As sociedades ocidentais estariam ameaçadas pelo Islã radical do lado de fora e pelo “multiculturalismo” do lado de dentro, sofrendo uma grave crise de identidade. Esse é o diagnóstico que Roger Scruton faz em Culture Counts, onde defende a tese de que, para o projeto da civilização ocidental perdurar, será preciso conquistar não só as mentes, mas também o coração das pessoas.
Ele admira o experimento americano, filho do europeu, e reconhece seus dois grandes legados para a humanidade: uma democracia viável e o progresso tecnológico. Mas, ao mesmo tempo, acredita que esses benefícios são insuficientes para falar às emoções, ainda que despertem orgulho em seus cidadãos. Apenas essa visão de progresso material não seria capaz de enfrentar o sarcasmo niilista dos críticos internos nem o fanatismo sem humor dos inimigos externos.
É aí que entra, para Scruton, a importância da “alta cultura” da civilização ocidental, sua literatura, as artes e a herança filosófica que vinham sendo ensinados na Europa e nos Estados Unidos há tempos, mas que recentemente têm sido alvos de cada vez maiores ataques, como se fossem apenas instrumentos de opressão dos “homens brancos europeus”.
Ao contrário da ciência, a cultura não é o repositório de informação factual ou verdades teóricas, tampouco é uma espécie de treinamento de habilidades, retóricas ou práticas. Ainda assim, sustenta Scruton, ela é uma fonte de conhecimento: um conhecimento emocional, que diz respeito ao que devemos fazer e sentir.
Essas expressões culturais surgiriam como resposta à percepção da fragilidade da vida humana, e incorporam um reconhecimento coletivo de que dependemos de coisas fora de nosso controle. Para seus inimigos, não há nada a ser aprendido nesse legado cultural além dos “preconceitos” de cada época distinta. Seus detratores desdenham de qualquer possibilidade de conhecimento objetivo, de toda autoridade, rejeitando o próprio conceito de clássico. No campo da cultura, eles argumentam, qualquer coisa vale. Ou seja, nada vale.
Mas foi precisamente a aspiração a uma verdade universal que sempre marcou a cultura ocidental. A cultura, admite Scruton, especialmente a alta cultura, é a criação e a criadora de elites. Mas, apesar de ser cria de uma elite, seu significado e as emoções que desperta são comuns a todos. Os clássicos são clássicos justamente porque resistiram ao “teste do tempo”, sobreviveram porque carregam mensagens importantes. Shakespeare não é relevante apenas para quem já leu sua obra.
A civilização ocidental demonstrou ao longo do tempo uma incrível habilidade em assimilar a tradição de outras culturas, e esse é um de seus maiores diferenciais. O que muitos “multiculturalistas” não percebem é que a cultura ocidental já incorpora partes importantes de outras culturas, ao contrário de muitas civilizações fechadas que rejeitam tudo aquilo que vem de fora. O sucesso de Mil e uma noites no mundo ocidental comprova isso.
Esse progresso cultural só foi possível no Ocidente porque houve julgamento. A era de não-julgamento, por medo da acusação de preconceito, é a morte da cultura. Na prática, é impossível fugir do julgamento mais objetivo, e mesmo os “multiculturalistas” julgam, pois adoram condenar a civilização ocidental, deixando de lado seu relativismo conveniente. Rimos de uma piada ou a consideramos ofensiva porque julgamos. Algo é de “bom gosto” ou “mau gosto” porque há julgamento, e ele é indispensável para nós.
Se qualquer coisa pode ser considerada arte, então o conceito de arte perde seu sentido e seu ponto. Tudo que resta é apenas o fato curioso de que algumas pessoas olham para algumas coisas, e outras para outras coisas. No fundo, nós apreciamos piadas, trabalhos artísticos, argumentos, literatura, hábitos, roupas e comportamentos porque julgamos. Uma cultura consiste em todas essas atividades organizadas num “objetivo comum de verdadeiro julgamento”, nas palavras de T.S. Eliot.
Claro, é possível pessoas totalmente refinadas e educadas, do ponto de vista cultural, mostrarem-se verdadeiros psicopatas. A história mostrou alguns casos conhecidos. Da mesma forma que é possível pessoas sem muito conhecimento cultural agirem com retidão e moralidade. O que Scruton sustenta é que a cultura não é uma garantia em si para cada indivíduo, e sim que sua importância está na preservação desse estoque de conhecimento emocional intangível, que acaba ajudando a moldar o comportamento dos indivíduos em geral.
Por isso a cultura importa: ela é um recipiente em que os valores intrínsecos são capturados e transmitidos. Ao contrário de simples distrações, a cultura preserva ensinamentos morais, que acabam chegando até a maioria das pessoas que vivem imersas nela. No mundo que experimenta o declínio da religião, a cultura ganha ainda mais relevância, como um canal mais viável pelo qual ideias éticas podem entrar na mente das pessoas céticas.
A era da informação pode ter trazido mais conhecimento, mas não necessariamente mais sabedoria. Para Scruton, vivemos um declínio da educação, especialmente da educação moral. O ensino religioso esteve historicamente menos preocupado com a doutrina do que com rituais, máximas e histórias, cuja meta era justamente a educação moral: ensinar o que fazer e, mais importante, o que sentir, i.e., cultivar o coração. A cultura teria, então, esse papel de repositório de conhecimento emocional.
Para Scruton, a cultura deve conservar, em meio a qualquer problema, a mensagem de algo maior, mais elevado, a imagem de um mundo de sentimento humano que é também a prova do valor humano. E a cultura, mesmo para os que não são parte da elite cultural, pode transmitir esses valores elevados, ainda que por imitação. Afinal, como sabia Aristóteles, a virtude está no hábito, e é melhor que as crianças absorvam as coisas certas vindas de cima do que modos que incutem vícios.
As histórias e os mitos de heroísmo, de nobreza, de honra e virtude ajudam a moldar o comportamento virtuoso das pessoas. Os adolescentes podem encontrar nesse arcabouço cultural “ritos de passagem” para a fase adulta, de maior responsabilidade. Já o “desconstrutivismo”, o ataque furioso e recalcado contra toda a alta cultura, contra o próprio conceito de cultura, de melhor ou pior, de clássico, acaba produzindo uma massa de desamparados sem referência, ou com as piores referências.
Para Foucault e seus seguidores, tudo isso não passa de um “discurso de poder”. Mas em vez de certas tradições serem o efeito de uma determinada ordem social, elas podem muito bem ser sua causa, e derrubá-las significaria, então, acabar com essa ordem social. Somente quem toma como garantidas a relativa liberdade e a segurança da civilização ocidental, ou quem é niilista e deseja a destruição, pode ser indiferente a tal risco.
É justamente porque existem valores universais que os “multiculturalistas” conseguem apelar para seu relativismo seletivo e cuspir nos defeitos da civilização ocidental. Caso contrário, se qualquer coisa valesse mesmo, se fosse tudo “apenas diferente”, então os “multiculturalistas” não conseguiriam fazer críticas a uma determinada cultura. No fundo, eles sabem que atacam o que é melhor, pois desejam defender o que é pior. Somente com base em valores humanos universais podemos repudiar determinados atos.
Esse julgamento é fundamental para a preservação da cultura, e tem sido um diferencial importante do Ocidente, como legado do Cristianismo. O subjetivismo exacerbado, o relativismo e o irracionalismo são defendidos não para respeitar e tolerar todas as opiniões, como seria o esperado, mas precisamente para excluir a opinião daqueles que acreditam em autoridades antigas e verdades objetivas. Seu objetivo real é desqualificar a cultura ocidental como algo racista, etnocêntrico, patriarcal e, portanto, inaceitável. Somente com tal malabarismo os “multiculturalistas” conseguem a façanha de acusar a tolerante civilização ocidental de intolerância para justificar até mesmo o radicalismo islâmico.
Em suma, o julgamento crítico sempre foi parte da cultura ocidental, e ele é fundamental para sua preservação. O valor estético, o conceito de arte como algo voltado para tudo o que é eterno, mais elevado que as coisas efêmeras à nossa volta, as músicas que, com suas estruturas complexas, despertam emoções mais elaboradas nos ouvintes, a arquitetura que procura garantir uma sensação de harmonia com o entorno, a literatura que procura se eternizar ao falar do universal e transmitir lições morais e empatia, tudo isso serve para tornar o mundo um lugar melhor, e chega também aos mais ignorantes por meio da cultura.
Vivemos, porém, numa época em que os julgamentos estéticos e morais são evitados. Todos têm gostos, preferências, mas eles em nada diferem da preferência pelo tipo de alimento, e servem apenas para atender a desejos imediatos, aos instintos. Isso nos aproxima dos animais irracionais. Em tal ambiente, o julgamento é visto como uma ameaça. “Em outras palavras”, diz Scruton, “a tentativa de construir um reino de valor intrínseco – o que define a cultura – é visto com grande suspeita”. Nada mais tem valor universal ou intrínseco; tudo é avaliado somente com base em sua utilidade em atender nossos impulsos irracionais. O “progresso” nos trouxe de volta ao estado animalesco.
Mas Scruton não é tão pessimista assim. Ele enxerga reações importantes, ventos de mudança, pessoas e movimentos que lutam para preservar e resgatar a riqueza cultural do Ocidente de seus inimigos bárbaros, de fora ou de dentro dos portões dessa civilização. Ainda é possível impedir uma nova Idade das Trevas.
Rodrigo Constantino
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