Jean Luiz Neves Abreu, Doutor em História e professor da Universidade Federal de Uberlândia| Foto: Arquivo pessoal

O médico Jean Luiz Neves Abreu acaba de lançar o livro Nos Domínios do Corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII, pela Editora Fiocruz (R$ 29 no site www.fiocruz.br/editora/). Na obra, Abreu analisa antigos tratados de Medicina e manuais de prática médica escritos por médicos luso-brasileiros e estrangeiros e traça o perfil do saber médico naquele século. Leia os principais trechos da entrevista com o autor, em que ele fala de suas descobertas.

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A Medicina serviu para abafar características culturais brasileiras relacionadas à saúde?

O saber médico oficial se opunha a várias práticas dos curandeiros e às crenças populares em torno da saúde. Mas várias crenças, saberes e técnicas indígenas e africanas foram incorporadas. Alguns autores propõem que o contato entre o saber médico português e a realidade colonial marcou o início de uma "medicina tropical", ainda que essa disciplina só viesse se afirmar no século 19. Fato é que cirurgiões e médicos procuravam adequar os conhecimentos que obtinham dos livros às necessidades do clima e das condições de vida na sociedade colonial brasileira. É interessante observar que alguns conhecimentos dos índios e africanos, que exerciam atividades de curar paralelamente ao saber médico oficial, foram incorporados pela medicina oficial e até reconhecidos como úteis por alguns cirurgiões e médicos.

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O conhecimento médico à época confrontava o saber da Igreja?

Em vários aspectos o saber médico se aproximava do saber da Igreja. Os próprios médicos consideravam que a crença em Deus era um remédio contra várias enfermidades. Alguns médicos receitavam não só o recurso a medicamentos naturais, mas também a oração e penitência para atingir a cura do corpo. Entretanto, a partir da segunda metade do século 18, passa a haver por parte da cultura letrada, incluindo alguns clérigos, a tentativa de separar o conhecimento médico da religião. É a partir da influência das ideias e ciências ilustradas em Portugal que passa a haver um confronto entre o conhecimento médico e a religião.

O poder curativo dos banhos, águas e do ar são os destaques dos saberes dos luso-brasileiros?

Nas últimas décadas do século 18, compêndios de Medicina passaram a discutir questões ligadas à higiene, atentando para a necessidade de hábitos saudáveis, que envolviam desde os banhos quentes e frios, vistos como terapêuticos, e de manter a qualidade do ar. Havia uma associação entre a saúde do corpo e a qualidade do ar da atmosfera. Esse aspecto é perceptível em vários textos de medicina desde fins do século 17, mas se torna mais recorrente em textos publicados em fins do século 18, período em que os avanços da química na Medicina passam a fundamentar os argumentos dos médicos sobre os perigos do ar impuro, os "miasmas" como se falava na época, provocado por dejetos, pela decomposição dos corpos nas Igrejas, dentre outros fatores. Alguns médicos chegavam a recomendar utilização de substâncias odoríferas capazes de renovar o ar.

Naquela época a saúde não era ainda submetida ao Estado?

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O Estado português procurava controlar a saúde, principalmente na fiscalização do exercício da Medicina. Apesar dos limites das intervenções do Estado, não se pode desconsiderar os esforços empreendidos pelo governo português no sentido de combater as doenças e preservar a "saúde dos povos". O Estado foi o grande "financiador" da saúde, incentivando inclusive alunos portugueses e brasileiros a estudarem em universidades europeias. Mas nem sempre a quantidade de médicos e de cirurgiões era capaz de dar conta das atividades de curar no Império Português, do qual o Brasil era parte. Assim, efetivamente era difícil controlar aqueles que curavam sem ‘a devida licença.

Quais tratamentos atuais são resquícios daquela época?

Muitas das receitas consideradas hoje "caseiras" – como a utilização de ervas e unguentos – estavam presentes em textos de Medicina oficial. Em obra publicada em 1956, Alceu Maynard Araújo enquadrou tais práticas no âmbito da "medicina rústica", conceito cunhado pelo autor para denominar a Medicina relativa ao meio rural. Maynard coletou assim uma série de práticas relativas à excretoterapia nas comunidades rurais: o leite do peito, o primeiro cuspe da manhã, as fezes humanas e de animais, o sangue dos animais, entre outros remédios. Essa obra é relevante para a compreensão dessas permanências nas práticas de cura, muitas delas transmitidas informalmente ou pela cultura oral.

O conhecimento médico também fazia intervenções na moral?

Sim. Durante todo o século 18 vemos o médico se imiscuir nos hábitos cotidianos, nas vidas das famílias, na criação dos filhos, entre outras práticas. Em alguns casos, os conselhos sobre os cuidados com o corpo são aproximados de um sentido religioso, a exemplo da relação entre o excesso na alimentação e o pecado da gula. Mas a questão tem nuances que devem ser ressaltadas. Os textos médicos que consultei, publicados nas últimas décadas do século 17, trazem um novo sentido para essa moral. Procura-se construir cada vez mais uma moral médica distinta de uma moral religiosa. Os médicos passam a condenar inclusive alguns hábitos recomendados pela Igreja, como o jejum. A questão central passa a ser como o homem pode ter domínio de si mesmo e de seu corpo.

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Quais os preceitos sobre alimentação, educação física e sexualidade da época?

Alguns princípios permanecem pelo menos no tocante aos hábitos de conservação da saúde. Quando lemos revistas sobre saúde destinadas ao grande público ou programas de televisão, as recomendações sobre uma boa alimentação e exercícios físicos para a conservação da saúde são sempre reiteradas. O mesmo ocorre com relação à sexualidade. Nos textos médicos do século 18 essas questões também são tratadas, notando-se alguns princípios semelhantes, como a necessidade de uma boa e equilibrada alimentação bem como a importância da educação física para o fortalecimento do corpo, mas com a diferença do contexto e dos conhecimentos que subsidiam essas recomendações.