Aos poucos, os citricultores do estado de São Paulo tentam se reerguer de um tombo que ainda é difícil de ser digerido, tanto para o retorno aos cultivos quando pela espera por justiça em disputas que se estendem por quase duas décadas nos tribunais brasileiros e, mais recentemente, do Reino Unido.
Um dos maiores escândalos ligados ao agronegócio brasileiro, no qual estão os principais cultivos de laranja do mundo, pode caminhar para importantes desfechos a favor de produtores. O esquema que ficou conhecido como Cartel da Laranja operou de 1999 a 2006 envolvendo gigantes do segmento, tendo provocado prejuízos aos produtores e aos consumidores na ordem de R$ 12,7 bilhões, segundo cálculo do Ministério Público Federal (MPF) do estado de São Paulo.
O órgão pediu à Justiça, neste ano, que as 17 pessoas físicas e jurídicas envolvidas no esquema - que dominava cerca de 80% do mercado de suco concentrado de laranja - sejam condenadas a pagar o valor determinado como forma de indenização aos atingidos, por danos morais e materiais. “Muitos produtores nunca mais se reergueram, outros tantos estão pagando dívidas até hoje, muitos tentando recomeçar. Foi devastador”, afirmou Cláudio Brisolara, do departamento econômico da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (Faesp/Senar).
A ação civil pública proposta pelo MPF mira o grupo que confessou práticas ilegais e predatórias que afetaram mais de 1,5 mil produtores. “Este domínio implicou na exclusão de cerca de 75% das pequenas e médias empresas do mercado produtor, isso só no estado de São Paulo, o maior produtor, sem contar dezenas de outras localizadas nos demais estados do Sudeste e diversas regiões do país, também plantadores da fruta”, destacou o MPF.
Empresas envolvidas no Cartel da Laranja admitiram a prática de crimes
As empresas e pessoas físicas envolvidas no Cartel da Laranja confessaram o esquema em uma investigação que culminou em acordo firmado com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Os envolvidos foram penalizados com o pagamento de R$ 300 milhões em um processo que se encerrou em 2018. Porém, a sanção administrativa não cobriu indenizações aos produtores, condição que a ação civil pública do MPF quer reparar.
O grupo agia para obter a “queda vertiginosa dos preços para a compra da fruta, como forma de eliminar a concorrência do segmento produtor, causando prejuízos e até a falência de dezenas de pequenos e médios produtores rurais do país e afetando os consumidores”, destacou o MPF. A prática fez com que essas corporações tivessem aumento expressivo nos lucros.
As investigações iniciaram em um procedimento do próprio Cade, que comprovou a prática entre as empresas processadoras de cítricos com “concorrência predatória e abuso do poder econômico em detrimento dos produtores rurais”. Segundo o MPF, “as provas coletadas – entre as quais reconhecimento expresso e formalizado pelos próprios membros do cartel - revelaram que as empresas e pessoas físicas demandadas trabalharam em conluio no mercado de compra de laranjas para prejudicar os produtores”.
Muitos produtores que não interromperam a produção se viram forçados a vender suas propriedades e, justamente, para as empresas participantes do esquema que verticalizavam o segmento: plantavam, colhiam, processavam e vendiam, principalmente para o mercado externo, já que mais de 90% de todo o suco concentrado de laranja produzido no Brasil é exportado. Somente no ano passado as transações comerciais ultrapassaram a faixa dos US$ 2 bilhões.
A ação do MPF indicou ainda outra prática predatória: um produtor que vendia para uma determinada empresa em uma safra não conseguia vender para as outras empresas na safra seguinte – tudo combinado entre os negociantes – forçando uma queda dos preços. “Em 1999, por exemplo, as negociações de compra da laranja dos produtores, iniciadas em abril e maio, foram, apenas e intencionalmente, concluídas em meados de julho, no intuito de forçá-los ao rebaixamento de preços, quando, então, já havia se dado significativas perdas nos pomares”, pontuou a procuradora da República Karen Louise Jeanette Kahn, ao destacar que mais de 60 milhões de caixas de laranja foram descartadas por safra. Uma única empresa chegou a deter 50% da plantação da fruta no Brasil.
Durante o período de atuação do Cartel da Laranja, a estimativa é que mais de 400 milhões de caixas do produto tenham sido dispensadas.
No campo, de um ano para o outro, muitos produtores tiveram de eliminar milhares de pés da fruta porque o que se produzia não cobria minimamente os custos de produção ou simplesmente não encontrava colocação no mercado. “Os produtores estavam indo à falência, foi desesperador. Tirou-se renda dos produtores para reverter às próprias indústrias”, afirmou Brisolara.
Com o pedido do MPF, neste ano a Justiça Federal de São Paulo tornou réus os investigados. O processo segue em segredo de Justiça, ato que é questionado pelo Ministério Público. De acordo com os cálculos feitos inicialmente pelo MPF, considerando o impacto no mercado e sobre toda a cadeia econômica, incluindo produtores e consumidores prejudicados, a reparação por danos patrimoniais foi estimada em cerca de R$ 8,5 bilhões e os danos morais coletivos em R$ 4,25 bilhões.
Ação na corte inglesa contra Cartel da Laranja avançou em prol dos agricultores
As ações correm por anos no Judiciário brasileiro, com críticas à morosidade observada em muitas delas e aos prazos prescricionais em tantas outras. De forma paralela, a Faesp tem sido uma importante aliada dos atingidos, em meio a uma ação integrada por mais de 1,5 mil produtores que pleiteiam reparações também na corte da Inglaterra contra uma das gigantes da citricultura que, na época, confessou envolvimento no esquema. É em Londres que está estabelecida residência de um dos sócios da gigante do segmento, além de parte da administração da companhia conduzida a partir da Inglaterra.
Além dos mais de 1,5 mil produtores de laranja brasileiros independentes, a ação é composta por 22 pessoas jurídicas do cultivo e uma fundação de caridade. A empresa do segmento, a Cutrale, tem reafirmado que não comenta ações em andamento.
Segundo a Faesp, o processo tem avançado e, enfim, pode haver a responsabilização de ao menos uma delas. A ação foi ajuizada em setembro de 2019 e, dois anos depois, obteve a primeira vitória para os citricultores com o reconhecimento da jurisdição inglesa, considerou a Faep. Neste ano, novas audiências entre as partes também foram consideradas positivas pelo segmento. Quem cuida de tudo por lá é o Escritório Pogust Goodhead, “especializado em litígios coletivos transnacionais de grande porte contra organizações que maltratam, enganam ou ferem pessoas. Atualmente, está à frente de diversas ações coletivas dedicadas à justiça ambiental e social”, informou a Faesp.
Na avaliação do órgão representativo dos produtores, a cada passo bem-sucedido com a ação indenizatória aos produtores afetados pelo Cartel da Laranja, há um recado aos que se beneficiam da conduta criminosa, que “afeta famílias e destrói gerações de produtores que se dedicam unicamente ao trabalho rural”. Audiências na Justiça inglesa foram realizadas no fim de julho.
Faesp lamenta que produtores de laranja nunca tenham sido ressarcidos
Cláudio Brisolara, da Faesp, lamentou as dificuldades enfrentadas pelos produtores que nunca conseguiram na Justiça brasileira o direito de serem ressarcidos, mesmo com a prática criminosa comprovada pelo Cade e confessada pelas envolvidos. “Houve inclusive uma grande operação na época que reuniu muita prova, além do reconhecimento de culpa dos envolvidos que gerou um Termo de Compromisso de Cessação de Condutas. A lei é clara, há um reconhecimento de culpa, houve um crime e a Justiça deveria considerar isso nos pedidos de indenização. Esse termo assinado com o Cade estabeleceu uma multa para o governo (de pouco mais de R$ 300 milhões), mas o produtor continua com o prejuízo”, explicou.
Ele acrescentou que os inúmeros questionamentos recursais impetrados na Justiça no Brasil acabaram por atrasar o andamento dos processos, chegando, inclusive, à prescrição de muitos deles. “Pode ser irônico que se consiga êxito na Justiça inglesa e não na do Brasil com a farta quantidade de provas e as empresas que assumiram culpas no caso do Cartel da Laranja. Se não houver penalizações e responsabilizações em ações como essa, com formação comprovada de cartel, com a imensa quantidade de provas, em qual teremos êxito então?”, questionou.
Segundo o representante da Faesp, ainda não se tem como precisar o valor das ações que correm na corte de Londres. Esse levantamento será feito após algumas etapas do processo serem vencidas. Apesar da ação conjunta, as partes têm suas demandas individualizadas e o pedido de reparação por danos segue paralela à solicitação feita pelo MPF neste ano à Justiça brasileira.
Somados os efeitos nocivos deixados pelo Cartel da Laranja às supersafras que reduziram o preço da fruta, dos mais de 28 mil produtores que existiam no estado de São Paulo há cerca de duas décadas, restaram menos de 8 mil. “Existem pessoas que morreram sem ver a justiça ser feita e isso é lamentável”, completou, ao alertar que, antes do cartel, existiam diversas grandes indústrias e que hoje a destinação da produção está concentrada nas mãos de três grandes que acabam por determinar as regras sobre preços.
“A verticalização industrial também preocupa o segmento, já que parte dessas indústrias também investiu no cultivo da fruta. Então, além do processamento elas produzem, atingindo as pequenas e médias produções. Isso não é crime, mas existem movimentos em função da concentração (da atividade). O Cade deveria zelar por uma concorrencial mais justa e, ao que temos visto, o órgão não deu conta de resolver o problema”, criticou.
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