Em dez anos, a importação e a produção de metilfenidato - mais conhecido como Ritalina, um de seus nomes comerciais - cresceram 373% no Brasil. A maior disponibilidade do medicamento no mercado nacional impulsionou um aumento de 775% no consumo da droga, usada no tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Os dados são de pesquisa do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
O remédio é usado sobretudo em crianças e adolescentes, os mais afetados pelo transtorno. Para especialistas, a alta no uso do medicamento reflete maior conhecimento da doença e aumento de diagnósticos, mas também levanta o alerta de uso indevido da substância, até por pessoas saudáveis que buscam aumentar o rendimento em atividades intelectuais.
Em sua tese de doutorado pela UERJ, defendida em maio, a psicóloga Denise Barros compilou os dados dos relatórios anuais sobre substâncias psicotrópicas da Junta Internacional de Controle de Narcóticos, órgão vinculado às Nações Unidas. De acordo com o levantamento, o volume de metilfenidato importado pelo Brasil ou produzido em território nacional passou de 122 kg em 2003 para 578 kg em 2012, alta de 373%.
A pesquisadora cruzou os dados da produção e importação e do estoque acumulado em cada ano, dado também disponível nos relatórios, para chegar aos prováveis índices anuais de consumo. De acordo com o levantamento, foram 94 kg consumidos em 2003 contra 875 kg em 2012, crescimento de 775%.
Dados mais recentes obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) confirmam a tendência de alta. Segundo o órgão, o número de caixas de metilfenidato vendidas no Brasil passou de 2,1 milhões em 2010 para 2,6 milhões em 2013.
"Houve um aumento da divulgação da doença e do número de pessoas que passaram a ter acesso ao tratamento, mas há outro fator importante, que é uma maior exigência social de administrar a atenção.
A especialista lembra ainda que há casos de adultos sem o transtorno que tomam o metilfenidato para melhorar a concentração e o foco nos estudos. "Isso é comum entre concurseiros, vestibulandos, estudantes de Medicina. Pouco se fala sobre isso no Brasil, mas nos Estados Unidos e em algumas partes da Europa, esse uso inadequado já é tratado como um problema de saúde pública."
Diagnóstico
Para o psiquiatra infantil Rossano Cabral Lima, professor da UERJ, a alta no consumo é motivo de alerta porque o diagnóstico de TDAH nem sempre é acompanhado de uma investigação aprofundada das possíveis causas do comportamento incomum da criança.
"Apesar de a medicação ser importante em alguns casos, o diagnóstico rápido de TDAH e o tratamento medicamentoso parecem ter se tornado a solução mais rápida e fácil de vários problemas sem que a origem deles seja analisada a fundo", diz. "Não se questiona se a inquietude da criança pode estar relacionada a alguma questão da escola, se é uma resposta a algo que ela não está sabendo lidar."
Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, afirma que, apesar da alta no consumo, ainda há milhares de brasileiros com TDAH sem tratamento. "Com o crescimento do acesso à medicação, estamos talvez começando a adequar a proporção de pessoas com o transtorno e pacientes tratados. Mas hoje, infelizmente, ainda temos subtratamento de TDAH."
O especialista cita um estudo publicado em 2012 na Revista Brasileira de Psiquiatria que apontou que apenas 19% dos brasileiros com TDAH fazem o tratamento com medicação.
"Percebi algo errado quando eles foram à escola", diz mãe
Para a técnica em educação Roberta Pardo Mendes, de 44 anos, o metilfenidato foi o que permitiu que seus filhos gêmeos, Murilo e Sofia, de 12 anos, tivessem a oportunidade de seguir os estudos. Ambos foram diagnosticados com TDAH.
"Percebi que algo estava errado quando eles foram para a escola. A professora me chamou quando eles tinham 6 anos e me disse que enquanto ela lia uma história para os alunos, o Murilo ficava correndo em volta da sala. Ele não parava nem um minuto sequer com o mesmo brinquedo", conta ela.
Naquele ano, o garoto foi diagnosticado com o transtorno e iniciou o tratamento com o medicamento. Sofia passou pelo mesmo processo um ano depois. "Eles só conseguiram iniciar a alfabetização depois de iniciar a medicação. Antes, não conseguiam ter foco em nada."
Integrante de uma associação de pais de crianças com TDAH, ela reclama do preconceito que já sofreu por ter optado pelo tratamento com medicação. "Cheguei a ouvir de um psiquiatra da Prefeitura que o que meus filhos tinham não era um transtorno, era um dom. Só que a falta de tratamento pode colocar a criança em risco, porque uma das características do TDAH é que a pessoa nem sempre tem a noção do perigo", diz ela, que defende que o tratamento seja multidisciplinar. "Hoje eles fazem tratamento no Hospital das Clínicas, com acompanhamento psicológico. O remédio sozinho não faz milagre, mas é necessário."
A experiência do bancário Felipe (nome fictício), de 33 anos, com o metilfenidato não foi tão bem sucedida. Em 2008, após se queixar de extrema ansiedade e de falta de foco para a psiquiatra, recebeu o diagnóstico de TDAH e a prescrição do medicamento. Desenvolveu dependência e, por um ano, tomou uma dose quatro vezes maior que a prescrita.
"Conseguia ter estímulo e determinação para ler textos da faculdade por horas, conseguia me concentrar, mas acabei desenvolvendo um comportamento abusivo." Para manter o estoque do remédio, ele se consultava com três médicos diferentes para ter acesso a mais receitas do que o recomendado no mês.
"Só depois que minha família percebeu que a situação estava fora do controle, contei tudo para a médica e ela disse que eu teria que me internar. Consegui ir parando aos poucos e hoje faço tratamento para depressão e transtorno de ansiedade. Nunca tive TDAH", diz.
Ele critica a falta de cuidados de alguns médicos no diagnóstico da doença. "Fui a poucas consultas com a psiquiatra e ela já me receitou a Ritalina. Acho que o aumento no consumo pode estar ligado a um uso indiscriminado do remédio."
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