Rede anônima produz maconha para os doentes
As dificuldades enfrentadas por pacientes para adquirir o CBD mobilizaram um grupo de cultivadores anônimos do Rio de Janeiro que, a despeito das implicações legais, produz e distribui gratuitamente derivados da maconha para uso medicinal principalmente o CBD, mas também extratos com maior concentração de THC.
"O objetivo principal do grupo é atender quem precisa de medicamento à base de maconha no Brasil e não tem acesso devido à burocracia e aos custos. E também ampliar o debate, mostrar que é possível e viável fazer um produto nacional e de qualidade com baixo custo", explica Emílio Figueiredo, advogado responsável pela defesa de cultivadores de maconha para uso próprio e fins terapêuticos desde 2009.
De acordo com Figueiredo, a rede é formada por usuários de maconha que possuem conhecimento de como produzir extratos de substâncias derivadas e passaram a fazê-lo para terceiros. Desde que O Globo publicou reportagem sobre o grupo, em outubro, Figueiredo conta ter recebido centenas de pedidos de ajuda de pessoas que precisam do CBD, mas não têm condições de arcar com os custos da importação. Nem todos os pedidos são atendidos.
"A rede tem um processo de seleção muito restrito. Só ajuda quem possui prescrição médica. A participação do médico é fundamental, por segurança clínica e jurídica", esclarece.
A atuação da rede, no entanto, gera controvérsia. "A preocupação dos médicos com o CBD artesanal é que ele possui componentes prejudiciais à saúde e pode produzir doenças a longo prazo, principalmente em crianças, com o cérebro em desenvolvimento. Em até cinco anos, crianças terão doenças psiquiátricas, pois no processo artesanal não se consegue extrair apenas o CBD, a concentração de THC ainda é muito alta e não há controle adequado de qualidade. Esse grupo que incentiva o uso medicinal pode ter uma boa intenção, mas não possui tecnologia suficiente para separar os componentes que são prejudiciais", pondera a neurofisiologista Ana Chrystina Crippa, defensora do uso do CBD.
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Saiba, abaixo, as respostas para as principais perguntas que cercam o canabidiol.
O que é o CBD?
A maconha possui mais de 480 componentes, desses, 80 são canabinoides e, entre eles, está o canabidiol (CBD). Trata-se de um composto oleoso com ação ansiolítica (redução da ansiedade), antipsicótica, neuro-protetora, anti-inflamatória e antiepilética.
O canabidiol vem geralmente com a consistência de uma pasta (semelhante à de creme dental). É melhor absorvida em óleo (manteiga, azeita de oliva, óleo de coco etc.) para consumo humano.
Qual é a diferença entre o CBD e o THC?
O CBD está presente em toda a planta, mas é encontrado em maior quantidade na raíz e no caule da cannabis. Não provoca efeitos psicoativos ou dependência. O tetra-hidrocarbinol (THC), composto da família dos fenóis, é a principal substância psicoativa encontrada na cannabis, sendo responsável pelos efeitos alucinógenos provocados pela planta. O THC é extraído principalmente das flores e da resina das plantas fêmeas.
Há algum prejuízo no uso medicinal do canabidiol?
O CBD puro pode provocar um pouco de sonolência; em alguns paciente, aumento de apetite e em outros, diminuição. Em testes laboratoriais em ratos, verificou-se que a interrupção brusca do medicamento não provoca dependência ou efeitos colaterais.
Grupo defende cultivo e produção artesanal
O grupo de cultivadores anônimos do Rio de Janeiro que, a despeito das implicações legais, produz e distribui gratuitamente derivados da maconha para uso medicinal, defende ainda uma mudança legislativa mais ampla, que regularize o cultivo da planta e a produção artesanal do medicamento pelo próprio usuário desde que de acordo com um padrão sanitário e farmacêutico mínimo. Hoje, o cultivo da maconha é ilegal, bem como a importação do CBD sem autorização da Anvisa. Figueiredo já defendeu algumas dezenas de cultivadores e pessoas que importaram sementes de maconha para produzir o próprio medicamento todos foram absolvidos.
Uma pessoa que cultive a maconha para fins medicinais é enquadrada pelo artigo 28 da lei 11.343/06, que equipara o cultivo ao porte de drogas. A defesa, nesse caso, alega que o uso tem fins terapêuticos. Já o entendimento sobre a importação de sementes varia: conforme Figueiredo, a Justiça do Rio de Janeiro e de São Paulo tem entendido que a importação não configura tráfico uma vez que o THC e o CBD são gerados apenas na fase adulta da planta.
No caso de pacientes que importem o CBD sem autorização da Anvisa, Figueiredo esclarece que a substância não consta expressamente na lista de substâncias proibidas no Brasil. "A alfândega pode barrar e a Polícia Federal pode enquadrar como tráfico de drogas, inicialmente, por ser derivado da maconha. Mas a proibição do canabidiol não é expressa".
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"Ainda temos medo da morte e da evolução da doença, mas, antes, nós vivíamos a doença o tempo todo, agora vivemos com a doença. Esse foi o maior impacto do canabidiol na nossa vida", resume a pediatra Maria Angélica Soares Queiroz Telles, mãe de Thiago, de 2 anos, que usa o canabidiol (CBD), substância derivada da maconha, no tratamento contra as crises epiléticas sofridas por ele desde os sete meses de idade.
O menino é portador da Síndrome de Dravet, doença rara de origem genética. Um ano e três meses depois da primeira convulsão, Maria Angélica percebeu que não havia mais medicamento disponível que não tivesse sido testado, sem sucesso. O estopim ocorreu em agosto deste ano, quando Thiago sofreu uma crise convulsiva por duas horas, ficando uma semana sem andar ou falar. O menino quase morreu. Sem alternativas medicamentosas, Maria Angélica decidiu encarar todo o processo para importar o CBD e testá-lo no filho. Usando o extrato há cerca de dois meses, Thiago recuperou o apetite e o sono, e fica até duas semanas livre de convulsões.
A história de Maria Angélica e Thiago é mais um relato dos efeitos positivos que a prescrição do CBD pode representar no tratamento contra diversas doenças, principalmente as epilepsias, embora pesquisas apontem bons resultados também em pacientes com mal de Parkinson, ansiedade, esquizofrenia e alguns transtornos do sono.
"O CBD age no cérebro em dois receptores, o CB1 e o CB2. O CB1 se liga ao canabidiol e libera uma substância e libera na fenda sináptica uma substância chamada anandamida. A liberação dessa substância proporciona estabilidade nas células neuronais, controlando melhor as crises convulsivas", explica a neurofisiologista do Hospital de Clínicas da UFPR e pós-doutora pela McGill University (Canadá) especializada em epilepsia, Ana Chrystina Crippa. Ainda segundo a médica, o CBD tem menos efeitos adversos que medicamentos tradicionais, sendo indicado principalmente para pacientes com epilepsia refratária, ou seja, quando o paciente usou mais de dois medicamentos e não conseguiu controlar a crise.
O caso mais emblemático do início do uso da substância no mundo é o de Charlotte Figi, hoje com 8 anos, e que foi a paciente mais nova do estado do Colorado, nos Estados Unidos, a utilizar o CBD no combate às convulsões diárias, quando tinha apenas 5 anos. Portadora da Síndrome de Dravet, como Thiago, quando sua família decidiu tratá-la com o extrato, Charlotte sofria até 300 convulsões graves por semana e já havia perdido a capacidade de andar, falar e comer. Aos 6 anos, a criança recuperou os movimentos e a fala e o número de crises epiléticas foram reduzidos a dois ou três episódios por mês.
No Brasil, Anny Fischer, de 5 anos, foi a primeira paciente a conquistar na justiça o direito de importar o canabidiol, em decisão de abril deste ano.
Falta de regras e demora desafiam paciência
Enquanto ainda não há perspectiva de quando a comercialização e produção do canabidiol serão autorizados em território nacional, a única alternativa é importar o produto, com aval da Anvisa.
A Agência exige uma série de documentos, a começar pela receita médica, laudo médico atestando a condição do paciente, termo de responsabilidade e formulário de importação excepcional. Desde abril, a agência já recebeu 208 pedidos de importação, dos quais 168 foram autorizados.
Superada essa primeira etapa, os pacientes são surpreendidos pelo alto custo do remédio ampolas com 10 ml custam, em média, R$ 1,8 mil, mas podem chegar ao país por até R$ 2,5 mil com os impostos embora a Receita Federal afirme que o CBD consta da lista de isenção de tributos. Os preço alto por um remédio que pode durar apenas uma semana e a demora levam muitas famílias a optar por outro caminho.
É o caso de Priscila Inocente, mãe de Miguel, de 5 anos, que enfrenta convulsões diárias desde um ano e dez meses. Miguel é autista, mas o que causa a epilepsia ainda é uma incógnita para os médicos; as suspeitas recaem sobre uma displasia cerebral, mas ainda não há confirmação. Os tratamentos contra as convulsões, no entanto, nunca vingaram.
Em fevereiro deste ano, tomada pelo desespero, Priscila decidiu produzir o extrato em casa. "Li um artigo de um médico americano orientando a produção artesanal. Coei e testei no meu marido. Depois o Miguel tomou. Usamos durante uma semana e paramos, porque mudou o padrão da crise e fiquei com medo", lembra.
Em março, ela encontrou uma forma de trazer três seringas de CBD do exterior. Miguel reagiu bem ao medicamento, as cerca de 30 crises diárias viraram duas, o apetite aumentou e o desenvolvimento melhorou. O resultado encorajou Priscila a comprar mais CBD, dessa vez pelo E-bay. "No início, minha família foi contra, tinham medo que eu fosse presa. Mas tenho certeza de que qualquer juiz entenderia uma mãe que tenta salvar o filho", diz, convicta. "Sempre pensei Vai fazer bem? Amém. Mais mal do que 30 convulsões por dia não vai fazer. O CBD é muito importante para o Miguel, lhe garante qualidade de vida".
Além de situações de risco como as enfrentadas por Priscila, a falta de regulamentação implica, ainda, outro agravante: os EUA, maior exportador de CBD para o Brasil, possui mais de cem empresas fabricantes; sem regulamentação da Anvisa, não há certeza sobre a concentração do CBD e quais são os componentes do produto importado.
"Cada produto possui concentração de CBD e de THC. No Brasil, entende-se que o THC é tolerado em até 0,6 ml por dia sem efeito negativo, mais que isso pode ser danoso ou tóxico. Mas não há controle sobre o produto importado; se fosse regularizado, a Anvisa poderia verificar a porcentagem de cada substância", explica a neurofisiologista Ana Chrystina Crippa.
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