O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), enviou à Procuradoria-Geral da República (PGR), no último dia 25, a ação que questiona a privatização dos cemitérios municipais de São Paulo. Dino determinou que a prefeitura volte a cobrar os valores praticados antes da concessão, corrigidos pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), enquanto o plenário do STF analisa o caso.
A ação, movida pelo PCdoB, aponta supostas irregularidades e problemas enfrentados pelos cidadãos após a privatização dos cemitérios em São Paulo. Reportagens publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo e pelo portal UOL destacaram denúncias de preços abusivos e dificuldades no acesso aos serviços funerários, incluindo o caso em que uma família não conseguiu enterrar uma criança recém-nascida devido à cobrança de R$ 12 mil pela empresa concessionária.
Enquanto isso, na última quarta-feira (27), auditores do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP) identificaram irregularidades graves em cemitérios municipais concedidos à iniciativa privada desde março de 2023. Durante vistorias recentes, um crânio, restos humanos e materiais fúnebres foram encontrados misturados à terra em escavações realizadas em 10 cemitérios da capital. A gravidade da situação levou à convocação de uma reunião com a SP Regula, agência responsável por fiscalizar os serviços das concessionárias, na última quinta-feira (28).
Julgamento começa na sexta-feira
Os ministros do STF decidirão sobre o caso em plenário virtual. O julgamento está agendado para ocorrer entre os dias 6 e 13 de dezembro. Dino justificou a urgência de sua decisão, tomada no último dia 24, citando possíveis violações de direitos fundamentais. “O tema em questão envolve graves violações a preceitos como a dignidade da pessoa humana e a obrigatoriedade de manutenção de serviços essenciais. Por isso, medidas urgentes são necessárias para resguardar esses direitos”, afirmou Dino em sua decisão.
O ministro atendeu parcialmente ao pedido do PCdoB, determinando que as tarifas funerárias respeitem o teto dos valores anteriores à privatização, devidamente corrigidos pela inflação. Dino destacou que, embora a privatização tenha sido apresentada como uma forma de modernizar os serviços, há indícios de "geração sistêmica de graves violações a diversos preceitos fundamentais".
Ele também destacou o impacto das tarifas elevadas sobre a população mais vulnerável, apontando que a situação exige uma resposta célere e proporcional para evitar maiores danos aos direitos básicos. O ministro Flávio Dino foi procurado pela Gazeta do Povo, mas não respondeu até a publicação deste texto. O espaço será atualizado caso ele se manifeste.
Contexto da denúncia
Um dos casos citados na ação foi relatado pelo presidente da SP Regula (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Município de São Paulo, responsável por fiscalizar e regular os contratos de concessão dos serviços funerários e cemiteriais da cidade), em audiência na Câmara Municipal no último dia 12. Durante a audiência, foi revelado que uma família não conseguiu realizar o enterro de uma criança devido à cobrança de R$ 12 mil por parte da concessionária responsável pelo cemitério.
Celso Vitor Souza, de 61 anos, disse à Agência Brasil que a concessionária do cemitério Vila Nova Cachoeirinha não presta informações que esclareçam sobre as antigas concessões de uso de jazigo, feitas antes da concessão dos cemitérios à iniciativa privada. Este foi o caso da família dele, que está sendo cobrada em R$ 20 mil para renovação da concessão de uso. No local, foram enterrados os pais e irmão de Souza.
“Em julho deste ano, a família foi realizar a exumação [do meu irmão] e foram impedidos. Os agentes funerários alegaram que a concessão venceu e era necessário o pagamento de R$ 20 mil. Procurei a Defensoria Pública, que exigiu as informações por escrito. Só então foi permitida a exumação. No entanto, até o momento continuo sem saber quais são os meus direitos com relação ao túmulo da família”, relatou Celso.
Preços: antes e depois da privatização dos cemitérios em São Paulo
Antes da privatização dos cemitérios em São Paulo, o custo total de um pacote de serviços para enterro de uma pessoa ficava em R$ 428,04, na categoria “popular”; R$ 863, na “padrão”; e R$ 1.507,32, na “luxo”, conforme levantamento do Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo (Sindsep). Depois da concessão das unidades à iniciativa privada, os valores passaram para R$ 1.494,14; R$ 3.408,05; e R$ 5.737,25, respectivamente.
Na cremação, antes da privatização, o custo ficava em R$ 609,76, na categoria “popular”; R$ 1.126,25, na “padrão”; e R$ 2.244,43, na “luxo”, apontou o Sindsep. Depois da concessão, os valores passaram para R$ 2.333,20; R$ 5.487,91; e R$ 7.804,95, respectivamente. O pacote considerado no levantamento inclui venda de caixão com revestimento interno, enfeite floral, velas e véu, além de carro de remoção e de enterro/cremação, aluguel da sala de velório, de paramentos funerários e de mesa de condolência.
Pelo acordo, as empresas Cortel, Velar, Maya e Consolare pagaram R$ 7,2 bilhões à prefeitura para administrar as unidades pelos próximos 25 anos. As concessionárias vão pagar R$ 646 milhões em outorgas e também repassar 4% de suas receitas aos cofres municipais.
O Sindsep afirmou, em nota, que a entidade "sempre esteve atenta às graves consequências das privatizações. Antes mesmo da concessão, já alertávamos que os preços iriam aumentar, como era evidente nos anexos das tabelas incluídas nos contratos de concessão." Segundo dados do Sindsep, antes da privatização, iniciada em março de 2023, o valor de um caixão simples era de R$ 147,14. Após as concessões, um modelo equivalente passou a custar R$ 695,63.
Caso a decisão do STF seja implementada, o preço de um caixão simples deve ser ajustado para R$ 157,75, considerando a correção pelo IPCA, conforme estipulado por Dino.
O sindicato reforçou sua posição no debate em andamento na Câmara Municipal de São Paulo, defendendo a caducidade dos contratos de privatização com as concessionárias e o retorno de um Serviço Funerário Municipal para a cidade. "A privatização dos cemitérios e do crematório municipal confirma um padrão já observado em outras privatizações: piora na qualidade do serviço e aumento de custos para a população", conclui a nota.
Prefeito critica decisão do STF e alerta para aumento de custos em serviços funerários
O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), teceu duras crítica à decisão do ministro do STF Flávio Dino, que determinou o retorno das tarifas de serviços funerários aos valores praticados antes da concessão, corrigidos pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo). Segundo ele, a medida, baseada em informações "equivocadas", pode resultar em aumento de custos para a população e na perda de benefícios importantes.
“O contrato de concessão já prevê que os preços praticados sejam os de 2019, com uma correção muito pequena, em torno de 4%. Agora, a decisão pede que usemos os valores de antes da concessão, corrigidos pelo IPCA, o que daria um aumento superior a 8%”, afirmou o prefeito, classificando a situação como um erro que prejudica os paulistanos.
Para Nunes, a concessão trouxe avanços significativos para o setor, como o desconto de 25% no funeral social. “Se voltarmos aos valores de antes da concessão, esse desconto será perdido. Isso é um retrocesso. Não é razoável exigir que retornemos a um modelo menos eficiente e mais caro para a população”, afirmou.
Tenho certeza de que, ao entender o contexto, ele (Dino) vai reformar a decisão. Ele é uma pessoa sensata, mas claramente foi mal informado.
Prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes
Sobre os serviços gratuitos, o prefeito destacou que eles continuam garantidos para as famílias cadastradas no CadÚnico. “Hoje, atendemos 1,68 milhão de famílias, o que corresponde a 3,8 milhões de pessoas. Para todos eles, o serviço funerário é totalmente gratuito. Esse é um compromisso que não vamos abandonar”, assegurou.
O prefeito revelou que enviou mensagens ao ministro Flávio Dino para esclarecer a situação e apresentar os dados que embasaram as tarifas atuais. “Mandei uma mensagem explicando que a decisão, como está, fará com que a população perca os 25% de desconto no funeral social e ainda enfrente um aumento nas tarifas. Tenho certeza de que, ao entender o contexto, ele vai reformar a decisão. Ele é uma pessoa sensata, mas claramente foi mal informado”, disse.
O prefeito também criticou a ação judicial movida pelo PCdoB. “Não dá para ignorar o caráter político dessa ação. Quando o PCdoB entra no STF, já sabemos que o objetivo não é técnico. É vergonhoso usar um tema tão delicado como o serviço funerário para fazer política”, afirmou.
Sobre as repercussões da decisão, ele explicou que, até o momento, a prefeitura não foi notificada oficialmente. “O que vale é a partir da notificação. Ainda não fomos informados, mas estamos prontos para dialogar e defender os avanços conquistados com a concessão”, explicou.
Caso a decisão seja mantida, o prefeito indicou que buscará alternativas para minimizar os impactos sobre os paulistanos. “Mesmo que sejamos obrigados a implementar as mudanças, não vou permitir que a população seja prejudicada. Vamos lutar para preservar o desconto no funeral social e manter as tarifas mais acessíveis possíveis”, prometeu Nunes.
Ele também criticou a cobertura da imprensa sobre o tema, afirmando que algumas reportagens contribuíram para a desinformação. “Li matérias descontextualizadas, como uma da Folha de S. Paulo, que citou um caso de uma cobrança de R$ 12 mil. Era uma situação totalmente diferente, de exumação e translado de corpo, não tem relação com o modelo atual. Essas informações distorcidas acabam alimentando decisões equivocadas”, pontuou.
Apesar das críticas, o prefeito demonstrou confiança em uma resolução positiva. “O ministro Flávio Dino tomou essa decisão acreditando que era o melhor para a população, mas, com os dados corretos, ele vai perceber que já avançamos muito mais do que o que foi sugerido. O diálogo é essencial, e estou disposto a esclarecer tudo para evitar que essa decisão prejudique os cidadãos”.
O prefeito de São Paulo afirmou que, mesmo diante de uma possível notificação oficial para implementar a decisão, buscará formas de manter os avanços conquistados pela concessão. “O que foi decidido pelo STF será respeitado, mas não podemos permitir que a população seja prejudicada com tarifas mais altas ou a perda de benefícios. Vamos dialogar para garantir o melhor para os paulistanos”, concluiu.
Prefeitura de São Paulo autua concessionárias de cemitérios por irregularidades
As reclamações dos paulistanos sobre os serviços prestados pelas concessionárias que administram os 22 cemitérios da capital resultaram em 134 autuações (autos de infração) emitidas pela prefeitura de São Paulo desde o início dos contratos de concessão. De acordo com dados da SP Regula, agência responsável pela fiscalização das concessões, houve uma média de mais de 1,5 processo administrativo por semana ao longo de um ano e sete meses de vigência dos contratos, que começaram em março de 2023.
Apesar do alto número de autuações, apenas 22 das 134 infrações foram convertidas em multas, o que representa cerca de 16,5% do total de processos administrativos abertos até o momento. A gestão de Nunes não informou o valor das multas aplicadas nem os motivos específicos que levaram às infrações, mesmo após questionamentos da reportagem da Gazeta do Povo. A SP Regula também foi procurada, e não se pronunciou.
As concessionárias com o maior número de infrações contratuais nesse período foram:
- Grupo Maya: 51 autos de infração
- Cortel: 28 autos de infração
- Consolare: 25 autos de infração
- Velar: 16 autos de infração
O que dizem as concessionárias
O Grupo Maya disse que ainda não foi notificado sobre a decisão do STF, mas reforça que segue todas as regras do contrato estabelecido em 2023. Em nota, diz que em pouco mais de um ano e meio, investiu R$ 192 milhões, entre valor de outorga e execuções antecipadas, e apresentou um plano de melhorias que será implementado até 2027 conforme contrato. "Todos os valores praticados estão previstos na tabela da prefeitura de São Paulo, que consta afixada em todos os cemitérios administrados pelo Grupo Maya. Os cemitérios sob concessão do grupo oferecem diferentes opções de valores para todos os serviços funerários", disse a empresa.
Questionada sobre as infrações aplicadas pela prefeitura, a empresa disse que apresentou defesa e que seis casos se tornaram multas. "O grupo está em melhoria constante de todos os seus processos e serviços para oferecer um atendimento cada vez melhor ao cidadão paulistano”.
Procurada pela Gazeta do Povo, a concessionária Velar SP esclareceu que não foi citada na decisão do ministro Flávio Dino e no momento acompanha os desdobramentos desta ação. Sobre alteração de preços, a concessionária aguarda a manifestação do poder concedente.
A Consolare, por sua vez, informou que ainda não recebeu notificação formal a respeito da recente decisão sobre supostas infrações cometidas pela empresa. Em comunicado, a companhia reafirmou que "segue rigorosamente todas as exigências previstas no edital de concessão". Segundo a empresa, eventuais casos isolados são imediatamente revisados, e, quando identificadas falhas, as mesmas são prontamente corrigidas.
Das 25 infrações apontadas, quatro foram convertidas em multas. Uma delas, no valor de R$ 15 mil, já foi paga pela empresa. A Consolare destacou que permanece comprometida com a excelência dos serviços e com o cumprimento das regras estabelecidas no contrato.
A concessionária Cortel SP foi procurada pela reportagem da Gazeta do Povo, mas não retornou contato até a publicação deste texto.
Auditoria do TCM encontra crânio em cemitério e resíduos de velório em áreas escavadas
No mês passado, o Tribunal de Contas do Município (TCM) fez vistoria nos cemitérios de São Paulo. De acordo com o relatório apresentado sobre esse trabalho, as concessionárias vêm realizando obras em quadras gerais, onde os sepultamentos eram feitos diretamente no solo - prática extinta em janeiro de 2024, quando o modelo de gavetas de laje passou a ser obrigatório. No entanto, as escavações para a construção de nichos no solo e columbários têm ocorrido sem a realização de exumações prévias, conforme determina a regulamentação.
Os auditores relataram casos críticos nos cemitérios Vila Formosa (administrado pela Consolare), Campo Grande (Grupo Maya), Dom Bosco (Cortel) e São Pedro (Velar). No Vila Formosa, um crânio foi encontrado solto no solo após a movimentação de retroescavadeiras.
No São Pedro, resíduos de exumações estavam armazenados de forma inadequada, em contêineres abertos e misturados com restos de materiais de construção. Em outros locais, pedaços de madeira e mantas mortuárias foram encontrados descartados junto a entulhos de obras.
As irregularidades foram constatadas em outros cemitérios, incluindo os da Saudade e Lajeado, ambos na zona leste. O TCM reforçou que as imagens capturadas evidenciam problemas graves de fiscalização por parte das concessionárias responsáveis pela administração desses espaços.
As concessionárias não conseguiram comprovar a destinação adequada das ossadas exumadas compulsoriamente. Segundo os auditores, os responsáveis apresentaram apenas sacos com restos humanos em quantidade muito inferior ao total de exumações realizadas.
Para Tribunal de Contas, houve problemas graves de fiscalização por parte das concessionárias responsáveis pela administração dos cemitérios.
O TCM encaminhou os apontamentos à SP Regula e ao prefeito de São Paulo, solicitando medidas urgentes. Além do descarte inadequado de ossadas, outras irregularidades foram identificadas, como falhas na manutenção, conservação, segurança e limpeza dos cemitérios municipais. A SP Regula confirmou que recebeu, “por meio de ofício, o conteúdo apurado pelo Tribunal de Contas do Município (TCM) e está na Corte nesta quinta-feira, 28, para apresentar as informações solicitadas”.
Na última quinta, ocorreu no TCMSP uma reunião voltada à troca de informações e discussão de aspectos relacionados às concessões dos cemitérios. O encontro contou com a presença de conselheiros do tribunal e do diretor-presidente da SP Regula, João Manoel da Costa Neto.
Durante a reunião, o tribunal cobrou que a SP Regula adote maior rigor na fiscalização das concessões dos cemitérios, especialmente na aplicação imediata de penalidades às concessionárias que apresentem falhas nos serviços, com destaque para a correta disposição de ossadas. Além disso, foi ressaltada a responsabilidade dos gestores das atividades, inclusive no âmbito penal, com a recomendação de instauração de inquéritos policiais em casos de vilipêndio a cadáver relacionados às ossadas.
Por sua vez, o presidente da SP Regula enumerou medidas implementadas para otimizar as ações fiscalizatórias da agência. Ele se comprometeu a aprimorar a comunicação com o tribunal.
A Velar enviou nota alegando que "o relatório do TCM não identificou restos mortais em cemitérios da Velar SP, e as novas gavetas foram instaladas em áreas recém-criadas. Uma falha pontual na destinação de resíduos foi corrigida, e a empresa mantém procedimentos rigorosos, com despojos exumados devidamente identificados. Os serviços de manutenção e segurança foram bem avaliados, e a Velar reforça seu compromisso com o contrato de concessão e atendimento de qualidade".
A Consolare esclareceu que desde 2023 "substituiu sepultamentos em cova rasa por gavetas de concreto no Cemitério Vila Formosa, seguindo normas ambientais. Despojos identificados foram armazenados em ossários, e ossos de antigas práticas de refunda foram recolhidos. Já foram construídas 11 mil gavetas, com R$ 19 milhões investidos em melhorias".
O Grupo Maya afirmou que “a empresa investigará os casos e tomará medidas. Assumiu os cemitérios há 1,5 ano, investiu R$ 192 milhões e segue aprimorando serviços conforme o contrato até 2027”. A Cortel SP não respondeu ao contato da reportagem. O espaço está à disposição para explicações.
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