Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o pensador francês Julien Benda publicou um livro sobre a traição dos intelectuais. Essa traição, segundo ele, era abandonar a vocação dessa classe como homens voltados para a vida da mente, não da ação. Quando os intelectuais passaram a mergulhar nas questões mais práticas e materiais do mundo, o resultado foram as paixões políticas, sempre perigosas.
Por alertar sobre uma provável guerra ainda maior do que aquela que o mundo tinha acabado de experimentar, prevendo com precisão o caos produzido pelo fascismo, nazismo e comunismo, o livro teve merecido destaque. Mas andou um tanto esquecido depois, e, como sua mensagem continua atual, vale a pena resgatá-la.
O julgamento desinteressado e a fé numa verdade universal: esses foram os princípios tradicionais que guiaram a vida intelectual até recentemente. Não mais. Hoje, ao simplesmente defender a possibilidade de uma busca desinteressada pelo conhecimento e por verdades transcendentais, o sujeito já atrai o desprezo de muitos.
Os sofistas dominaram a cena. Benda usa Cálicles, personagem do diálogo platônico Górgias, para mostrar como a descrença num universo intelectual mais puro não é novidade. O que é novidade, diz ele, é que antes esse tipo despertava o desprezo dos demais pensadores, enquanto hoje é a regra, sendo enaltecido pela maioria. Basta pensar no Cálicles moderno: Nietzsche. O “filósofo do martelo”, que colocava o “desejo pelo poder” acima de tudo, que pregava uma ética “além do bem e do mal” e que via com desprezo a “escravidão moral” do cristianismo, costuma ser idolatrado em círculos intelectuais.
É o foco no “pragmatismo” que Benda condena como sendo a traição desses homens de letras, enquanto intelectuais. Claro que, como cidadãos, todos têm preocupações prosaicas e comezinhas, preferências políticas, boletos a pagar. Mas antigamente os intelectuais não cediam, como intelectuais, aos encantos do “homem comum” com suas necessidades básicas. Não ofereciam uma válvula de escape moral para seus desejos e instintos. Ao contrário: apontavam para um norte mais elevado, um horizonte que desafiava os homens a melhorar do ponto de vista moral.
Isso tudo mudou na era moderna, alega o autor. Deixar os impulsos e paixões dominarem nossas ações é sempre muito arriscado. E o pior é que essa mentalidade foi defendida pelos próprios intelectuais, que deveriam colocar o pensamento acima disso. Os bárbaros não vieram de fora, mas de dentro da classe pensante. A intelligentsia passou a pregar o desprezo ao pensamento, e essa foi sua grande traição.
Basta pensar nos pós-modernos, nos desconstrutivistas, na Escola de Frankfurt, para entender como foram longe demais nessa campanha contra a mente racional. A cultura, especialmente a alta cultura, passou a ser vista não como um mecanismo de emancipação do indivíduo, mas como um obstáculo elitista a esse fim. Tudo passa a ser pelo poder, ainda que mascarado, dissimulado. É luta de classes por todo canto, e ninguém mais age de forma realmente filosófica e imparcial, tentando se aproximar de uma verdade objetiva e universal. É a vitória do niilismo.
O que Benda está denunciando é a primazia das paixões políticas sobre a filosofia. Essas paixões despertam o ódio nas pessoas, provocando sentimentos enraizados em nossos corações. As duas características essenciais dessas paixões são a ideia fixa e a necessidade de colocá-la em ação. A preponderância dessas paixões políticas sobre todas as demais atingiu um patamar nunca antes visto na história.
O nacionalismo é particularmente analisado, por razões óbvias. Nas mentes “plebeias”, essa paixão nacionalista atinge um caráter de misticismo, de uma adoração religiosa, algo desconhecido antes. O caso mais evidente é o nacionalismo germânico, seguindo pelo italiano. Benda chega a definir sua época como aquela da “organização intelectual dos ódios políticos”.
Com base em pseudociência, esses intelectuais acreditavam ter descoberto a “lei da história”, e sua visão de mundo tinha de triunfar de qualquer jeito. Uma forma nova de um desejo antigo: ter o Destino ao seu lado, mas agora com embalagem “científica”. Havia também uma divinização do realismo. Sai Deus de cena, e a Nação, o Estado, a Classe se tornam os novos deuses. Para sua grandeza e vitória vale tudo. Enquanto Jesus repetia que seu reino não era desse mundo, os intelectuais modernos querem conquistar o mundo todo.
A humanidade praticava o mal antes, mas a diferença, segundo Benda, é que ela fazia isso honrando o bem, graças aos intelectuais. “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”, disse La Rochefoucauld. Essa foi a grande traição dos intelectuais: agora eles mesmos passaram a jogar o jogo das paixões políticas e enaltecer os vícios, desmerecendo as virtudes. Passaram a jogar para a plateia, dando aval às paixões humanas mais mesquinhas. Tornaram-se “práticos”, e nada mais. Em vez de representarem aquela pedra incômoda no caminho da perdição, eles passaram a ser reverenciados pelo povo, repetindo aquilo que as massas queriam, não o que deveriam escutar.
A tentação desses intelectuais de se colocarem a serviço de algum projeto de poder se tornou quase irresistível. Por isso vemos tantos artistas, historiadores, filósofos e pensadores em geral dando aval para bufões populistas, no afã de canalizar emoções rumo à ação, ainda que violenta. Pela visão estética da glória da nação ou da classe, esses pensadores traíram o povo incentivando suas paixões irracionais, em vez de atuar como um freio a elas.
As democracias liberais eram muito “entediantes” para esses intelectuais. Era bem mais emocionante defender alguma “solução” qualquer, uma revolução utópica, um messias salvador da pátria. A força e os resultados se tornam as únicas réguas morais. Qualquer ceticismo ou temperança são tidos como fraqueza moral, covardia. E o tribalismo entra em cena: quem não está totalmente com você só pode ser seu inimigo mortal, que precisa ser eliminado, pois representa uma ameaça ao projeto político grandioso. O indivíduo que pensa por conta própria não pode ser tolerado nesse grupo, por razões óbvias.
Artigo originalmente publicado pela Gazeta impressa