Sempre me espantou o fato de que as ideologias mais nefastas e assassinas, como o nazismo e o comunismo, foram paridas pela mente de seres supostamente esclarecidos. Nunca foram movimentos de massas, de proletários, de baixo para cima, e sim criações de uma elite pensante, imposta de cima para baixo.
É verdade que ambos atraíram, depois, muitos bárbaros no sentido coloquial, os brutos que encontraram nessas ideologias a desculpa para dar vazão à sua agressividade. Mas eles foram alimentados por professores, como ocorre até hoje com o socialismo, inclusive no Brasil.
Por isso achei interessante o livro Believe and Destroy: Intellectuals in the SS War Machine, de Christian Ingrao. Como quase todo historiador, o autor se torna um tanto detalhista e até enfadonho às vezes, mas o resultado geral é um bom retrato psicológico e sociológico da elite de pensadores de classe média que construíram a narrativa nazista e tornaram o genocídio possível.
Ingrao estudou cerca de 80 intelectuais da SS, que foram fundamentais para o avanço da máquina de destruição de Hitler. Eram, nas palavras do autor, bonitos, brilhantes em alguns casos, inteligentes e cultos. Não é exatamente o perfil que combina com a imagem de um brutamontes com a tatuagem da suástica no braço, rindo enquanto atira numa vítima indefesa. Mas foram esses intelectuais os responsáveis diretos e indiretos pela morte de milhões de pessoas.
O esforço do autor foi na tentativa de compreender – sem justificar – como esses homens passaram a crer naquela ideologia, e como tais crenças os levaram a destruir, a colocar a mão na massa. A imensa maioria desses intelectuais da SS era criança ou adolescente durante a Primeira Guerra. Passaram pela fome, pela sensação de luta pela sobrevivência dia a dia, pela privação constante do básico, e isso tudo afeta bastante a formação de alguém.
A explicação para tanto sofrimento se faz necessária. O mundo das representações, dos símbolos e mitos, entra em cena. A narrativa de um povo que foi levado a lutar uma guerra de defesa para sobreviver contra inimigos cruéis e antigos encontrou forte eco naquela geração. A derrota já era humilhante demais. O caos social e econômico idem. Buscar bodes expiatórios e retratar os alemães como vítimas passou a ser um exercício intelectual comum.
Esse tipo de discurso se alastrou por toda a Alemanha entre as guerras, pela imprensa, pelas escolas, pelas imagens que circulavam. A guerra foi interpretada como uma batalha defensiva na qual o destino da Alemanha estava em risco, diante de um inimigo desumano e animalesco em seus métodos. Em lares de classe média e alta, portanto, a guerra se transformou em algo derivado de uma utopia milenarista: o futuro do povo alemão ameaçado por bárbaros, que são sempre os outros.
Do lado russo, os alemães só enxergavam monstros. Histórias de estupros, mutilações, execuções sumárias espalhavam-se, assustando o povo. Não era uma visão totalmente falsa da Rússia de 1917, como sabemos. Mas o importante, aqui, é constatar que os alemães filhos da guerra preferiram se evadir da questão da responsabilidade de seu país no conflito, uma atitude coletiva próxima de uma repressão psicológica.
Nem mesmo a derrota da Alemanha em 1918 era mencionada. Havia uma recusa geral em se aceitar tal destino, que encontrou adesão especial nos mais jovens. A derrota inominável também foi inimaginável, e tornou óbvio que as hostilidades deveriam continuar. Os pensadores alemães não conseguiam representar a derrota em 1918 de forma isolada; era parte de algo muito maior, como as revoluções comunistas, a invasão francesa, o desmembramento dos territórios do Leste etc.
Ganhava corpo, então, a crença numa iminente destruição da Alemanha, em seu desaparecimento como estado-nação, inclusive como uma entidade biológica. Eram tempos de muito foco na questão da raça, e essa mentalidade encontrou forte simpatia na Alemanha. Foi nesse contexto de angústia que esses pensadores passaram sua infância e juventude, incapazes até de descrever seu sofrimento na época.
Os futuros intelectuais da SS eram alunos bons, em alguns casos excelentes. Mas havia esse buraco psicológico. O outro fator relevante, segundo o autor, é o sociológico: eles formaram um grande círculo de network, uma verdadeira patota, e os elos de conhecimento eram fortalecidos à medida que os nacional-socialistas avançavam no poder, principalmente a partir de 1933. Esses pensadores já eram ligados por clubes e outras associações, e nada mais natural do que uns indicarem os outros para cargos disponíveis.
O radicalismo político era evidente nesses jovens, e os grupos nacionalistas formados após a guerra conseguiram eleger os membros dos conselhos estudantis. Esses conselhos, por sua vez, davam apoio e suporte aos alunos interessados nos temas nacionalistas e racistas. Para subir no corredor do poder era importante fazer parte desses clubes e grupos.
Uma característica constante marca a vida dos estudantes durante todo o período entre guerras: a importância generalizada da memória da Grande Guerra, e seu papel na biologização dos sistemas de representação e de um radical anti-semitismo, um conjunto comum de crenças compartilhadas por muitos nacionalistas, pelos alunos de 1920, bem como por aqueles de 1935. Esse era o denominador comum que unia os nazistas.
A imagem clichê do nazista como um bruto não é corroborada nesses fatos. Esses intelectuais ativistas passavam nos exames, não eram os “bad boys” típicos que conhecemos, demonstravam alguma sofisticação cultural. Eram das áreas de humanas muitas vezes, historiadores, cientistas políticos, economistas. E usavam esse seu conhecimento específico a serviço da causa, tentando encaixar fatos históricos na narrativa nazista. Produziram vasto conteúdo que “provava” a tese racial do nazismo.
O sistema de crenças interiorizadas pelos intelectuais da SS reformulou a história, transformando-a em uma sucessão de lutas, confrontos e combates sobre identidade, todas marcadas pela questão da etnia. O determinismo racial fornecia assim ao intelectual uma representação da história impregnada de imanência, transfigurada pela providência, e guiada por um senso de propósito. Tudo ficava mais simples: os inimigos bárbaros queriam destruir os nórdicos de sangue puro, desde sempre.
Uma visão tribalista e racial da história. E, em contrapartida às derrotas humilhantes do passado, os intelectuais da SS ofereciam a utopia milenarista, o paraíso que chegaria com o Reich de mil anos sob o domínio da humanidade. Não difere muito da utopia comunista, trocando apenas os personagens: em vez de classe, será a raça a usufruir desse futuro maravilhoso.
Mas é importante destacar que a utopia serviu tanto para atrair adeptos quanto o medo, no caso o de ser extinto como povo. De um lado, a oferta do paraíso; do outro, o receio da aniquilação. Muitos aderiram ao nazismo na crença de um movimento defensivo contra os inimigos implacáveis. E foi isso, em parte, que explicou a escalada da violência, chegando até no genocídio.
No começo, crianças e mulheres eram poupadas, e os judeus eram contidos em guetos, como evidência de que os nazistas encaravam a batalha como uma luta de defesa contra inimigos perigosos. Com o tempo, porém, a narrativa de toda uma raça inferior colocando em xeque a própria existência do povo alemão serviu para intensificar o grau de violência, e até crianças foram mortas como moscas. Era preciso, para os intelectuais nazistas, exterminar a praga que ameaçava sua nação.
Somente esse tipo de crença pode explicar o grau de sacrifício que muitos estavam dispostos a enfrentar em nome da causa. Tanto colocando a própria vida em risco, ou mesmo se suicidando quando a derrota ficava evidente, como pelo ato desumano de matar crianças, o que não ficava sem consequências psicológicas. Era preciso “desumanizar” o máximo possível o outro, mas mesmo assim houve casos de peso na consciência. Os intelectuais tentavam fornecer uma desculpa para aquilo que qualquer ser humano normal sabe ser errado, absurdo, monstruoso.
Na opinião desses intelectuais, a Rússia era realmente uma terra de sub-humanos e bestialidade, uma terra de fome e dominação judaica. A guerra que travavam era de fato uma “grande guerra racial”, e o inimigo foi amplamente retratado como animalesco e percebido como uma besta selvagem. Essas representações, destilando angústia e ódio nas mentes dos assassinos e seus oficiais, tornaram possível para os homens aceitar o genocídio. Eles fizeram isso em uma escala maciça.
O nazismo, como o comunismo igualmente bárbaro, não foi obra do “povo”, mas da elite intelectual que, incapaz de lidar com seus próprios problemas psicológicos e suas angústias existenciais, pariu toda uma ideologia coletivista nefasta, uma utopia acalentadora, uma narrativa simplista recheada de bodes expiatórios que serviam para justificar seus fracassos. As massas podem ser utilizadas depois, como instrumentos de manobra, mas na origem da ideologia assassina está sempre a intelligentzia. A barbárie que pensa e demonstra até alto grau de sofisticação cultural. Um paradoxo. Um espanto…
Rodrigo Constantino
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