O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), pretende assinar um acordo com o Tribunal de Justiça do estado (TJ-SP) para autorizar os policiais militares a elaborarem Termos Circunstanciados de Ocorrência (TCO). A medida permite que os PMs registrem crimes de menor poder ofensivo, trabalho realizado pela Polícia Civil no estado paulista. O anúncio da proposta provocou uma avalanche de manifestações contrárias pelos policiais civis nas redes sociais.
A repercussão negativa fez com que a cúpula da Polícia Civil convocasse uma reunião para a última segunda-feira (22), da qual participaram o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite; o delegado-geral da Polícia Civil no estado, Artur Dian; e o secretário-executivo da Segurança Pública, Nico Gonçalves, além dos delegados responsáveis pelos departamentos de Investigações Criminais (Deic), de Investigações sobre Entorpecentes (Denarc) e de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP).
Segundo apuração da Gazeta do Povo, a reunião passou de 10 horas de duração.
Ao fim do encontro, Derrite publicou um vídeo dizendo que será criado um grupo de trabalho com duração de 45 dias para discutir a implementação da medida. O secretário afirmou que além do TCO, os policiais discutirão a possibilidade da implementação do Boletim de Ocorrência Único (BOU), que pretende unificar os registros criminais pelas polícias, um desejo antigo da polícia paulista e em vigor em diversos outros estados.
"Nesse grupo de trabalho estarão presentes dois delegados de polícia, dois oficiais da PM e dois peritos da Polícia Técnico-Científica. Deixando claro que aqui em São Paulo a gente não quer que nenhuma instituição invada a competência legal de outra, portanto argumentos como: ‘olha, a PM vai receber atribuições de investigação, invadindo a competência da Polícia Civil', não é o nosso desejo e a gente não vai deixar que isso aconteça. É para isso que esse grupo de trabalho foi criado", afirmou Derrite.
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) começou em abril um treinamento para soldados, cabos e sargentos aprenderem a tipificar o TCO, que registra delitos como lesão corporal, posse de droga, invasão de propriedade, desobediência e desacato. Todos considerados de menor poder ofensivo e com pena máxima de dois anos. Os casos são julgados com mais rapidez por juizados especiais.
Juridicamente, a medida é autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e utilizada em outros estados. A nova norma potencializou o racha entre as polícias Militar e Civil em São Paulo.
A PM também estará autorizada a fazer diligências, como requisitar exames e apreender provas. O TCO será registrado eletronicamente por um policial na rua e posteriormente revisado por um oficial no batalhão. Após esse trâmite, o comandante do batalhão assina o termo e envia o documento para a justiça. Caso o Ministério Público ou o juiz solicitem mais informações, essas novas diligências também serão realizadas pela PM.
O documento que autoriza a produção do termo circunstanciado pela PM foi assinado pelo subcomandante da PM, coronel José Augusto Coutinho, ex-comandante das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota). Coutinho é considerado homem de confiança de Derrite e foi recentemente movimentado pela secretaria.
Durante uma inauguração de escola técnica, Tarcísio defendeu a medida. “É uma forma de ter mais polícia circulando, de aumentar nossa ostensividade, de melhorar nossa presença e, quanto mais presença a gente tiver, menos crime a gente vai ter. Então, é uma forma de ganhar tempo e aumentar a presença policial na rua”, disse o governador.
O TCO foi criado há quase 30 anos pela Lei 9.099/1995 e,desde então, é de competência da Polícia Civilem São Paulo. Em 2009 houve uma tentativa de transferir o TCO para a PM, mas na época a SSP alegou que os testes não foram bem sucedidos.
Sindicatos reclamam de transferência de poder da Polícia Civil para a Militar
Associações e sindicatos da Polícia Civil dizem ter piores salários em comparação com a PM, além do déficit de efetivo ser proporcionalmente maior do que na corporação-irmã. A ausência de membros da Civil em divulgação de balanço sobre a recente Operação Fim da Linha - que investiga empresas vencedoras de licitações em prefeituras e câmaras municipais ligadas ao crime organizado - foi outro motivo para crítica.
Jacqueline Valadares, presidente do Sindicado dos Delegados de Polícia de São Paulo (Sindpesp), argumenta que o déficit nas corporações é muito grande para uma somar o trabalho da outra. “Essa decisão vai contra o que prevê a Constituição Federal. Isso enfraquece a Polícia Civil e sobrecarrega a Polícia Militar. Da mesma maneira que faltam 17 mil policiais civis, há um déficit preocupante na PM. Não estão sobrando policiais militares no estado para fazer o trabalho da Civil. É preciso suprir o déficit nas duas pontas e apostar num trabalho coeso, em conjunto, de complemento, cada um com a sua atribuição”, defende.
A representante sindical reclama que a PC está sendo “escanteada”, ao relembrar que o estado de São Paulo concedeu reajuste maior à PM. “Isso não está correto. Cabe à Secretaria da Segurança Pública apostar na união entre as duas instituições e não fomentar disputas e crises institucionais, que acabam afetando negativamente o serviço oferecido na ponta”, argumenta a presidente da Sindpesp.
A Associação dos Delegados de Polícia de São Paulo (Adpesp) emitiu nota criticando a proposta da Secretaria da Segurança Pública sobre a Operação Fim da Linha. “Em um Estado de Direito a colheita e guarda das provas deve obrigatoriamente ser realizada com técnica e legalidade. Tal responsabilidade, pela Lei, compete à Polícia Judiciária [Civil]. Porém, em total arrepio a estes primados da lei e em uma atuação que também se distanciou da ética, a Operação Fim da Linha, de maneira propositada, foi deflagrada sem qualquer participação das autoridades policiais que estavam, já de muito tempo, colaborando com as investigações, trabalhando duro, perdendo horas de convívio com suas famílias”, protestou o órgão.
Delegado afirma ser “usurpação de função”
O deputado federal delegado Palumbo (MDB-SP) criticou a postura da pasta da Segurança. Ele entende que a medida vai aumentar a disputa entre as corporações paulistas. “É um absurdo. É uma usurpação de função pública, à Polícia Militar cabe o patrulhamento ostensivo. Se a gente citar, por exemplo, a cidade de São Paulo, onde a população sofre com pancadões e cansa de ligar 190, não vai uma viatura e é uma contravenção penal, eles teriam obrigação de ir. No caso de receptação culposa, quem vai decidir se é culposa ou dolosa?”, questiona.
O parlamentar diz que não há argumentos para essa mudança. “A desculpa que eles dão é de que vai economizar tempo. É mentira, porque vai tirar centenas de policiais das ruas para fazer um trabalho administrativo e burocrático, prejudicando o patrulhamento. Essa atitude do Derritte só acirra mais a rixa entre a Polícia Civil e a Militar. Já tirou mais de R$ 20 milhões de verba da Civil para colocar na PM. As delegacias do interior do estado de São Paulo estão sucateadas. Faltam 15 mil policiais civis. As delegacias estão fechadas. Ao invés de sanar todos esses problemas, ele cria outro”, reclamou.
Secretaria da Segurança Pública diz que decisão está respaldada na lei
A Secretaria da Segurança Pública reiterou à Gazeta do Povo que decisões do STF corroboram a mudança no procedimento em São Paulo. “A elaboração do TCO pela Polícia Militar é prevista pela Lei federal 9.099/95 e referendada por recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (ADIs 5.637, 6.245 e 6.264). Segundo entendimento da própria Suprema Corte, a lavratura do TCO não é atribuição exclusiva da polícia judiciária e não é um ato investigativo. Trata-se de um procedimento administrativo para o registro de crimes de menor potencial ofensivo – com pena máxima de até dois anos ou contravenções penais -, que são apresentados diretamente aos Juizado Especial Criminal (Jecrim), sem prejuízo às atividades de policiamento preventivo e ostensivo”.
A pasta evidencia que outros 17 estados utilizam o procedimento. “A medida já está em funcionamento em 17 estados brasileiros e tem como objetivo dar mais celeridade ao atendimento ao cidadão, otimizar recursos e garantir condições à Polícia Civil para o fortalecimento das investigações de crimes de maior potencial ofensivo, sem prejudicar o policiamento preventivo e ostensivo nas ruas do estado”, elenca a secretaria estadual.
Sobre a ausência da Polícia Civil na operação Fim da Linha, a pasta esclareceu que a operação foi conduzida pela PM e pelo Ministério Público, “como tantas outras já ocorreram. Isso em nada inviabiliza o trabalho da Polícia Civil, que continua atuante no combate ao crime organizado por meio de investigações e inquéritos em andamento por todo o estado paulista”.
Diligências da Polícia Civil no ano de 2020 teriam sido a nascente da operação. Após os recentes desdobramentos - sem a participação da Civil - o diretor do Deic, Fabio Pinheiro Lopes, deixou um grupo de conversas em aplicativo de mensagem com o tema da operação que investigava a ligação das empresas com a facção Primeiro Comando da Capital (PCC). Antes de deixar o grupo, Lopes disse que ficou sabendo da operação pela mídia e afirmou que não havia mais sentido permanecer no grupo. Parte dos comandados dele também deixou o grupo.
Coronel defende medida proposta por Tarcísio
Coronel reformado e ex-secretário nacional da Segurança, José Vicente apoia as mudanças propostas por Tarcísio. “A matéria é pacífica no STF. TCO é mero registro. Em 17 estados os PMs fazem o TCO sem problemas”, reitera ele.
O ex-secretário diz que estudos comprovaram a necessidade da mudança. “Há cerca de 20 anos, a PM levantou as horas passadas nas delegacias desde a chegada da polícia até o encerramento do TCO. Foi uma média de 350 mil horas por mês. Na velocidade de patrulhamento de 20 km/h seriam 7 milhões de quilômetros de patrulhamento. O gasto de tempo pela PM fazendo TCO seria 20% disso”.
Para o coronel, membro do conselho da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo (USP), a Polícia Civil não pode reclamar da mudança. “Economiza tempo. Há outra questão: a rapidez de atendimento do cidadão, o verdadeiro foco do trabalho policial. A Polícia Civil não pode reclamar por trabalhar menos, assim vai ter mais tempo para cuidar de sua verdadeira tarefa, a investigação. O que não tem sentido é ir além do registro, como fazer as diligências, o que já configura investigação. O resto é mimimi sindical”, avalia José Vicente.
OAB de São Paulo é contra mudança de procedimento na polícia
A Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP) afirmou que a mudança de norma que autoriza a Polícia Militar a realizar TCO é “ muito preocupante”. “A apuração de infrações penais comuns é de atribuição das polícias judiciária (civil) e federal prevista na Constituição Federal”, diz a nota da entidade. “Ou seja, há uma franca violação do artigo 144”.
“Além disso, a Lei 12.830/13, que dispõe sobre a investigação criminal, também estabelece que tal procedimento deve ser conduzido por delegado de polícia. Assim, o projeto é inconstitucional e ilegal, pois o governo do estado não tem competência para legislar sobre esta matéria”, diz o comunicado da OAB-SP.
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