Cerca de dois meses após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência, o Tribunal de Contas da União fez um movimento importante sobre as privatizações no país: autorizou a desestatização dos portos de São Sebastião, no litoral norte do estado de São Paulo, e de Itajaí, em Santa Catarina. A autoridade fez modificações nas propostas como a exclusão do edital da previsão de cobrança de verba de fiscalização e de uma conta vinculada para recebimento de receitas advindas da venda dos portos, bem como estabeleceu a necessidade de elaboração de estudos concorrenciais atualizados.
Neste início do governo Lula, o encaminhamento pelo TCU é simbólico e passa para as mãos do governo federal a decisão de dar seguimento à agenda de desestatização de portos conduzida pelo governo Bolsonaro. Apesar de o presidente Lula se posicionar de maneira contundente contra privatização e desestatização e revogá-las em grandes ativos estatais como a Petrobras, os Correios e a Empresa Brasil de Comunicações (EBC), o entendimento tanto do próprio governo quanto de especialistas do setor é que o ramo dos portos deve ser encarado de maneira diferente.
Em entrevistas, o ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, tem deixado claro que há espaço para concessões de determinados serviços portuários, posicionamento que foi reforçado em resposta oficial à Gazeta do Povo. "Todos os processos serão analisados pela atual administração, mesmo aqueles que já tiveram o aval do Tribunal de Contas da União (TCU). Nos portos públicos poderão ser concedidos serviços importantes, como dragagem, sinalização e a operação dos próprios terminais, como já vem sendo feito há anos", disse a assessoria especial de comunicação do Ministério de Portos e Aeroportos. A pasta enfatizou, porém, que "os comandos das autoridades portuárias não serão exercidos por empresas, ou mesmo estatais de outros países".
Para Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho, diretor da Casa das Garças, que já participou de mais de 40 privatizações, entre elas como coordenador deste processo na Telebrás, o governo Lula será "tão pragmático quanto as necessidades que se mostrarem". Para a análise, ele considera que foi em 2011, no governo Dilma, por exemplo, que se iniciou a privatização dos aeroportos no país. "Vejo com grande preocupação o discurso político de fortalecimento do estado na gestão das empresas, mas somos ao mesmo tempo surpreendidos por um certo pragmatismo que foi uma característica passada do governo Lula. Foi um governo que criou a legislação das Parcerias Público Privadas e privatizou, mesmo que em um modelo ruim", diz ele.
Portos no estado de São Paulo
O Porto de São Sebastião é administrado pela Companhia Docas de São Sebastião (CDSS), do governo do estado de São Paulo, por meio de um contrato de delegação com vencimento em 2032 e podendo ser prorrogável por mais 25 anos. De acordo com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil), "a intenção do governo local é trabalhar na desestatização do Porto, a partir de diálogos com o Governo Federal."
Para Sérgio de Aquino, presidente da Federação Nacional das Operações Portuárias (Fenop), "há uma probabilidade muito grande de que esse processo de desestatização de portos continue porque o governo do estado, que detém a delegação, defende essa tese". Vale destacar que o caso do Porto de São Sebastião é diferente do Porto de Itajaí, uma vez que o município, que possui a delegação do porto, é contra a desestatização.
Informações da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) apontam que o processo licitatório da concessão do Porto de São Sebastião prevê contrato de 25 anos, a um valor de R$ 237,4 milhões e investimentos de R$ 3,26 milhões. A expectativa é de capacidade de 56 milhões toneladas em 2060, um crescimento médio anual de 0,3% ao ano. Já o valor de outorga mínimo proposto é de R$ 33,3 milhões, a ser pago em parcela única.
Após as mudanças estipuladas pelo TCU, no entanto, a Antaq aguarda os ajustes do Ministério de Portos e Aeroportos para definir os editais e abrir a licitação. "O ministro estava ponderando os dois lados e não sabemos ainda se as desestatizações das companhias Docas vão continuar. O fato de ter essa movimentação do TCU acaba trazendo o assunto", diz Patricia Gravina, chefe da Assessoria Especial de Concessões da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).
A avaliação de Gravina é que a decisão do TCU em relação a desestatização dos dois portos pode impactar nas decisões do Tribunal sobre o Porto de Santos, que aguarda o posicionamento do órgão após pedidos de vista de ministros no final do ano passado. "Provavelmente essas decisões que ocorreram nesses dois portos devem repercutir no Porto de Santos, mas não podemos descartar mudanças, já que o Porto de Santos tem características ímpares", diz Gravina.
A Antaq aprovou o processo de concessão pública do Porto de Santos, considerado o maior da América Latina, em setembro do ano passado, com prazo estipulado de 35 anos e possibilidade de prorrogação por mais cinco anos. A previsão foi de R$ 6,3 bilhões em novos investimentos, sendo R$ 2,1 bilhões para infraestrutura portuária e R$ 4,2 bilhões para a elaboração de um túnel de interligação entre Santos e Guarujá.
Diálogo entre Tarcísio de Freitas e Lula
A recente aproximação do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, do partido Republicanos, com o presidente Lula, do rival PT, na tragédia causada pelas chuvas em São Sebastião é vista como positiva para o andamento das pautas de interesse do estado. Apesar de os dois já terem dialogado em quatro encontros formais, as manifestações públicas com direito à abraço e palavras cordiais intensifica a expectativa do surgimento de acordos.
"Essa parceria que estamos fazendo aqui é uma fotografia boa para o nosso país", disse Lula ao lado de Tarcísio em São Sebastião. "Sei com qual partido o Tarcísio disputou as eleições. Veja que coisa bonita e simples, nós estamos juntos. Acabou a eleição, ele tem a obrigação de governar o estado de São Paulo, e eu tenho governar o país".
Por trás dessa harmonia está o secretário de Governo de Tarcísio, Gilberto Kassab, do PSD, partido que detém três ministérios de Lula. Braço direito de Tarcísio, Kassab já é visto como quem de fato está governando o estado e sua intensa capacidade de articulação política deve facilitar o andamento de pautas conjuntas com o governo federal, como o Porto de Santos.
Além do porto, o governo de São Paulo está discutindo a criação de um fundo para a construção de um túnel que ligue as cidades de Santos e Guarujá. No começo do ano, o ministro Márcio França indicou a possibilidade de que recursos da Santos Port Authority, administradora do Porto, possam financiar as obras junto com o governo federal, estimadas em R$ 3 bilhões.
“Eu encontrei com o Kassab, combinei para conversar com Tarcísio, e quem sabe fôssemos a Santos mostrar definição, seria muito bom para o Brasil mostrar que podemos caminhar juntos independente de posições ideológicas quando interesse público está se sobrepondo”, disse França na época em entrevista à CBN São Paulo. "É possível ser feito com o recursos da docas e do governo federal", disse ele, não descartando a ajuda dos governos estaduais e municipais.
Em reunião realizada na semana passada entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com sete governadores, o chefe do executivo de São Paulo apresentou pautas como a concessão do Porto de Santos e a construção do túnel entre Santos e Guarujá, além de mais verbas para saúde, renegociação de passivos de hospitais com bancos federais e investimentos em trens e metrôs.
Modelo internacional alternativo à desestatização de portos
Na análise de Sérgio de Aquino, presidente da Fenop, o Brasil precisaria realizar uma alteração na legislação, de maneira que possa implementar de maneira mais eficiente o modelo privado de propriedade pública com o formato chamado Landlord. Trata-se de uma modalidade na qual o poder público é dono da área portuária, cuida da administração e dos serviços portuários, enquanto a iniciativa privada arrenda áreas, implanta terminais e opera cargas.
"A nossa legislação não segue este modelo, portanto temos portos de propriedade pública com graves problemas ao longo dos anos. Há necessidade de se recuperar e garantir a competitividade dos portos públicos frente aos privados", diz Aquino. Entre os principais entraves existentes no setor, citados por ele, estão a falta de autonomia administrativa e financeira dos portos, uma vez que administração é centralizada no governo federal, e não nos estados e municípios.
Além disso, há ausência de governança corporativa nas companhias, uma vez que o Conselho de Autoridade Portuária (CAP), existente na legislação anterior, deixou de ser deliberativo e passou a ser apenas consultivo depois da Medida Provisória 2595, editada em 2013 pelo governo de Dilma Rousseff. E, ainda, o excesso de interferência política partidária nas nomeações dos dirigentes dos portos.
Desestatização de portos na gestão anterior
O governo de Jair Bolsonaro foi um defensor ferrenho das privatizações e, em 2021, realizou os maiores leilões da história no setor de rodovias. O período foi representado pelo então ministro de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, atual governador de São Paulo, dando marteladas enérgicas no balcão de madeira da B3, que marcaram o entusiasmo do governo com a pauta. Dados da bolsa brasileira apontam que foram 32 leilões realizados em 2021, com 102 ativos públicos alienados ou concedidos à iniciativa privada em um total de R$ 90 bilhões em investimentos. Já no ano passado foram R$ 85 bilhões em investimentos.
A expectativa dentro da própria B3 é que neste e nos próximos anos haverá mudança nas composições de leilões, uma vez que a União possui menos ativos que antes e a priorização do Estado como condutor da economia é uma política declarada do governo Lula.
Porém, há expectativa por casos específicos, como participação leiloada pelo BNDES ou vendas conduzidas por estados e prefeituras. Apesar dos números vultosos, alguns modelos de concessão para a iniciativa privada realizados durante o governo Bolsonaro são questionados, como é o caso do Porto de Vitória, leiloado no ano passado e que antes era administrado pela empresa pública Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa).
Em um modelo inédito no país estruturado pelo BNDES, houve um processo de desestatização de portos, no qual o fundo de investimentos Shelf 119 Multiestratégia, da gestora Quadra Capital, representado pela Necton Investimentos, comprou o direito de explorar o porto por 50 anos e, simultaneamente, o direito de privatização, com a compra da Codesa pelo fundo.
"O governo anterior optou por esse caminho de desestatização e privatização de portos. No sistema brasileiro, o porto público tem problemas que precisam ser resolvidos, mas alguns portos que conseguiram parcialmente o modelo Landlord conseguiram resultados melhores, como o Porto de Paranaguá, no Paraná; de Suape, em Pernambuco; e do Itaqui, no Maranhão. Eles foram entregues pelo governo federal ao governo do estado e só por estarem sendo administrados localmente já apresentam resultados melhores", diz Aquino, da Fenop. "Dentro dessa lógica, o fato de o processo em relação ao porto de Santos ter sido interrompido inclusive pelo TCU permite uma oportunidade de se rediscutir essa questão", diz ele.
Ativos portuários no pipeline
Na Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), três projetos de arrendamento estão sendo analisados para lançamento de edital, entre eles o MAC11, no valor estimado de R$ 28,8 milhões; o MAC11A, de R$ 46,4 milhões; e o MAC12, de R$ 37,5 milhões, em Alagoas, que são terminais de combustível muito estratégicos do ponto de vista regional, com prazo de concessão de 25 anos. Há também o POA01, no Rio Grande do Sul, estimado em R$ 17 milhões e prazo de 10 anos, e o TMP, no Ceará, um terminal de passageiros no valor de R$ 3,1 milhões, por 25 anos.
Além deles, há os projetos de concessão aeroportuária que estavam aguardando o TCU e agora dependem do Ministério de Portos e Aeroportos, como o Porto de Santos, de São Sebastião e Itajaí. E há ainda ativos com possibilidade de atração de investimento privado aguardando serem encaminhados à Antaq, como um canal de acesso de Paranaguá e o canal da Galheta, na fronteira do Uruguai com o Rio Grande do Sul, projeto importante para os planos geopolíticos de integração com a América Latina do governo Lula.
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