Por Hiago Rebello, publicado no Instituto Liberal
O americano Murray Rothbard (1926-1995), um dos mais influentes autores anarco-capitalistas, foi aluno de Ludwig von Misesna década de 1950, além de participar da criação do Instituto Mises na década de 1980; como aluno, Rothbard absorveu muito das teorias de seu professor e, do mesmo modo, de toda a Escola Austríaca – da qual Mises fazia parte.
Com tanta afeição e admiração para com seu antigo mestre, Rothbard escreve um excelente resumo introdutório da obra de Ludwig von Mises: O essencial von Mises; o livro é curto, com apenas 54 páginas, das quais se extrai, como o título bem diz, oessencial de toda a magna obra de seu professor. Ao lado de “As seis Lições” – transcrições, para o papel, de palestras dadas por Mises na Argentina, compiladas e publicadas, após a morte do autor, por sua esposa –, o livro em questão é a “introdução-chave” para compreender de forma adequada o trabalho de Mises.
A trajetória de Mises, porém, não pode ser explicada sem, ao menos, uma introdução histórica ao que influenciou e precedeu Mises, isto é, a economia oriunda do século XIX e, em resposta a ela, a Escola Austríaca em suas singulares características. Antes da existência da análise econômica “austríaca”, o pensamento que mais exercia influência na Europa era o que se derivou das análises e conclusões de David Ricardo, comumente chamado de “rIcardiano”; tais teorias econômicas levavam em consideração não a análise do individual para projetar suas pesquisas e investigações, mas o que se considerava como “classe social”, na época.
As considerações ricardianas, portanto, eram embasadas em comportamentos de grupos de pessoas, diferenciados socialmente. As análises de valor não consideravam a relatividade que o subjetivo humano exerce nos objetos comerciados. Rothbard afirma que, na época, não se entendia bem o motivo de o diamante ter um preço muito superior ao pão, uma vez que o pão, como um alimento, é mais vital para o Homem que uma pedra preciosa. A solução da época era, porém, insatisfatória; uma vez que ignoravam as ações dos consumidores, suas análises tombavam em erros, dando preferência aosobjetos e a produção desses ao invés das tendências do público consumidor, isto é, as mercadorias detinham um valor próprio, inerente, somado ao custeio da confecção, o que formava a fonte básica para determinar o preço das coisas.
Karl Marx e sua lógica só puderam fazer sentido graças aos moldes da economia de sua época. Dadas as premissas determinantes do valor da matéria, os silogismos marxianos e marxistas têm todo o sentido dentro das perspectivas ricardianas (a “Mais-Valia” não teria referências para ser proposta sem as bases dos ricardianos, por exemplo), pois estes também acreditavam em Luta de Classes (a disputa entre o lucro, o salário e os alugueis. A disputa entre o patrão capitalista e o trabalhador), o que deu mais “argamassa” para o castelo de cartas de Marx.
Mas a crítica surgiu. Em meio a uma Europa muito influenciada pelas teorias de David Ricardo, o final do século XIX foi, deveras, produtivo e positivo para considerações mais sólidas na economia. Rothbard marca um ano exato, 1871, como um período de considerável mudança no mundo acadêmico, em relação a economia. Mas de todos os inovadores existentes na época, o autor aponta como mais notável aquele que foi o fundador da Escola Austríaca, Carl Menger. Menger teve como aluno o singularEugen von Böhm-Bawerk, o professor de Mises. Böhm-Bawerk, além de refinar e aprimorar o trabalho de Menger, foi aquele que centrou no indivíduo o ponto chave para a análise econômica.
Para Böhm-Bawerk, analisar o comportamento com base nas classes era errôneo. Em vez disso, o economista optou por centrar sua teoria no agente, ou seja, no consumidor e em seus desejos e valores, que se somavam para gerar as demandas do consumista – isto é, as verdadeiras questões que delimitavam o modo por que o mercado iria se comportar; com isso o problema do valor, existente nos ricardianos e marxistas (o marxismo não tinha força na época, era algo de nicho, sem grandes abrangências nem mesmo dentro do socialismo; os grandes economistas e filósofos da época não deram muita atenção para a obra de Marx) foi solucionado pela escola austríaca[1].
Böhm-Bawerk, portanto, “cria” as bases para o pensamento de Ludwig von Mises. Centrando mais na questão humana e aperfeiçoando as noções de valor dos antigos economistas, Böhm-Bawerk é central para o entendimento da obra de seu aluno.
Mises, doutorando-se em Direito e Economia em 1906, se destacou nos seminários de seu professor. Com o passar do tempo, o gênio de Mises notou, como conta Rothbard, que ainda havia lacunas na Escola Austríaca, além de certas questões necessitarem de um refinamento.
A mais notória brecha encontrada por Mises foi a questão da moeda, pois esta não foi analisada pelos austríacos anteriores. Havia uma dissociação, em todas as teorias econômicas existentes até o início do século XX, entre a moeda e o “nível de preço” nas análises teóricas do mercado, que não levavam em consideração a ação individual dos homens. Mises, em seu prestigioso livro The Theory of Money and Credit (Theorle des Geldes und der Umlaufsmitel), publicado em 1912, além de suprimir a dissociação existente, colocou em relevância o ato individual humano. Rothbard assim explica: “Mises mostrou que, se o preço de qualquer outro bem é determinado por sua quantidade disponível e pela intensidade com que os consumidores o demandam com base na utilidade marginal deste bem para eles, também o ‘preço’ ou poder de compra da unidade monetária é determinado pelo mercado de maneira idêntica. No caso do dinheiro, sua demanda se dá no sentido de conservar o próprio saldo em caixa – no bolso ou no banco – para gastá-lo mais cedo ou mais tarde em bens e serviços úteis. A utilidade marginal da unidade monetária – o dólar, o franco ou a onça de ouro – determina a intensidade da demanda de saldos em caixa. Por sua vez, a interação da quantidade disponível de moeda com a demanda da mesma determina o ‘preço’ do dólar (i.e., que quantidade de outros bens ele pode comprar)”. A utilidade marginal da moeda, por parte da população, é imperativa para a ocorrência do aumento da oferta de moedas.
Tratando-se da inflação, Mises fez ressurgirem algumas ideias positivas de David Ricardo, argumentando que o aumento não natural – pelo governo – da moeda não acarretaria em bem algum, criando certa riqueza para os primeiros que recebem a alta de moedas, mas desvalorizando a economia em seguida – o ataque contra as medidas artificiais por parte dos bancos e do Estado é uma das maiores características de Mises; o mercado deveria se regulamentar sozinho, e as interferências sempre acarretariam em desastres econômicos. Em The Theory of Money and Credit, como aponta Rothbard, já estavam embutidos alguns elementos da explicação do ciclo econômico. Antes de Mises, os economistas não sabiam o porquê de o mercado, aparentemente, entrar em fases de prosperidade e depressão financeira, contudo a explicação do nosso economista austríaco – embasada nas análises de David Ricardo, Böhm-Bawerk e Knut Wicksell, que foram refinadas por Mises – resultou em sua Teoria do Ciclo Econômico, onde foi o primeiro, e único, a explicar satisfatoriamente o motivo pelo qual existem ciclos econômicos: a via artificial que não apenas o Estado, mas também os bancos adotavam ao criar créditos era o que causava a instabilidade econômica nas sociedades de maneira cíclica.
Como o marxismo não foi tema da Escola Austríaca no século XIX, Mises foi aquele que se pôs a abordar o cálculo econômico do socialismo. Na década de 20, o autor publicou em um jornal o artigo com o título O cálculo econômico na comunidade socialista, demonstrando que uma economia socialista é impossível dentro de uma sociedade industrial, pois o sistema de preços de um livre mercado, o único capaz de calcular racionalmente os custos e os fatores de produção, inexistia no sistema socialista. Em 1922, Mises reuniu um conjunto de críticas ao socialismo, na obra Socialism, que terminaram de refutar as propostas econômicas socialistas.
No período entre guerras, devido ao seu trabalho já publicado, Mises se tornou professor de economia na Universidade de Viena, todavia, o mundo pós-guerra se mostrava menos receptivo ao seu trabalho (The Theory of Money and Credit, por exemplo, só foi publicado em inglês em 1934, ano em que o autor deixa a Áustria). O globo se via com profundos flertes para com o Estatismo e o planejamento governamental, o que gerou mais intervenção do Estado na economia e, por conseguinte, mais inflação.
Em termos metodológicos, Rothbard aponta que Mises esteve bem distante do racionalismo positivista do início do século XX. A ciência econômica embasada no positivismo apela para uma concepção mecanicista do homem, aplicando nas sociedades princípios físicos, isto é, da mesma maneira que se analisa um fenômeno no campo da física, se analisaria um acontecimento social. Para os positivistas (e outras escolas econômicas embasadas no mesmo princípio), a matemática era determinante para prever e fundar teorias econômicas; buscavam padrões regulares e quantitativos por meio de estatísticas ao analisar uma face da sociedade humana, contudo, Mises foi além.
Em vez de conceber o homem como um objeto, tal como um átomo, onde fatores físico-químicos seriam determinantes para suas ações e, por meio desses, se mapeariam os padrões das sociedades para formular teorias mais corretas, Mises creditou, de maneira mais sensata, sua análise na Ação Humana.
O maior problema da análise e apuração positivistas é que os homens não podem ser quantificados. Qualquer pensamento, sentimento, influência e ato humano possui variáveis incalculáveis para apresentar uma simples existência, de modo que, com o auxilio de metodologias que ignorem a quantidade exorbitante de variantes, torna-se impossível uma investigação e propostas adequadas para estudar o Homem. áodavia, Mises não deixou de estudar e teorizar com base no Homem.
Não foi com um discurso positivista – poder-se-ia dizer cientificista – que Mises moldou sua principal teoria, mas sim embasado em axiomas da Natureza Humana[2], ou para ser mais exato: na natureza e essência da ação humana. Rothbard assim exemplifica: “o axioma fundamental da própria existência humana: os indivíduos têm metas e agem para alcançá-las, agem necessariamente ao longo do tempo, adotam escalas ordinais de preferência e assim por diante”. São derivações, como a exemplificada, que traçam e enxertam toda a teoria e metodologia de von Mises, isto é, captando máximas inteligíveis e universais do comportamento humano – o que o distancia, sem sombra de dúvidas, do relativismo pós-moderno.
Com tais procedências, em 1949, o autor publica sua Magnum Opus: a Ação Humana, o primeiro, e único, tratado de economia que existiu. Mises foi singular o suficiente para inovar de maneira que ninguém, nem mesmo dentro da Escola Austríaca, inovou em matéria de economia. Nenhum economista havia cogitado tentar preencher todas as principais lacunas, e problemas, que as ciências econômicas possuíam. Rothbard, com efeito, descreve: “Human Action é o que de melhor se poderia desejar; é ciência econômica completa, desenvolvida a partir de sólidos axiomas praxeológicos, integralmente baseada na análise do homem em ação, do indivíduo dotado de propósitos agindo no mundo real. E a economia elaborada como disciplina dedutiva, desfiando as implicações lógicas da existência da ação humana”.
A Ação Humana foi, deveras, confrontante com as teorias de John Maynard Keynes, em seu famoso General Theory of Employment, Interest and Money, publicado treze anos antes. Keynes, em sua obra, tenta justificar – de maneira insuficiente e falha – o Estado Provedor-Militarista (Welfare-Warfare State), guinando toda a tendência econômica do mundo para uma intervenção estatal poderosa e em uma escala nunca antes vista; com a influência mundial do trabalho de Keynes, até mesmo a Escola Austríaca fora afetada. Mises e sua escola econômica sofreram com deserções, e a Europa, afora o bloco comunista, e os Estados Unidos se viam amplamente influenciados pelo intervencionismo defendido por Keynes.
Mas os frutos de Mises iriam florescer. Um de seus alunos fiéis, Friedrich A. von Hayek, terminaria ganhando o Prêmio Nobel de Economia em 1974; as ideias de Hayek influenciaram todo um mundo em crise, graças às desastrosas consequências dos conceitos de Keynes. O Reino Unido, sob Margaret Thatcher, por exemplo, conseguiria escapar da grande crise econômica que vivia graças a Hayek, um digno herdeiro do pensamento de Mises – mesmo os partidos esquerdistas britânicos, depois da Era Thatcher, não conseguiriam atuar sem a influência do governo de Thatcher, que tem o cerne nas vigorosas ideias de Mises.
O essencial von Mises, para além de um livro introdutório, é também um ótimo começo para entender, mesmo que de maneira superficial e rápida, a História da economia do século XIX e do XX, mas também é um livro que nos permite conhecer mais quem foi von Mises, da mesma forma que a obra transmite o que fez von Mises.
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