Usuários de droga assistem filme na região cracolândia, na capital paulista.| Foto: Reprodução/Instagram Craco Resiste
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“Craco resiste” é um movimento criado em 2016 para defender os dependentes químicos e moradores de rua da polícia, na região central da capital paulista. O grupo promove cinema com pipoca e futebol para os usuários de droga da cracolândia. A iniciativa conta com mais de 25 mil seguidores nas redes sociais.

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Daniel Mello, poeta e ativista, é um dos fundadores da iniciativa. Ele diz que "Craco resiste" não tem um líder e que reúne 30 pessoas participando ativamente - número que varia mês a mês. “O principal objetivo é se opor à violência policial. O movimento é formado por pessoas ligadas aos direitos humanos, frequentadores do 'fluxo' e outras que moram na região. Não é possível tentar fazer qualquer coisa com as pessoas apanhando todo dia ou sendo presas sem motivo, como já apontou a Defensoria Pública de São Paulo”, critica.

O ativista ressalta que o movimento não tem CNPJ e nem financiador. “Todos discutem por igual as decisões. De vez em quando pedimos doações para distribuir pipoca no 'fluxo' ou comprar um aparelho de som. Queremos adquirir um projetor portátil para exibir filmes, o que utilizamos hoje é emprestado. Vamos pedir doações para comprar um que custa em média R$ 1,2 mil”.

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Segundo Mello, a prática de exibir filmes no "fluxo" começou há três meses. Ele diz que não frequenta o "fluxo" e nem mora perto, mas vai para a região quando há alguma iniciativa do movimento. E critica a postura do governo e da prefeitura em relação à cracolândia. “As pessoas estão sendo empurradas pela prefeitura e pelo Governo do Estado de forma absolutamente violenta. O objetivo disso é criar tensão entre os comerciantes e moradores e enfraquecer o comércio local para justificar ações não justificadas. Isso, por exemplo, foi um pretexto para o prefeito desonerar IPTU atendendo a vários interesses”.

Questionado se a internação compulsória pode ajudar os usuários, ele se posiciona contra a medida. “A internação compulsória é para transferir dinheiro para clínicas terapêuticas, atendendo a interesses políticos. Muitos partidos que compõem a base do governador (Tarcísio de Freitas - Republicanos) são ligados à igreja que tem interesses em unidades terapêuticas”, disse o ativista.

Mello não avalia que as iniciativas do movimento podem incentivar mais pessoas a se deslocarem para a cracolândia e argumenta que elas estarão na região independente da existência do movimento. “A composição da cracolândia é de pretos e pobres que nunca foram atendidos pelo estado, a não ser pela polícia. A cracolândia tem mais egressos do sistema prisional do que usuários de crack, isso é dado de pesquisas. O movimento luta contra a violência policial, posteriormente discutimos medidas para acabar com a cracolândia”.

O ativista enfatiza que as medidas do movimento não propagam a cracolândia. “É ridículo imaginar que só porque o movimento está oferecendo uma atividade como futebol, a pessoa vai ficar lá por causa do futebol. Eles ficam lá porque, juntos, conseguem se defender da violência policial. Essas pessoas que estão à margem da sociedade correm o risco de serem queimadas e espancadas, estão lá como forma de proteção”.

Mello argumenta que os usuários de droga utilizam a substância para “não se lembrarem que estão com fome, frio ou que não têm família". E avalia que colocar um cinema na região é muito pouco para o que elas passam. "Uma pessoa em situação de rua que apanha todo dia da PM não vai ficar ali porque uma vez na semana aparece um movimento para fazer um cinema”.

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Para o sociólogo Rogério Baptistini, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a iniciativa “Craco Resiste” é uma medida importante. “A existência do movimento é positiva, pois contribui para a humanização do espaço, com a presença da sociedade civil organizada. Infelizmente o atendimento aos usuários de drogas e aos moradores de rua da região, na grande maioria das vezes, é repressivo, com ações espetaculosas e com grande nível de desrespeito aos direitos dos cidadãos”, diz o professor.

“Organizações sociais que se dediquem ao trabalho de humanização e atuem na formulação de uma política de redução de danos são importantes aliadas do poder público, desde que as autoridades tenham como objetivo combater o tráfico de drogas e o crime organizado, não as vítimas”.

Rogério Baptistini, sociólogo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Baptistini diverge de análises que apontam que movimentos como a “Craco resiste” podem fomentar a cracolândia. “Não é a 'Craco resiste' ou a ação de comunidades cristãs, católicas e evangélicas que mantém a cracolândia por décadas. Ela é fruto do fracasso no combate ao tráfico de drogas e na recuperação de dependentes químicos. A política repressiva contra o usuário não é a solução, tampouco políticas higienistas, como confiná-los em guetos, restringindo o direito de livre circulação”.

Baptistini repudia a postura do estado e da prefeitura com os usuários. “A cada ação fracassada do poder público, sobretudo, quando o fracasso toma a forma de violência contra os vulneráveis, setores da sociedade se mobilizam. Movimentos como a 'Craco resiste' atuam para reduzir os danos que as drogas causam e na busca de soluções humanizadas”, completa o professor.

Decisão do STF de descriminalizar posse de maconha pode criar filiais da cracolândia pelo país?  

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem cinco ministros que já votaram a favor da liberação do porte de maconha para consumo pessoal. O julgamento foi suspenso pela Corte sem data prevista para voltar à discussão.

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Para o advogado criminalista Roberto Delmanto Junior, não se pode criminalizar alguém pelo consumo de maconha. “As pessoas podem dispor de seu próprio corpo, o consumo de qualquer droga não pode levar à punição daquele que a consome. É o mesmo raciocínio de que a tentativa de suicídio não pode ser punida”, afirma Delmanto.

Ele defende que é preciso diferenciar o poder nocivo de cada substância. “Na minha visão, há que se considerar a especificidade de cada droga diante de seu potencial destrutivo e de dependência. Mesmo com a atual proibição do consumo de drogas para uso próprio, vivenciamos há décadas a cracolândia”, pontua o criminalista.

Delmanto atesta é inconstitucional punir alguém por fumar maconha. “O consumo de qualquer droga não poderia levar à punição daquele que a consome. É a liberdade sobre o próprio corpo. A punição criminal pelo uso de maconha deve ser julgada inconstitucional pelo STF, preponderando a liberdade de cada um sobre o seu próprio corpo. Todavia, é legítimo que o Estado imponha restrições a locais de uso”.

“Ao julgar a inconstitucionalidade do artigo da lei de drogas que impõe advertência ou tratamento a usuário de maconha (a pena de prisão já foi afastada), isso não significa um 'liberou geral'".

Roberto Delmanto Junior, advogado criminalista.

Delmanto critica a falta de campanhas do Governo Federal para o tema. “É lamentável não assistirmos absolutamente nenhuma campanha em rede nacional por parte do Ministério da Saúde, alertando a todos sobre os graves problemas causados pelas drogas, buscando também uma conscientização dos jovens”.

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Para o criminalista, a descriminalização do uso de maconha não criará novas cracolândias. “O julgamento do STF em nada alterará a realidade existente, desde que limitado à maconha. Em vários países, o uso recreativo da maconha foi liberado há anos, como Portugal, Espanha, Holanda e alguns estados americanos”, diz Delmanto.

Por fim, o jurista diz que deve ter uma grande revisão de processos. “Se o STF julgar inconstitucional a criminalização do consumo de maconha, sem dúvida haverá diminuição das prisões em flagrante de pequenos traficantes. A quantidade da droga não pode ser o único critério para se saber se a pessoa é usuária ou traficante. Poderá ter ações de revisão para anular condenações por tráfico de pequena quantidade”, completa o advogado.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]