É o décimo livro que leio desse autor. Isso só pode querer dizer uma coisa: considero Theodore Dalrymple um dos mais importantes pensadores da atualidade, e ele tem tido uma grande influência em meu próprio pensamento. O médico britânico sempre traz análises interessantes e boas reflexões, com incrível objetividade e perspicácia. Dessa vez foi The New Vichy Syndrome que devorei, sobre como os intelectuais europeus têm sucumbido ao barbarismo e abandonado a própria civilização ocidental.
De fato, trata-se de um fenômeno instigante: como que aqueles que deveriam ser os guardiões da civilização mais avançada que já vimos se tornaram seus maiores detratores? Dalrymple não tem visão muito otimista do futuro da região, que deverá continuar refém de burocratas em Bruxelas, declinando relativa e absolutamente em termos econômicos, e cada vez mais frágil em questões mundiais. E justamente por conta dessa mentalidade predominante.
Muitos percebem isso, mas sofrem de paralisia, incapazes de fazer algo prático para enfrentar os desafios e mudar o destino. Esperam simplesmente que o perigo desapareça, mas nada fazem para tanto. São como o coelho imobilizado pelo arminho, um carnívoro de pequeno porte capaz de devorar uma presa de até dez vezes seu tamanho. E todos, até mesmo os ricos, passaram a se considerar vítimas oprimidas na Europa.
Por trás disso, Dalrymple identifica o efeito psicológico da perda de status global, de quem já foi um dia o farol da humanidade, o líder da civilização, o símbolo do poder. Tudo isso foi chacoalhado no século XX, após as duas guerras mais sangrentas da história e os regimes coletivistas totalitários que eliminaram milhões de inocentes. Uma crença de que a própria história não contém nada de positivo leva ou a sonhos utópicos de um novo começo, ou a um fracasso de resistir a tais sonhos. Ou seja, fanatismo ou apatia.
Enquanto os ricos europeus tinham que contemplar um declínio apenas relativo, ainda era suportável, algo como viver num confortável museu de conquistas passadas. Mas à medida que o declínio começa a ser absoluto, num mundo dinâmico em que não há como ficar parado sem acabar andando para trás, a situação passa a ficar mais angustiante. E o ressentimento acaba tomando conta das pessoas.
A Europa hoje não é mais não-militarista, e sim anti-militarista. Os soldados não gozam de prestígio como ainda acontece nos Estados Unidos. A velha máxima de que quem deseja a paz deve se preparar para a guerra soa completamente estranha aos europeus modernos, todos “pacifistas”. Mas se a beligerância é um vício, isso não faz da covardia uma virtude. E essa postura acovardada não conquista o respeito dos demais, e sim seu desprezo.
Outra característica comum na Europa hoje é o hedonismo, a rejeição da ideia de sacrifício, de que transmitir os valores tradicionais de uma geração para a outra é o que faz a vida humana valer a pena, um atestado de que a vida compensa. Os europeus modernos não estão muito preocupados em substituir suas gerações pelas vindouras, pois possuem outras prioridades. Como, por exemplo, curtir a vida como se não houvesse amanhã. E a demografia vai jogando contra o próprio sistema “solidário” de bem-estar social, tornando as contas impagáveis para uma população que vive cada vez mais, com menos e menos filhos.
Quem vai ocupando o vácuo deixado é a população islâmica, que costuma ter uma taxa de natalidade bem maior. A Europa será cada vez mais islâmica pela simples força numérica. Dalrymple aqui diverge de muitos conservadores mais pessimistas, que consideram isso um cataclisma apocalíptico. Ele acha que muitos desses muçulmanos poderão ser mudados pela cultura europeia também, e não apenas mudá-la. Em muitos aspectos, aponta para a “cultura machista de gueto” como o principal obstáculo, não necessariamente o próprio Islã, que seria mais um pretexto para tal machismo. A culpa maior seria dos “progressistas”, não de Maomé.
Há controvérsias, especialmente sobre até que ponto esses imigrantes muçulmanos aceitam mesmo assimilar toda ou parte da cultura ocidental. Mas mesmo mantendo a dúvida, Dalrymple reconhece que existe o perigo do fanatismo, pois uma pequena parcela dessa população já seria gente demais disposta a destruir o Ocidente. Ainda assim ele é otimista: “Tais ameaças terroristas têm sido enfrentadas muitas vezes antes na Europa, no entanto, e não há razão para supor que esta é tão formidável a ponto de ser insuperável”.
Dalrymple considera um paradoxo que armas intelectuais tão primitivas como as islâmicas intimidem tanto os intelectuais europeus, depositários da herança intelectual mais rica que existe. Mas ele destaca o relativismo como um fator relevante: a transmissão dos valores herdados e o ato de se defender contra perigos parecem requerer uma crença de que existe valor naquilo que deve ser transmitido e defendido. E o relativismo mina essa crença. Espantoso é isso ocorrer onde foi o berço da ciência moderna, do conhecimento objetivo.
O próprio europeu hoje coloca misticismos, como a bruxaria tribal, como equivalentes à ciência. Não aceita mais autoridade alguma, pois tudo é relativo. E esse relativismo chegou até à educação, onde ensinar a gramática correta é visto como algo elitista e preconceituoso, prejudicial à “autoestima” dos mais pobres. Claro que essa visão é uma afronta aos mais pobres, e acaba ajudando a perpetuar a pobreza, ampliando o abismo entre ela e os mais ricos.
O declínio da religião ajuda a explicar o foco no curto prazo, na busca desenfreada por prazeres, como se a vida se resumisse a um supermercado. Isso também contribuiu com a perda da humildade dos homens, pois a filosofia do Cristianismo tinha a vantagem de reconciliar a importância única de cada homem, feito à imagem de Deus, com uma visão mais humilde de seu papel no mundo, impotente diante do Ser onisciente.
Hoje o homem arrogante quer usurpar o poder divino de controlar seu destino, ao mesmo tempo em que desconfia da capacidade de conhecimento objetivo: uma combinação explosiva, agravada pela falta de senso de propósito elevado em suas vidas. O resultado costuma ser um consumismo vazio e exagerado, uma exposição vulgar das próprias emoções e apetites, e seitas cada vez mais exóticas e tolas para substituir a ausência da religião. Gente que ridiculariza as religiões tradicionais se sente mais “espiritualizada” por “fazer sexo” com a natureza ou priorizar qualquer vida animal em vez da humana.
Em meio a esse vazio de sentido, com uma história do passado retratada apenas como uma sequência de violência e crimes, e sem se sentir representados pelos burocratas distantes de Bruxelas, os europeus acabam muitas vezes partindo para movimentos nacionalistas que lhes forneçam algum senso de pertencimento, de preenchimento.
Claro, se levado a extremos, o patriotismo pode se transformar em vício e ser perigoso. Ele não precisa, porém, significar falta de respeito pelos outros, podendo ser apenas uma identidade de um povo que compartilha de uma trajetória comum. Só que com os intelectuais denegrindo cada vez mais a história dessas nações e acusando de “xenofobia” qualquer um que simplesmente não se identifica com Bruxelas ou não aprecia as transformações culturais por meio dos imigrantes muçulmanos, esse sentimento poderá se fortalecer mais e mais até virar mesmo radicalismo.
E o orgulho ferido dessa multidão, que escuta dos intelectuais que seu passado foi apenas de violência e crimes, como o colonialismo selvagem, alimentado pelo ressentimento da perda de poder e status no mundo, poderá produzir um ambiente propício ao surgimento de um revanchismo em busca da glória perdida. Ou então isso tudo pode se transformar em pura desilusão e apatia: se sua nação fez uma omelete, você pode até perdoá-la por ter quebrado alguns ovos; mas se ela quebrou os ovos e não fez uma omelete, só resta mesmo a desilusão, a culpa.
E a culpa – pelos próprios crimes passados e também por aqueles imaginados – pode servir como uma última boia salvadora ante a indiferença. Se a África é uma bagunça por culpa da Europa, isso ao menos reserva ao continente alguma importância, um papel preponderante no destino do mundo. A alternativa é não ter efeito algum, ser um “nada”, o que pode simplesmente soar insuportável para muitos. Para o “amor próprio”, ainda pode ser melhor ser responsável por muitas mazelas e sofrimento do que por quase nada.
É por isso, explica Dalrymple, que podemos sair de uma crença de que tudo aquilo que fizemos é o melhor, que civilizamos o mundo todo, para outra de que tudo o que fizemos é o pior, que arruinamos o mundo. O vitimismo aparece para resgatar, então, essa elite culpada, mimada, nascida em meio a uma abundância que mataria de inveja seus ancestrais. O europeu moderno nunca teve tanto, e nunca se sentiu tão desamparado, vítima do destino e culpado pelo que há de pior no mundo ao mesmo tempo.
E assim, quem nos legou Goethe, Beethoven, Newton, Mozart, Einstein e tantos outros, acaba envergonhado por acreditar que só produziu Hitler, Mussolini e o rei belga Leopoldo II, colonizador do Congo. E se torna um prato cheio para os oportunistas de plantão, ou presa fácil para os predadores à espreita. Se não há diferença entre a civilização e a barbárie, como proteger a primeira? Como preservar seu legado?
Rodrigo Constantino
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