Israel Kirzner é um dos “austríacos” mais importantes e tornou-se citação obrigatória no meio acadêmico quando o assunto é empreendedorismo. Infelizmente, porém, ele permanece um ilustre desconhecido, principalmente do público brasileiro. Eu já tinha escrito uma resenha de seu livro mais importante sobre o assunto, e só posso festejar o lançamento pelo Instituto Mises Brasil de O empreendedorismo de Israel Kirzner, do italiano Adriano Gianturco, professor do Ibmec de Belo Horizonte. Ganhei o livro de presente durante o evento em Passo Fundo, e já terminei a leitura durante o voo de volta.
Com um belo prefácio de Ubiratran Jorge Iorio (uma dobradinha com cores italianas, portanto), o livro resume muito bem o pensamento de Kirzner, da ala mais “moderada” da Escola Austríaca, hoje dividida entre os seguidores de Hayek (Kirzner faria parte dessa ala) e os seguidores de Rothbard, ambos disputando o legado de Mises. Divisões dentro de uma escola de pensamento são normais e até saudáveis, mas o fato inegável é que os “austríacos” têm muito a oferecer aos estudos econômicos, dominados pelomainstream, preso demais às fórmulas, ao conceito de equilíbrio e aos cálculos econométricos.
A abordagem austríaca vem trazer um pouco de ar fresco, especialmente no que se refere à epistemologia. O uso da lógica apriorística está presente em muitos dos textos desses pensadores, e as crenças ortodoxas são colocadas em xeque com frequência. No caso do empreendedorismo, o enfoque dado por Kirzner foi inovador, configurando-se talvez na melhor defesa do lucro, pois sustentada pelo ponto de vista da ética. Sem o empreendedor não há economia de mercado, e sem esta não há cálculo racional e alocação eficiente dos recursos escassos. Ou seja, sem empreendedor não há produção de riqueza!
Como resume Ubiratran, “O empreendedorismo brota do espírito criativo dos indivíduos, que os leva a assumir riscos para criar mais riqueza, o que o faz depender, para que possa florescer, de quatro atributos: de um governo limitado, do respeito aos direitos de propriedade, de leis boas e estáveis e da economia de mercado”. Os consumidores são os maiores beneficiados desse sistema e, por essa abordagem, o empreendedor pode muito bem ser visto como uma espécie de herói.
Adriano discorre sobre as principais teorias de Kirzner, muitas vezes mergulhando mais a fundo em aspectos técnicos que podem ser cansativos para os não-acadêmicos. Mas o livro é feliz ao dissecar suas principais contribuições ao pensamento econômico, e mesmo o leitor mais leigo poderá aproveitar muito do conteúdo e compreender melhor qual o papel do empreendedor, como sua ação empreendedora leva a um resultado desejável, e porque a intervenção reguladora do estado costuma piorar a situação.
A visão da economia como algo estático, e não um processo dinâmico, talvez seja a maior fonte de equívocos nas análises das diferentes escolas. Até mesmo Schumpeter, com sua visão de “destruição criadora” como papel do empreendedor, peca por considerá-lo exógeno ao sistema, e não endógeno como faz Kirzner. O empreendedor não é um “destruidor” de um suposto equilíbrio existente, mas um elemento interno que desencadeia um mecanismo que tende ao equilíbrio, ainda que nunca chegue lá.
O grande insight de Kirzner foi ver o empreendedor como alguém “alerta”, que “responde” às mudanças nos dados, explora “oportunidades já existentes que estão à espera de serem descobertas”. Para ele, o empreendedor não é uma fonte de ideias inovadores ex-nihilo, mas alguém alerta às oportunidades existentes que estão à espera de serem notadas. Seria mais um arbitrador, nesse aspecto, do que um criador. Ao agir assim, o empreendedor agrega valor aos consumidores.
Kirzner, como explica Adriano, também ataca os diferentes conceitos distributivos, como os de John Stuart Mill ou Rawls, principalmente pois eles costumam ignorar que os recursos que se querem distribuir precisam antes ser produzidos. Os modelos de distribuição tendem a tratar os recursos como já presentes no mundo, e não produzidos por ninguém em particular. Uma perspectiva do “given-pie”, ou seja, do bolo fixo e dado que precisa apenas ser “melhor” dividido. Essa abordagem ignora completamente o papel do empreendedor na criação da riqueza.
E o lucro é justamente o resultado dessa ação empreendedora, seu incentivo e seu fruto legítimo. Eis a defesa ética do lucro, e também porque Kirzner era contra a postura defensiva dos liberais. O papel do legislador deve ser o de criar condições institucionais favoráveis ao empreendedorismo, e não tentar controlar ou substituir o processo do mercado. Para que as “boas ideias” possam surgir, o ambiente deve ser o mais livre e seguro possível para o empreendedor.
Muitas vezes o lucro é condenado por inveja ou ignorância. Em alguns casos, o que se condena não é o lucro empreendedor do livre mercado, mas aquele obtido pela distorção do mercado pelo governo. Como diz Ubiratran Iorio: “Se, no entanto, os mercados não são livres, são caracterizados pela existência de ‘cartórios’, devemos atribuir a imoralidade dos lucros resultantes não aos mecanismos de mercado, mas à sua ausência, isto é, à existência de uma legislação que impede a concorrência, o que significa que devemos atribuir a imoralidade não ao mercado, mas ao estado, que é responsável pela legislação”.
O lucro não é pecado, e sim o resultado justo e ético da atividade empreendedora. É isso que Kirzner defende tão bem, e que Adriano conseguiu explorar com sucesso no livro. Infelizmente, a mentalidade anticapitalista predomina, disseminada pelos “intelectuais” que, ou por inveja ou por ignorância, ignoram as enormes vantagens de um sistema que protege o lucro do empreendedor. Esse “impulso em direção ao socialismo” precisa ser combatido com a razão. É o que faz Kirzner e, por tabela, Adriano: fornecer uma “forte base ética ao liberalismo e, assim, ao empreendedorismo humano”.
Rodrigo Constantino