Só que é fundamental ter em mente o risco que eles representam. Quando muitos sucumbem ao fanatismo e à submissão sem questionamentos, então a liberdade individual corre sério perigo. Os fanáticos podem querer justamente fugir dessa liberdade. Mas ela é crucial para o avanço da civilização.
Rodrigo Constantino (texto originalmente publicado em 2012, levemente adaptado)
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