Por Catarina Rochamonte, publicado pelo Instituto Liberal
Jean-Jacques Rousseau é um escritor de bela e eloquente retórica, de estilo cativante e ideias instigantes; como filósofo, porém, é controverso, contraditório, politicamente com ideias ora vistas como de direita (anti-intelectualismo, culto da natureza e da força, ódio ao progresso, etc.) ora de esquerda (igualitarismo, economia dirigida pelo Estado, racionalidade construtivista, etc.), sendo ora apropriado pela tradição democrática e liberal, ora apontado como adversário dessa mesma tradição. Nesse artigo pretendemos mostrar, sob o respaldo do texto de Philippe Nemo em sua Histoire des idées politiques aux temps moderne et contemporains, que ele é realmente um adversário dessa tradição democrática, liberal e pluralista que defendemos e que a interpretação que melhor lhe convém é a que o coloca como precursor do jacobinismo, da mentalidade antiliberal, como um expoente da literatura utópico-revolucionária e antidemocrática.
Em textos anteriores, temos insistido na relação da tradição liberal com a própria Paidéia grega e seu momento de formação do estado jurídico ateniense, lendo assim uma espécie de direcionamento humanista da história ocidental que sofreu, não obstante, inúmeros desvios e ataques que fizeram com que o dinamismo da sociedade aberta recrudescesse sob a inspiração de ideias autoritárias e/ou totalitárias que germinaram em momentos terríveis da nossa história.
Pois bem, em um texto conhecido como Prosopopéia de Fabricius, que faz parte do seu Discurso sobre as ciências e as artes (1750), Rousseau reprova nos romanos o terem sucumbido aos encantos da Paidéia grega. Entre Esparta, protótipo de Estado forte, totalitário, belicoso e disciplinar e Atenas, berço da nossa civilização, protótipo do Estado constitucional e das democracias liberais, Rousseau escolhe o primeiro, em consonância com a apologia da força daqueles que “sabem fazer” em detrimento daqueles que só “sabem dizer”.
O referido discurso consiste da resposta elaborada por Rousseau à seguinte questão proposta em concurso pela Academia de Dijon: “O reestabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes?” Rousseau responde negativamente e ainda afirma que, ao contrário, as artes e as ciências (que aqui simbolizam o progresso) corromperam os costumes. A civilização seria, pois, prejudicial, causa de ruína da felicidade primitiva dos homens. O homem saído das mãos da natureza, o bon sauvage, seria superior ao homem civilizado. “Escolhendo a natureza contra a civilização, explica Philippe Nemo, Rousseau tomou partido pelo cinismo; escolhendo Esparta contra Atenas, ele tomou partido por aquilo que Karl Popper chama ‘sociedade fechada[1].’”
Alguns anos depois, Rousseau acha por bem responder a uma nova questão posta pela Academia de Dijon, dessa vez acerca da origem da desigualdade entre os homens e se ela é autorizada pela lei natural. A resposta será o seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, no qual expõe as hipóteses de que no estado de natureza não havia desigualdades, as quais se estabelecem somente a partir do momento em que o homem, tornando-se social, adota a propriedade. Rousseau explica ainda que essa desigualdade se retroalimenta até criar as sociedades hierarquizadas, concluindo então que tal situação é manifestamente contrária à lei natural.
Ao buscar o homem puro, natural, Rousseau encontra nele dois traços essenciais: o amor de si (amour de soi) e a piedade (pitié), que podem ser entendidos como a preocupação com a autoconservação e a repugnância em ver um semelhante sofrer. Não obstante o fato de reconhecer a piedade como um sentimento natural, Rousseau não reconhece no homem natural a inclinação à sociabilidade. Assim como Maquiavel e Hobbes, e em contradição com o pensamento tradicional de Aristóteles ou dos estoicos a esse respeito, o filósofo genebrino interpreta o ser humano como não tendo capacidade nem vontade de formar laços sociais baseados em um sentimento inato de justiça.
Nota-se, pois, que a antropologia rousseauniana, apesar da formulação do bom sauvage, contém aspectos pessimistas, dentre os quais a paradoxal compreensão da liberdade ou da perfectibilidade humana como falibilidade[2], uma vez que ela estaria fundada sobre as paixões e não sobre a razão, sendo ela motivo de grandes infortúnios para a espécie humana.
O homem natural imaginado por Rousseau é algo próximo a um animal. Ele tem necessidade (besoin) e não desejos (désir); ele nem se presta à depravação de pensar: “Quase ouso garantir que o estado de reflexão é um estado não natural e que o homem que medita é um animal depravado.[3]” Desprovido de desejos, ele pode viver em paz e em estabilidade, o que torna difícil a explicação da motivação da passagem do estado de natureza para a sociedade civil, que Rousseau empreenderá, porém, com críticas à teoria de Hobbes.
Para Rousseau, a luta de todos contra todos de que fala Hobbes não se deve à luta pela subsistência, mas à luta pela proeminência, paixão que não existiria no estado de natureza, mas teria sido criada pela sociedade. No estado de natureza mesmo, os homens não conheceriam a guerra. Se, para Hobbes, não havia, no estado de natureza, nem justo nem injusto, para Rousseau não havia ali nenhum tipo de relação moral: nem vício nem virtude. O bom selvagem é como a besta loura pensada por Nietzsche em A genealogia da moral – é um ser amoral que pode expressar uma força bruta, mas o expressa com inocência[4].
Não havendo nenhuma lógica imanente ao seu pensamento (como era o caso da “guerra de todos contra todos” postulada por Hobbes) que justificasse a saída do homem do estado de natureza, Rousseau começa a conjecturar ou inventar eventos que teriam conduzido a essa passagem. Sua primeira conjectura tornou-se antológica e expressa com bastante força sua opinião negativa em relação à propriedade privada:
“O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer ‘isto é meu’ e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem a esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém[5]’“.
A partir daí, a teoria do primeiro contrato social de Rousseau, aquele que estaria na origem da sociedade civil, é concebida como uma astúcia, como um artifício imaginado pelos ricos e realizado para sua própria vantagem; um contrato que apresenta as leis como sendo iguais para todos quando, em realidade, só aproveitaria aos poderosos e aos ambiciosos:
“Todos correram ao encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade […] Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram doravante todo o género humano ao trabalho, à servidão e à miséria[6]”.
Pouco importa se se trata de monarquia, aristocracia ou democracia. Para Rousseau, todos esses regimes tradicionalmente apresentados pela ciência política não passam de variantes do mesmo contrato social que favorece os poderosos[7]. É aí que se explicita a inclinação revolucionária do pensamento de Rousseau: é necessário mudar esse estado social através de um novo contrato (nouveau contrat), dessa vez legítimo porque fundado na Vontade Geral.
No artigo Économie politique (1755) que escreveu para a Enciclopédia de Diderot, Rousseau apresenta-nos algumas funções do Estado, dentre as quais destaca-se a educação doutrinária e a direção da economia. Para “fazer reinar a virtude” que, para Rousseau, é a conformidade das vontades particulares à Vontade Geral, a educação deve ser retirada dos pais[8]. A obediência atual dos cidadãos ao Estado não seria suficiente; far-se-ia necessário preparar a obediência futura por meio de uma educação na qual as crianças devem ser constantemente sugestionadas a desprezarem seu próprio eu e a se submeterem ao todo, habituando-se a só enxergarem o indivíduo através das suas relações com o Estado, percebendo sua própria existência como parte dele[9]. Rousseau também advoga para o Estado a direção política da economia. Tendo o dever de cuidar da subsistência dos cidadãos, o Estado deve dirigir a economia no sentido de criar uma igualdade de condições.
É na obra Do contrato social (1762) que encontraremos o quadro constitucional que operacionaliza esse Estado revolucionário[10]. Nesse livro, Rousseau expõe uma teoria de Estado na direção de uma democracia totalitária de pendor coletivista, onde é acentuado o poder coercitivo do Estado sobre os indivíduos, legitimado por esse filósofo enquanto expressão daquilo que chamou de a “Vontade Geral.”
É na explicação cheia de aporias desse conceito que o texto de Rousseau, normalmente fluido, se faz mais áspero. A Vontade Geral, explica Rousseau, não é necessariamente a vontade de todos. A vontade de todos é apenas a soma das vontades particulares, enquanto a vontade geral olha para o bem comum. A vontade geral do povo não é, pois, a vontade coletivamente expressa nas assembleias populares, mas a soma das diferenças das vontades que se autodestroem[11].
O paradoxo sustentado por Rousseau é o de que, ao me forçar a obedecer ao interesse geral, eu me forço a ser livre. Isso se daria porque a minha vontade particular é baseada nas minhas paixões e estas me cegam, fazendo com que eu pense que quero algo além do que quer o Estado. Ao descobrir, porém, a Vontade Geral, eu a reconheço como minha verdadeira vontade, dando, a partir de então, meu assentimento a tudo o que o Estado quer.[12] Mesmo que a vontade geral esteja bastante distante da minha vontade inicial, ela está sempre certa e tende sempre para a utilidade pública. Philippe Nemo nos chama atenção ainda para a incompatibilidade do pensamento de Rousseau com o pluralismo próprio da tradição democrática-liberal:
“Rousseau é fundamentalmente um inimigo de disputas e sutilezas, fruto da civilização. As pessoas que se adaptam aos seus desejos são os bravos camponeses suíços que querem coisas simples e são unânimes em decidir as raras mudanças necessárias em suas leis. Eles nem são sutis o suficiente, diz Rousseau ternamente, para ser enganado. Com eles, é fácil determinar a vontade geral. Rousseau assim confirma sua condenação do pluralismo”[13].
Do exposto conclui-se, como foi dito de início, o caráter antiliberal e antidemocrático de Jean Jacques Rousseau. A noção de vontade geral é incompatível com a ideia de democracia formulada no contexto da Grécia antiga, no qual as mais diversas ideias eram consideradas e debatidas na Ágora por homens livres e intelectualmente maduros. A compreensão de que a verdade, a justiça ou o que é melhor para o bem comum sejam algo muito mais complexo e heterogêneo do que o resultado da unanimidade homogênea de caracteres simplórios cuja vontade se anula perante o Estado é um ponto crucial das democracias liberais, cuja delicadeza, grandeza e fragilidade consiste justamente na sustentação dinâmica do tênue equilíbrio das razões e vontades individuais que não se anulam, mas colaboram e cooperam para uma sociedade saudável e capaz de progredir.
Além disso, segundo Philippe Nemo, há no pensamento de Rousseau uma espécie de “soteriologia milenarista laica[14]”, que se expressa no anelo por um retorno ao paraíso perdido do bom selvagem. Seu pensamento aureola-se assim, segundo o autor, do caráter cripto-religioso e fanático próprio das ideologias de esquerda. De resto, cumpre notar que o pensamento de Rousseau se inclina para outro aspecto bastante característico das sociedades fechadas: a “perfeita identidade entre coesão política e coesão religiosa”, identidade essa que foi abalada quando “os judeus inventaram um monoteísmo estrito que era incompatível com a existência das religiões nacionais[15]”; abalo esse que foi agravado em seguida pelo Cristianismo. Ou seja, a divisão entre um poder espiritual com vocação universal e um poder temporal como vocação nacional, fragilizou, segundo Rousseau, a unidade do Estado, sendo necessário pôr fim a tal separação por meio de uma “profissão de fé puramente civil” que enunciará os sentimentos de sociabilidade do bom cidadão. A despeito da auréola do novo dogma da religião civil, ela seria sancionada pelo braço secular do Estado, tal qual, alguns anos depois, Robespierre tentou fazer para impor à base de guilhotina o culto da deusa razão.
[1] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains: Quadrige/PUF, 2002, Paris. p.806
[2] Idem p.809
[3] “J’ose presque assurer que l’état de réflexion est un état contre nature, et que
l’homme qui médite est un animal dépravé” (ROUSSEAU, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes).
[4] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.812
[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes
[6] Idem.
[7] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.817
[8] “On doit d’autant moins abandonner aux lumièçes et aux préjugés des pères l’éducation de leurs enfants, qu’elle importe à l’Etat encore plus qu’aux pères; car selon le cours de la nature, la mort du père lui dérobe souvent les derniers fruits de cette éducation, mais la patrie en sent tôt ou tard les effets.” (ROUSSEAU. L´article Economie Politique de L´Encyclopedie”)
[9] Idem. p.818
[10] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.819
[11] « Il y a souvent de la difference entre la volonté de tous et la volonté générale ; celle-ci ne regarde qu’à l’intérêt commun, l’autre regarde à l’intérêt privé, et ce n’est qu’une somme de volontés particulières: mais ôtez de ces mêmes volontés les plus et les moins qui s’entre-détruisent, reste pour somme des différences la volonté générale» (ROUSSEAU, Le contrat social – 1762)
[12] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.830
[13] Idem. p.833
[14] Idem. p.817
[15] Idem p.839
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