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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

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O professor Christian Lynch, estudioso do pensamento político brasileiro, cujos textos merecem leitura – e desta vez não é diferente –, redigiu para a revista Insight Inteligência o artigo de título provocativo Nada de NOVO sob o Sol: teoria e prática do neoliberalismo brasileiro. Não obstante a recomendação da leitura, vejo como necessário apresentar contrapontos ao referido trabalho.

O autor procura traçar uma distinção essencial entre o que considera duas ideologias radicalmente distintas: o “liberalismo democrático” – tradição que, ao que parece, configuraria o liberalismo autêntico, mais completo, mas que o autor teoricamente reduz ao chamado “novo liberalismo” ou “liberalismo social” dos herdeiros de John Stuart Mill ou da turma norte-americana de um John Dewey – e o “neoliberalismo” – que seria uma variante de inspiração “conservadora”, dedicada a alçar o mercado “à condição de organizador último da vida social”, considerando que a liberdade econômica tem prevalência ou prioridade sobre a dimensão política.

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Na leitura de Lynch, o “liberalismo democrático, de Stuart Mill a Rawls, se caracteriza por uma relação de maior contingência com o liberalismo econômico, tendo admitido mesmo formas moderadas de planejamento econômico”, enquanto o “neoliberalismo (…) mantém relações de maior contingência com o regime democrático”. O objetivo do texto é demarcar uma distinção entre os dois grupos e identificar no quadro atual uma presença marcante dos chamados “neoliberais” a deslegitimar o papel dos chamados “liberais democráticos”.

Não discutirei aqui os conceitos em si adotados pelo autor, ainda que seja evidente que a expressão “neoliberalismo”, nas primeiras vezes em que apareceu na História, não tenha tido o sentido que o professor lhe atribui, bem como ainda que se saiba que ela sofreu profundas polissemias ao longo do tempo. Para se ter uma ideia, no dizer de muitos libertários que beiram ao anarcocapitalismo, “neoliberalismo” é tratado como a doutrina de liberais que aceitam uma participação maior do Estado como resposta à Revolução Keynesiana. Longe de mim dizer que os termos são irrelevantes, mas considero que nos acostumamos a perder um tempo precioso discutindo apenas os termos e rótulos em vez de gastar tempo discutindo as ideias e os conceitos e entendendo que os vocábulos são convenções. Limitar-me-ei a adotar, portanto, as definições do professor Lynch, dentro da lógica interna de seu texto.

Em primeiro lugar, é forçoso reconhecer que as categorias estabelecidas por Lynch, conceitualmente falando, tem alguma pertinência. É evidente que Campos Sales e Joaquim Murtinho estavam mais preocupados com medidas de austeridade e com o valor do capitalismo do que com o sistema representativo liberal ou as garantias fundamentais de uma oposição democrática, enquanto Rui Barbosa estava mais preocupado com as instituições políticas. Isso foi fator de embate direto entre esses segmentos na República Velha. Também é verdade que seu conceito de valorização da liberdade econômica em detrimento da democracia representativa se aplica com certa justiça a figuras como Eugênio Gudin, que estendeu seu apoio à ditadura militar mesmo após os Atos Institucionais endurecerem.

Porém, pretendo me concentrar nas figuras de Roberto Campos e, principalmente, Carlos Lacerda. Ao final de seu trabalho, Lynch cita Afonso Arinos como representante da opinião geral da parcela da UDN crítica à Constituição de 1967, quando o udenista mineiro defendeu a “perfeita compatibilidade entre a técnica de liberdade política, coração da democracia, e um maciço antiliberalismo econômico, que parece ser o traço marcante do nosso tempo”. Logo em seguida, ele fala de Lacerda:

“Também Carlos Lacerda condenaria o neoliberalismo do governo Castelo Branco, cuja figura de proa era justamente Roberto Campos, qualificado como uma “política de tecnocratas, abraçados a uma concepção neocolonialista de Brasil”. E lembrava muito a propósito a diferença entre Rui Barbosa e Joaquim Murtinho, tomando partido do primeiro em detrimento do segundo: “Rui teve a intuição genial do sopro de progresso que poderia ter feito o Brasil dar um salto com a República, enquanto o Murtinho, no Governo Campos Sales, aplicou a política que, no afã de liquidar os excessos do Encilhamento, por timidez acadêmica, reduziu o desenvolvimento brasileiro”. Quando os liberais democráticos voltaram a valorizar aspectos do liberalismo econômico, durante a década de 1990, Roberto Campos lamentaria suas ácidas polêmicas com Afonso Arinos e Carlos Lacerda: “Foi tudo um grande desencontro…” Mas o diplomata estava errado. Embora aparentadas do ponto de vista “macroideológico”, já está claro que o liberalismo democrático e o “neoliberalismo” são ideologias distintas.”

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Em primeiro lugar: conheço apenas a referência do “grande desencontro” em relação a Lacerda. Isso faz diferença, porque em nenhum momento o governador da Guanabara fez profissão de fé do “antiliberalismo econômico” da mesma forma por que Afonso Arinos parece tê-lo feito. É um erro ladeá-los de forma tão absoluta – tanto mais porque Arinos foi um dos responsáveis por “boicotar” as pretensões de Lacerda à presidência, ao apoiar a prorrogação do governo Castelo, como o próprio mineiro confessou ter pretendido.

Em segundo lugar, ao se esforçar por estabelecer um profundo abismo entre o que chama de duas tradições liberais, abismo esse que se repetiria em uma fixa estrutura binária ao longo da história republicana, o artigo de Lynch não confere, a meu ver, o devido destaque às circunstâncias políticas. O governador da Guanabara se via politicamente ameaçado, mesmo traído, vindo até a buscar uma composição política com seus antigos inimigos, a Frente Ampla, e Campos servia ao governo como técnico no ministério do Planejamento. É inevitável reconhecer que essas posições influenciaram na forma por que se conduziram naquele enfrentamento.

É preciso ainda se ater ao conjunto dos fatos. Lacerda chegou, por certo tempo (e não estou dizendo que assim deveria ser), a ser crítico do voto dos analfabetos, exatamente como Gudin e os outros “neoliberais” a quem Lynch faz referência, e dos quais o separa rigidamente; Lacerda também não abandonou o governo Castelo Branco da noite para o dia, chegando inclusive a excursionar pela Europa para divulgar a “Revolução de 64”. Nos anos 50, Lacerda sustentou uma fórmula de suspensão das eleições previstas, o que ele chamava de “regime de emergência”, com o pretexto de reformular as instituições fabricadas pelo varguismo e acalmar os espíritos ouriçados pelo suicídio de Vargas, que deixariam o povo suscetível, sobretudo pela exploração da imagem do ditador feita pela rádio, ao emocionalismo – isto é, à demagogia que Lynch figura em seu artigo como sendo criticada pelos “neoliberais”. Esse receio da “tirania das maiorias”, do “homem-massa”, estava presente em todos eles – e, francamente, não vejo problema algum nisso.

É evidente que Lacerda não era um economista austríaco ou um “chicaguista”; sua referência maior no campo econômico estava no ordoliberalismo alemão, na figura do chanceler Ludwig Ehrard, que reergueu a Alemanha no pós-guerra. Porém, seria um erro tremendo, como o artigo parece sugerir, considerar que havia ali, em 1965, uma luta mortal entre um “intervencionista econômico empedernido em defesa do ideal democrático” e os “radicais neoliberais laissez-feristas que aceitavam a ditadura”. Primeiro, porque ninguém ali estava radicalmente comprometido com o laissez-faire (e nem eu estou dizendo que deveriam ser; não sou exatamente a reencarnação do anarcocapitalista Murray Rothbard e sequer o austríaco Friedrich Hayek, que alguns apontam como “pai do neoliberalismo”, defendia o total laissez-faire). Eugênio Gudin, o maior expoente do liberalismo econômico à época, admitia uma série de intervenções estatais e não rejeitava completamente o legado keynesiano, apesar de suas fortes influências de Mises e Hayek. Ele não era sequer contra a proteção a algumas indústrias brasileiras específicas, embora fosse inimigo da ideia de o Estado assumir funções empresariais. Roberto Campos, o rival direto de Lacerda no embate político sobre o Plano de Ação Econômica do governo Castelo, criou o BNDE e o FGTS.

Segundo, porque a premissa de todos esses personagens, apesar de discordarem nesse ou naquele aspecto das políticas de intervenção do Estado, era uma mesma premissa de favorecer a liberdade econômica e evitar o rigoroso planejamento centralizado. No texto de Lacerda a que Lynch faz referência, Brasil entre a verdade e a mentira, sem dúvida, não sendo, aliás, um técnico na área econômica, o tribuno udenista se mostra mais simpático a políticas como o New Deal dos EUA e, preocupado ao longo de toda a carreira com a dimensão político-institucional – afinal, o tempo inteiro ele lutou contra um ditador e seus herdeiros, bem como contra os comunistas em plena Guerra Fria -, ele deixa transparecer que teve em Rui Barbosa uma das suas fontes mais importantes de inspiração. Mostrou-se crítico a Campos Sales e Joaquim Murtinho tanto neste trabalho quanto em seu clássico Depoimento, ainda que tenha dado pouco aprofundamento ao assunto, posto que não era a sua área.

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Contudo, no mesmo Brasil entre a verdade e a mentira, Lacerda nos diz que “vemos o eminente professor Eugênio Gudin, a quem ninguém dará como suspeito, a pedir exatamente o que acabo de ditar neste trabalho, ou seja: ‘a redução de impostos para proporcionar recursos aos setores industriais onde se verifique desemprego’”. Para empregar os termos de Lynch, uma das referências lacerdistas para contestar o “neoliberal” Roberto Campos em seu embate político com o governo Castelo era o também “neoliberal” Eugênio Gudin”, não um autor desenvolvimentista qualquer. Gudin, aliás, que era admirador de Lacerda.

No mesmo texto, Lacerda procura demonstrar que seu ponto de vista é, ao contrário, mais liberal do que o de Roberto Campos. Ele alega que “a planificação global da economia é incompatível com uma sociedade democrática, baseada na livre empresa. É preciso não confundir a necessidade de um núcleo de atividade econômica pioneira e impulsionadora da ação do Poder Público com a expansão crescente da área estatal das atividades econômicas, em prejuízo da criação de riqueza pela comunidade, pela imaginação, a técnica e a ambição dos homens” – como, de novo, diriam os “neoliberais”. Em O Poder das Ideias, conforme cito em meu livro Lacerda: A Virtude da Polêmica, Lacerda dirá que “não existe liberdade política sem liberdade econômica” – exatamente como Friedrich Hayek e Milton Friedman, que provavelmente serão vistos por Lynch como versões estrangeiras dos “neoliberais”. Dirá também que “a pretexto de que é necessário dar pão aos que não o têm ainda, não se pode suprimir a liberdade dos que já ganham o seu pão e não querem perder sua liberdade”.

Dirá ainda, em O Poder das Ideias, que o industrialismo fanático está equivocado, devendo concentrar-se a atenção aos problemas de habitação, alimentação e industrialização da agricultura – exatamente como dizia Gudin. Critica, mais de uma vez, tanto em seus livros quanto na Tribuna da Imprensa, o Estado-providência, o populismo, o patrimonialismo, o nepotismo, a inflação, o fetiche pelo monopólio, o ódio ao capital estrangeiro; dirá na Tribuna que “onde quer que a iniciativa privada possa desincumbir-se de uma função, não deve o Estado substituir-se a ela”. Um bom “neoliberal”, no dizer de Lynch, não deixaria de subscrever.

Em minha interpretação, portanto, sem negar que existissem divergências de entendimento, Lynch supervaloriza contrastes políticos circunstanciais como se demarcassem uma distinção entre água e óleo. Elencando uma série indiscutível de similaridades entre ele e Lacerda em seu A Lanterna na Popa, Roberto Campos estava, sim, certo ao dizer que a briga entre os dois foi um “grande desencontro”.

Não é apenas o próprio Campos quem o diz. O maior biógrafo de Lacerda, John Dulles, reconhece que o próprio tribuno, nos anos 70, buscou uma conciliação com Campos, a quem teria reavaliado como alguém que supriria suas deficiências no entendimento da economia, mas que precisava de uma complementação no campo da política que ele mesmo poderia proporcionar. Campos afirma que esteve aberto à possibilidade, mas Lacerda infelizmente faleceu antes disso. Poderia ter sido, com a recuperação dos direitos políticos de Lacerda, um casamento, talvez inviável na visão de Lynch, entre o “liberalismo democrático” de Lacerda e o “neoliberalismo” de Roberto Campos.

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Entre a palavra dos dois e a do professor Lynch, respeitosamente prefiro ficar com a deles. O Instituto Liberal, frequentado pelos “neoliberais” Roberto Campos e Meira Penna, foi fundado em 1983 e se rege publicamente, ao menos desde 1988, pela Declaração de Princípios dos Institutos Liberais, que inclui entre seus princípios a defesa da democracia representativa. Podemos acolher as melhores orientações de Eugênio Gudin no campo econômico sem aplaudir seu apoio ao AI-2, por exemplo. Podemos acolher as contribuições inestimáveis de Lacerda sem concordar com seus elogios ao New Deal. Não existe nenhuma contradição em aproveitar as melhores contribuições que cada autor pode dar, a despeito de suas idiossincrasias e das influências do espírito da época. Vejo problema, ao contrário, em estabelecer, em relação a Lacerda e Campos, duas categorias estanques e inassimiláveis, onde o que existiu foram discordâncias periféricas, que poderiam perfeitamente ser resolvidas se houvesse mais tempo e maturidade para tal.

De meritório na reflexão proposta pelo professor Lynch, ressalto o reconhecimento de que existem, sim, liberais que se excedem na ênfase temática ao campo econômico, enquanto o liberalismo é uma proposta política e institucional, com inúmeros outros aspectos que merecem ser valorizados.