A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigará o tratamento hormonal para transição de gênero em crianças e adolescentes no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo já é considerada a mais importante desse mandato da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). A votação para a mesa diretora foi realizada na última quarta-feira (14) e os debates acalorados entre os demais parlamentares mostram que a CPI será repleta de divergências de opiniões.
Enquanto o deputado Guilherme Cortez (PSOL), que como bissexual representa o movimento LGBT, afirmou que a "CPI carece de objeto e tem mais o intuito de criar factóide político em torno de uma situação muito sensível que é a saúde de pessoas trans no estado de São Paulo", o deputado Guto Zacarias (União Brasil) enfatizou a importância da CPI e afirmou que a transição de gênero acaba sendo uma escolha dos pais. "Costumo dizer que criança trans é igual a gato vegano. Todo mundo sabe quem está fazendo essa escolha. É o dono daquele pet. No caso da criança trans, é um pai irresponsável".
Votação apertada pela presidência da CPI
O deputado Gil Diniz (PL), autor do requerimento da CPI, foi eleito presidente em uma votação apertada contra a deputada Beth Sahão (PT), por cinco votos a quatro. Apesar da tradição da Casa de eleger como presidente da CPI o seu autor, a deputada Analice Fernandes (PSDB) justificou seu voto contra o deputado Gil Diniz no fato de Sahão ser psicóloga e se tratar de um "tema sensível". Sahão foi eleita vice-presidente, enquanto o deputado Tenente Coimbra (PL) foi indicado como relator.
Respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente
Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, o deputado Gil Diniz afirmou que os trabalhos não pretendem criminalizar ninguém. "Não queremos a priori criminalizar ninguém, mas se porventura alguém estiver fazendo algum experimento com crianças de uma maneira ilegal, médicos e pais serão responsabilizados", observou. Ele complementou que o objetivo da CPI é "entender o que acontece no Hospital das Clínicas e se o Estatuto da Criança e do Adolescente está sendo respeitado".
"Um adolescente não pode fazer uma cirurgia de redesignação sexual e, se por acaso isso foi feito, queremos saber por quem, como e quem autorizou. Já sobre o tratamento hormonal, queremos saber se ele é cientificamente comprovado ou se é um experimento, afinal são crianças e adolescentes que estão expostas", questionou.
Outra questão que o deputado quer elucidar por meio da CPI é se os indícios de que há pessoas que se arrependeram de fazer a transição de gênero são reais. "Toda criança que começa o tratamento vai até o final da transição? Alguma se arrependeu? O Hospital das Clínicas deve ter esses dados e queremos entender também o perfil social dessas crianças", disse ele.
Sem "juízo de valor" e "à luz da ciência"
A deputada Beth Sahão, por sua vez, afirmou à Gazeta do Povo que o objetivo da CPI é "trazer a ciência para o debate". "Nós não vamos trazer juízo de valor aqui, o juízo de valor vai ficar da porta para fora. Da porta para dentro é a ciência que valerá. Se alguém aqui negar a ciência, nós vamos tentar fazer um bloco forte para defender o trabalho científico", disse ela.
Sobre o fato de crianças e adolescentes ainda terem ou não um grau de imaturidade para decidir fazer a transição de gênero, Sahão afirmou que "eles não decidem, mas é uma questão que é apresentada muitas vezes pelas famílias."
"Eu também vou aprender nisso, mas nas reuniões que fizemos aqui com toda essa equipe envolvida, percebemos que esses jovens, esses filhos ou filhas se apresentam, querem fazer a transição de gênero e têm necessidade disso. Inclusive crianças que nascem com genitália dupla e têm que fazer cirurgia porque podem colocar em risco as suas vidas", disse.
Tratamento feito por voluntários desde 2010
Em 2021, o deputado Gil Diniz encaminhou um Requerimento de Informações ao Hospital das Clínicas "solicitando informações sobre o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual e sobre as crianças atendidas nesse Programa".
Em resposta, a instituição afirmou que o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (AMTIGOS-IPq-HCFMUSP) foi criado em 2010 "para assistência à saúde integral da população transexual adulta por equipe multidisciplinar" e que a partir da data começou "a receber por demanda espontânea famílias de crianças e adolescentes com variabilidade de gênero".
De acordo com o documento, "das 892 triagens realizadas" até o momento, “temos crianças e adolescentes das mais diversas idades, sendo 617 com até 17 anos. Em acompanhamento nesse ambulatório são 88 crianças (03 a 11 anos de idade) e 106 adolescentes (12 a 17 anos de idade)."
O documento afirma ainda que "a criança com menor idade que teve início de acompanhamento e em bloqueio do eixo hipotálamo-hipófise, foi com 10 anos e 8 meses. Das 53 encaminhadas para acompanhamento endocrinológico, 16 tiveram alta e 37 continuam em seguimento, a grande maioria com idade maior de 12 anos (apenas 10 têm menos de 12 anos de idade - idade de média de 11 anos de idade)."
Além disso, o documento informa que "o trabalho é basicamente voluntário e só utiliza as instalações do Instituto de Psiquiatria e do Instituto da Criança e do Adolescente". Os profissionais que participam do trabalho são, na maioria, psicólogos, mas também psiquiatras, pediatras, fisioterapeuta, educador físico, fonoaudiólogo, assistente social e enfermeiro.
Requerimento da CPI sobre transição de gênero
No requerimento da abertura da CPI realizado pelo deputado Diniz, ele argumenta que as informações enviadas pelo Hospital das Clínicas em 2021 já são motivos de preocupação, porque "foi apenas em 2019 que o Conselho Federal de Medicina, órgão com prerrogativa legal de disciplinar a prática e a ética médica no Brasil, regulamentou, por meio da Resolução nº 2265, o acompanhamento e o tratamento de crianças e adolescentes com suspeita ou diagnóstico de incongruência de gênero".
O deputado argumenta que "a resolução anterior sobre o tema, vigente à época da criação do AMTIGOS e do recebimento das primeiras crianças e adolescentes para tratamento, era a de nº 1.955 de 2010, que pressupunha, no tratamento de transexuais, a maioridade civil dos pacientes".
Dessa maneira, ele afirma que "durante quase uma década o Hospital das Clínicas permitiu e praticou por meio de seus médicos e em suas dependências um tratamento não regulamentado nem autorizado pelo Conselho Federal de Medicina."
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