Impasse sobre a cracolândia perdura por mais de 30 anos na capital paulista com consumo de drogas ao ar livre.| Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Ouça este conteúdo

Sob pressão social para efetivar soluções na região da cracolândia, no centro de São Paulo, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) ergueu um muro de 2,5 metros de altura e 40 metros de comprimento na Rua General Couto Magalhães, no bairro Santa Ifigênia. A barreira busca separar fisicamente usuários de drogas dos moradores e comerciantes da região.

CARREGANDO :)

Segundo a prefeitura de São Paulo, o número de frequentadores na cracolândia caiu significativamente nos últimos anos. Há uma década, a área abrigava cerca de 4 mil pessoas, enquanto hoje esse número é estimado em 700 usuários. A redução, segundo a gestão municipal, é acompanhada diariamente a partir de monitoramento feito por drones.

Uma tentativa de dispersar os usuários foi deslocá-los para ruas menos movimentadas, afastando-os de áreas residenciais e comerciais. A medida, defendida pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), contou com operações conjuntas da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana - intensificadas no ano de eleição municipal. Porém, o fluxo retornou rapidamente para pontos centrais nos bairros da Luz e Santa Ifigênia.

Publicidade
Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Desde o início de 2024, ações conjuntas entre a Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar são deflagradas na região com a promessa de reduzir o tráfico de drogas e, consequentemente, o consumo pelos usuários. Apesar de reiteradas prisões em flagrante e do patrulhamento em áreas periféricas para sufocar o crime organizado, crack, cocaína e drogas sintéticas como a K9 continuam chegando em massa para os usuários da região.

Outra iniciativa da gestão Nunes na tentativa de amenizar o problema social e de saúde pública foi o envio de equipes de saúde e assistência social para abordar os usuários e oferecer tratamento espontâneo nos alojamentos municipais. A proposta conta com o apoio de especialistas em saúde pública, mas na prática a adesão foi baixa: a cada 10 abordagens, entre uma e duas pessoas aceitavam ajuda de forma voluntária, segundo apuração da Gazeta do Povo.

Apontada como uma das medidas mais efetivas até agora destaca-se a unificação das equipes médicas que atendem os usuários. Essa parceria entre estado e município ampliou o suporte a pessoas em casos de overdose e em atendimentos diversos.

Movimento critica gestão Nunes por muro na cracolândia

O movimento “Craco resiste”, criado em 2016 para defender usuários de drogas no centro de São Paulo, foi uma das vozes críticas à construção do muro na região. O grupo afirmou que a obra foi feita sem diálogo e classificou a medida como instituição de um “campo de tortura”.

Publicidade

“As pessoas ficam confinadas e obrigadas a permanecer sentadas no chão por horas durante supostas ‘operações’, sem proteção contra sol ou chuva. Objetos pessoais são recolhidos arbitrariamente, e viaturas circulam para coagir os frequentadores. Quem reage é preso por desacato”, protestou o movimento.

A “Craco resiste” defende que a prioridade deve ser a oferta de banheiros, chuveiros e água potável. “Os recursos poderiam ser usados em políticas de cuidado eficientes e na construção de infraestruturas que atendam às necessidades básicas de moradia e saúde. A prefeitura não promove o cuidado e ainda impede outras ações no local”, criticou ainda.

Crítico da gestão Nunes, PT patinou em ações na cracolândia

O problema não é novo, mas se arrasta na região do centro histórico paulistano. Durante a administração de Fernando Haddad (PT), entre 2013 e 2016, a prefeitura lançou o programa “De braços abertos”, que oferecia moradia em albergues e hotéis da região, três refeições diárias e um auxílio de R$ 15 por dia aos usuários de drogas. Inicialmente, o programa teve adesão de dependentes químicos que aceitaram se hospedar nos hotéis conveniados.

Mesmo assim, o chamado "fluxo" dos usuários de drogas não cessou. Dados da prefeitura indicam que, em 2016, o contingente na cracolândia chegou ao pico de cerca de 4 mil usuários. À época, a iniciativa foi apelidada de “De braços abertos para o crack”.

Um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), de 2023, apontou que 39% dos usuários de drogas da cracolândia frequentam o local há pelo menos 10 anos. A pesquisa também mostrou que seis em cada dez entrevistados residem na região, enquanto 40% vão até o local para consumir drogas e depois retornam para suas casas ou moradias coletivas. Conflitos familiares, extrema pobreza e violência doméstica são as principais respostas dadas por usuários de droga da cracolândia.

Publicidade

Médicos divergem sobre impacto do muro na cracolândia

O psiquiatra Ronaldo Laranjeira, especialista em dependência química e presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, defende a construção do muro na cracolândia. “Do ponto de vista de saúde, faz sentido aglutinar, e para a segurança também. O muro controla o acesso do crime organizado, que é o mantenedor da cracolândia. Quanto mais dispersos os usuários ficam, mais difícil é controlar”, afirmou.

Laranjeira, que coordena a ala psiquiátrica do Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas do Governo de São Paulo, próximo à cracolândia, considera o muro um facilitador para os cuidados médicos. “Concentrar as pessoas torna mais simples centralizar o atendimento. Nossa equipe do hub oferece serviços médicos na cracolândia, atendendo cerca de 30 a 40 pessoas por dia.”

O psiquiatra destacou que, apesar da redução no número de usuários, os que permanecem demandam atenção diferenciada. “À medida que conseguimos retirar cerca de 30 pessoas da cracolândia diariamente, os que ficam são os mais prejudicados e necessitam de cuidados mais específicos. Precisaremos adotar novas estratégias para esses casos.”

Já o clínico-geral Arnaldo Lichtenstein, do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo, diz que o muro não interfere no tratamento médico. “É uma medida que não gera consequências médicas para os usuários, apenas sociais. Já tivemos outras iniciativas semelhantes, mas isso não resolverá o problema. É sempre melhor construir pontes do que muros.”

Lichtenstein também rebateu críticas de que o muro prejudicaria os atendimentos médicos. “Não vejo impacto no trabalho de médicos, enfermeiros ou socorristas. Há uma passagem para ambulâncias no local, então o atendimento não é impedido.”

Publicidade

Quanto à alegação de que o muro dificultaria o acesso dos usuários ao tratamento voluntário, Lichtenstein considera o problema mais amplo. “A questão vai muito além do muro. Não será ele o fator que impedirá os usuários de buscar ajuda de forma espontânea”, concluiu.

Ex-secretário nacional da Segurança Pública defende muro

José Vicente, coronel da reserva e ex-secretário nacional da Segurança Pública, classificou o debate em torno do muro como desnecessário. “Não sei por que estão criando tanta polêmica. Essas pessoas na cracolândia precisam de cuidado, inclusive para garantir a própria segurança. O muro contribui para isso e também para a segurança geral da região”, afirmou.

O coronel apontou que a estrutura ajuda a reduzir crimes na área. “A cracolândia enfrenta problemas de roubos e furtos, e o muro auxilia nesse controle, sem tirar o direito de ir e vir dos usuários, como alegam os críticos.” A agora separação de concreto era feita, até então, por tapumes colocados pela prefeitura de São Paulo há cerca de um ano.

“O muro é visto como um símbolo, mas trata-se de uma solução urbana adequada. É uma intervenção necessária para controlar o comportamento dos usuários e proteger todos os envolvidos”, defendeu José Vicente.

Gestão Nunes rebate críticas sobre muro na cracolândia

Ao rebater as críticas relacionadas à construção do muro na cracolândia, a administração municipal paulistana reitera que a estrutura foi erguida em maio de 2024 para substituir os tapumes de metal. “Os tapumes eram frequentemente quebrados em partes pontiagudas, oferecendo risco de ferimentos às pessoas em situação de vulnerabilidade, moradores e pedestres, além de dificultar a circulação nas calçadas”, afirmou a prefeitura de São Paulo.

Publicidade

A gestão Nunes também rechaçou as acusações de “confinamento” de usuários e apontou melhorias feitas no perímetro. “Não há o que se falar em confinamento. Pelo contrário, o muro de alvenaria construído no ano passado ocupa uma extensão menor do que os tapumes anteriores. Além disso, uma lateral do terreno foi aberta, permitindo acesso. O local também recebeu um novo piso.”

A prefeitura ressaltou que as medidas implementadas contribuíram para uma redução de usuários na região. “Entre janeiro e dezembro de 2024, registramos uma redução de 73% na média de pessoas na cracolândia. Esse resultado é fruto de abordagens aprimoradas pelas equipes de saúde e assistência social, ampliação das ações de segurança com o uso de tecnologia. No ano passado, nossas ações resultaram em 679 pessoas alcançaram autonomia financeira, 308 obtiveram moradia e 261 restabeleceram vínculos familiares.”