Statue of Liberty seen from the Circle Line ferry, Manhattan, New York| Foto:

Não existe apenas um liberalismo, e sim vários, com diferentes enfoques, numa longa trajetória de luta pela liberdade individual. Um bom livro para quem quiser mergulhar mais nessa cronologia é O Liberalismo Antigo e Moderno, de José Guilherme Merquior, um dos pensadores mais eruditos que o Brasil já teve. Sua própria postura era a de um liberal-social, ou seja, aquele liberal moderno que dá mais ênfase à igualdade e aos direitos positivos (liberdade para, não apenas de), muito parecido com o “liberal” no sentido americano, quase um social-democrata (infelizmente, nos Estados Unidos ocorreu uma radicalização de esquerda no meio “liberal” e hoje há até socialistas assumidos no Partido Democrata).

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Ainda assim, um liberal clássico, um neoliberal ou mesmo um liberal-conservador poderá extrair boas lições e farto conhecimento da obra. Afinal, Merquior navega por inúmeros pensadores diferentes, aplicando incrível poder de síntese às suas principais contribuições às ideias tidas como liberais, considerando-se essa elasticidade que inclui o “liberalismo de esquerda” na lista. De certa forma, esses “liberais” estavam lutando contra o socialismo, na tentativa de resgatar ou preservar o modelo capitalista, ainda que o tiro possa ter saído pela culatra, pela ótica de alguns (nos quais me incluo).

A apresentação foi escrita por Roberto Campos, que lamenta o fato de as ideias chegarem sempre com atraso em nosso país, em que “a social-democracia não é percebida como o último reduto do dirigismo e sim como o primeiro capítulo do liberalismo”. Campos também reclama da dificuldade de se travar debates sérios no Brasil, sob a patrulha da esquerda, viciada em mitos e dogmas, que seduz idiotas os chamando de “progressistas” e intimidam patriotas os chamando de “entreguistas”. Ou seja, Merquior está para além da dicotomia PT x PSDB, e muito acima dos esquerdistas que sequer se deram conta de que o Muro de Berlim caiu.

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Nas palavras do próprio autor, “este é um livro liberal sobre o liberalismo, escrito por alguém que acredita que o liberalismo, se entendido apropriadamente, resiste a qualquer vilificação”. A gama de pensadores analisados, ainda que de maneira superficial, é impressionante, e inclui nomes associados a escolas do pensamento e áreas do saber bastante distintas. Diferentes contextos, assim como diferentes obstáculos às liberdades individuais, também ajudam a explicar o surgimento dos variados pontos de vista liberais. O inimigo nem sempre foi o mesmo.

Ir limitando o poder arbitrário do estado, por exemplo, foi o foco principal da luta liberal no período que Merquior chama de “protoliberalismo”. A busca pela autonomia do indivíduo, mantendo-o livre de coerção, sempre foi uma das bandeiras liberais. Claro, os conceitos podem variar, e fazer toda a diferença. Mas, na essência, essa defesa do indivíduo autônomo contra forças arbitrárias fez parte da trajetória liberal desde o começo. Independência, autonomia e poder de realização pessoal, sempre com foco no indivíduo: essas foram as marcas das primeiras batalhas liberais.

Em suas raízes, a conquista dos direitos religiosos plantou as sementes para liberdades mais amplas posteriormente. A proteção da propriedade, como destacou Locke, ou o enaltecimento da razão pelos Iluministas, tudo fez parte desse amplo espectro liberal. A divisão de poderes, defendida por Montesquieu, o conceito de direitos naturais (Locke, Grotius), e também o apelo democrático (Rousseau), tudo foi fruto dos movimentos liberais.

A liberdade econômica, que Merquior chama de “liberismo”, teve em Adam Smith um dos principais defensores iniciais, mostrando como a divisão de trabalho poderia levar à prosperidade e ao bem-estar geral numa sociedade livre. Hayek e Mises deram continuidade a essa linha de raciocínio. Mas o avanço das ideias liberais não se limitou ao aspecto econômico, chegando também aos constrangimentos de ordem pessoal, protegendo assim direitos civis importantes. Delimitar o poder estatal e a “tirania da maioria” foi uma preocupação constante de muitos liberais.

Os que Merquior chama de liberais conservadores demonstraram grande preocupação com os excessos da democracia, que poderia ela mesma destruir as liberdades (o “paradoxo da democracia”, quando eleitores escolhem o despotismo). Tocqueville também se mostrou preocupado com o conformismo da opinião. Por falar em Tocqueville, os liberais rejeitavam o radicalismo revolucionário dos jacobinos, mas não desejavam abandonar completamente as supostas conquistas da Revolução Francesa, ao contrário dos reacionários, que gostariam de restaurar o Antigo Regime.

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Para Merquior, o “legado do liberalismo clássico pode ser sintetizado na figura de um equilíbrio entre democratismo e libertarianismo”. A condenação ao centralismo burocrático e a defesa do Estado de Direito, ou seja, de um governo de leis conhecidas e igualmente válidas, e não de homens com seus impulsos e desejos arbitrários, também configuram entre as conquistas liberais.

A partir da virada do século XIX para o XX, alguns pensadores começaram a escrever sobre os limites do individualismo e destacar a importância do social, ainda assim rejeitando o socialismo. Admito que me incomoda incluir no rol dos liberais figuras como Kelsen, Bobbio, Keynes, Dewey, e Rawls, a menos que façamos essa importante distinção entre liberalismo e “liberalismo de esquerda”, ou “social-liberalismo”. Ainda assim, essa bandeira de maior igualdade dentro do modelo liberal faz parte, para Merquior, de sua pluralidade essencial e também de sua eterna tensão entre igualdade e liberdade. Esses pensadores não eram socialistas, ainda que possam ter sido usados por socialistas.

Há, ainda, aqueles que não se diziam ou não eram liberais, mas que lutaram contra o totalitarismo e merecem menção nessa trajetória. Gente como George Orwell e Albert Camus, por exemplo. E sociólogos, que normalmente não são associados ao liberalismo, também merecem fazer parte da lista em alguns casos, segundo Merquior. Falamos de Raymond Aron ou Ralf Dahrendorf, por exemplo, com suas importantes contribuições na refutação das ideias marxistas.

Em suma, como conclui Merquior, são vários os liberalismos, com uma incrível variedade de ideias. Seriam duas as razões para isso: em primeiro lugar, os já mencionados obstáculos diferentes em cada época ou em cada país; em segundo lugar, os diferentes conceitos de liberdade. Para o autor, essa seria justamente sua grande força:

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Como foi observado por alguns distintos sociólogos como Aron e Dahrendorf, a nossa sociedade permanece caracterizada por uma dialética contínua, embora sempre em transformação, entre o crescimento da liberdade e o ímpeto em direção a uma maior igualdade – e disso a liberdade parece emergir mais forte do que enfraquecida.

Não é preciso concordar com a conclusão para apreciar o livro. De minha parte, um liberal mais conservador que desconfia do democratismo exacerbado, apelos à igualdade (“justiça social”), revoluções utópicas e tudo mais, creio que a capacidade de se reformar é uma das vantagens do liberalismo, mas que atualmente o pêndulo exagerou demais para o lado de lá. Ou seja, precisamos do resgate de certos valores liberais mais clássicos, pois o lado “igualitário” moderno acabou prevalecendo e, por mais que não fosse esse o intuito de muitos liberais-sociais, como o próprio Merquior, esses modelos se tornaram muito semelhantes ao socialismo, ainda que numa forma mais “light”.

Há, hoje e em todo lugar, intervenção estatal demais, ausência de coerção de menos. No Brasil, então, nem se fala. Em nosso país Marx ainda é considerado quase um deus, enquanto de Hayek nem se ouve falar. “O Brasil está tão distante do liberalismo – novo ou velho – como o planeta Terra da constelação da Ursa Maior!”, resumiu Roberto Campos.  A leitura do ótimo livro de Merquior deixa isso bem evidente…

Rodrigo Constantino