A enxaqueca ainda não foi totalmente desvendada
Muitas pessoas costumam usar o termo enxaqueca para qualquer dor de cabeça, mas, segundo os especialistas, ela é apenas um dos mais de 200 tipos de cefaleias catalogadas. "Dor de cabeça é qualquer dor acima do pescoço. A enxaqueca talvez seja a mais relevante pela alta prevalência (é a segunda mais comum, perdendo apenas para a cefaleia do tipo tensional) e pelos danos que causa tanto na vida de quem sofre quanto na sociedade, pelas perdas econômicas", afirma o neurologista Luiz Paulo de Queiroz.
Diário ajuda a identificar fatores
Fazer um relatório, anotando tudo o que se refere à dor, pode parecer extremo, mas é uma grande arma para quem tem dor de cabeça crônica. "Fazer um diário da dor é muito importante para identificar os fatores que estão ligados à ela. Pode até mesmo ajudar no diagnóstico", explica o neurologista Élcio Piovesan. Além disso, segundo ele, as anotações permitem estabelecer a frequência, a intensidade e a duração da dor, bem como se está havendo abuso de analgésico. Ele alerta que devem ser anotados, além das características da dor, outros fatores, como horas de sono, alimentação e, no caso das mulheres, a fase do período menstrual. Os dados devem ser analisados por um médico, mas podem servir também para o paciente adequar sua dieta, caso identifique que o consumo de um alimento desencadeia crises.
Mitos
Apesar de ser um problema comum, a dor de cabeça ainda é cercada de ideias falsas. Veja os mitos mais frequentes:
Dor de cabeça é coisa de mulher
Apesar de ser mais frequente entre elas, os homens também sofrem de cefaleia.
Criança não tem dor de cabeça
Estudos mostram que os pequenos também sofrem deste mal. Entre os 19 subtipos de enxaqueca, inclusive, há três síndromes periódicas da infância.
Toda dor de cabeça é enxaqueca
Dor de cabeça é qualquer dor localizada acima do pescoço. A enxaqueca é um dos mais de 200 tipos de cefaleia.
A enxaqueca pode ser causada por alimentos
Alguns tipos de alimentos, para algumas pessoas, podem desencadear crises de enxaqueca, e não causá-las. A causa das enxaquecas é genética.
Dor de cabeça forte é sinal de doença grave
Mentira. Uma das cefaleias mais frequentes, a enxaqueca, também é uma das mais intensas.
Fontes: Abouch Krymchantowski; Élcio Piovesan; Luiz Paulo de Queiroz; Pedro Kowacs.
Sinal de alerta
Em alguns casos menos comuns a dor de cabeça pode ser sintoma de outras doenças, que vão de simples resfriados a aneurismas ou tumores cerebrais. Veja alguns sinais que servem como alerta:
- Quando não costumava ter dor e começa a ter de forma aguda e intensa.
- Mudança nas características das dores habituais (intensidade, frequência e localização).
- Se houver sintomas associados diferentes dos habituais, como dificuldade de visão, perda de peso, febre, sonolência, amortecimento.
- Uso excessivo de medicamentos analgésicos.
- Dor não melhora com o uso dos analgésicos.
- Dor que acorda a pessoa no meio da noite.
- Piora progressiva da dor.
- Dores frequentes (mais de um dia por semana).
- Cefaleias desencadeadas por esforços físicos.
- História recente de traumatismos, câncer ou HIV.
Fontes: Élcio Piovesan, Luiz Paulo de Queiroz; Pedro Kowacs e Renato Puppi Munhoz.
Noventa e nove por cento da população mundial já teve dor de cabeça e 90% teve ao menos uma crise no último ano, segundo dados da Organização Mundial da Saúde. O motivo da alta prevalência é anatomicamente compreensível: a cabeça é uma região ricamente enervada e extremamente sensível e, por isso, dói tanto. Dói quando se exagera na cervejinha de fim de semana; quando se está muito tempo em jejum; depois de um dia daqueles ou quando o time perde em final de campeonato. Dói até mesmo sem motivo aparente. Não é normal, mas é comum. O problema é quando as dores deixam de ser esporádicas e passam a fazer parte do dia-a-dia das pessoas. E, acredite, isso é mais frequente do que se pensa.
De acordo com o presidente da Sociedade Brasileira de Cefaleias, o neurologista Carlos Alberto Bordini, 3% dos brasileiros, ou seja, mais de 5,5 milhões de pessoas, têm dor de cabeça todos os dias. Para se ter ideia do que isso representa, seria como se mais da metade da população do Paraná tivesse dor dia após dia. Se considerados os casos de cefaleia crônica diária doença que, apesar do termo "diária", engloba pacientes que tenham dor pelo menos 15 dias no mês sobe para quase 7% em todo o país, segundo estudos epidemiológicos.
Os dados, por si só, já assustam. No entanto, o espanto é ainda maior quando se descobre que boa parte dos casos crônicos são causados pelo abuso de medicamentos analgésicos e que poderiam ser evitados. "O uso excessivo de analgésicos muda a característica da dor e faz com que crises ocasionais se transformem em crônicas", afirma o neurologista Pedro Kowacs, coordenador do Setor de Cefaleias do Serviço de Neurologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná e chefe do Serviço de Neurologia do Instituto de Neurologia de Curitiba. "É como se o cérebro ficasse preguiçoso, pois pode ganhar mais analgésicos para combater a dor", explica, de forma simplificada, Luiz Paulo de Queiroz, neurologista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista com várias publicações sobre o assunto.
O uso de analgésicos em mais de dois dias na semana já seria capaz de causar a cronificação, segundo os especialistas. Para eles, que afirmam que um dos fatores que contribuem para esse abuso é o fácil acesso que a população tem aos medicamentos, aliado a uma cultura de automedicação. "Os remédios de uso liberado (que não precisam ser prescritos pelo médico) são veiculados na mídia a toda hora e as pessoas têm acesso livre", diz o médico neurologista Elder Machado Sarmento, coordenador do departamento científico da Academia Brasileira de Neurologia.
Hora de procurar ajuda
É claro que, quando alertam sobre a automedicação, os especialistas não querem dizer que uma dor ou outra justificaria visitas frequentes ao neurologista, onerosos e complexos exames ou a perda de noites de sono. Como saber, então, quando é hora de procurar um médico para investigar e tratar corretamente a dor? A partir do momento em que ela coloca em risco a qualidade de vida, afirmam os médicos. "Hoje a pessoa não precisa mais se acostumar a viver com dor, há inúmeras alternativas de tratamento", explica Sarmento.
O neurologista garante que o primeiro passo para o sucesso é o diagnóstico preciso. "Temos dois grandes grupos de dor de cabeça, as primárias, em que a dor é a própria doença, e as secundárias, em que ela é um sintoma de um outro mal", afirma. No caso destas, o tratamento deve ser focado na doença que a causa (veja box na página 11). Já no caso das primárias, que são mais comuns, a própria dor é o alvo do tratamento, que pode variar segundo a sua origem.
"Os tipos mais comuns são a cefaleia do tipo tensional e a enxaqueca. Embora já sejam classificados cerca de 200 tipos de cefaleias, esses dois são responsáveis por mais de 95% das dores", afirma o professor Queiroz, da UFSC. Entre os leigos é comum que se confundam os dois tipos, mas eles têm causas e características diferentes. A cefaleia do tipo tensional é causada, basicamente, pela contração dos músculos da cabeça ou do pescoço. A dor é localizada ao redor de toda a cabeça (a sensação descrita pelos pacientes é a de uma faixa apertando o crânio) e a intensidade é de leve à moderada. Dependendo da causa, pode durar de 30 minutos a sete dias e não é acompanhada de outros sintomas.
Já a enxaqueca tem causa genética e geralmente não sempre corresponde a uma dor pulsante e localizada em apenas um lado da cabeça, que vem acompanhada de sintomas, como náuseas e aversão à luz, barulhos e odores fortes. Apesar de não ser a mais prevalente, mas a segunda em número de casos, tem grande relevância pelo fato de ser uma dor de intensidade que vai de moderada a severa (que pode persistir de 4 a 72 horas), o que a torna altamente limitante.
"Já deixei de fazer muitas coisas por causa da enxaqueca. Durante as crises, desmarco meus pacientes para ficar em casa, na cama, já que é impossível trabalhar. Cheguei até a desmaiar de tanta dor", afirma a fisioterapeuta Vanessa Ferreira, que tem 30 anos e sofre de enxaqueca desde os 13.
Avanços no tratamento
Se por um lado a enxaqueca ainda envolve muitos mistérios sabe-se que ela está ligada a fatores genéticos, mas a medicina ainda não conseguiu desvendar todos os fatores ligados a ela , por outro já se sabe que é possível tratá-la de forma satisfatória. "É inadmissível que algumas pessoas ainda aceitem a dor diária, como se ela fosse normal nas suas vidas. Entre os portadores de cefaleias crônicas, apenas 1,5% não respondem a tratamentos", garante o neurologista Élcio Piovesan, referência nacional em cefaleia.
Entre os tratamentos mais eficazes para os casos de enxaqueca crônica está a medicação preventiva (chamada tecnicamente de profilática), em que drogas desenvolvidas para outras doenças são administradas diariamente com o objetivo de evitar as crises. "A grande novidade é a politerapia racional, em que são combinadas drogas em doses menores, criando uma sinergia de ação com menos efeitos colaterais", aponta o doutor em neurologia Abouch Krymchantowski, diretor do Centro de Avaliação da Dor de Cabeça do Rio de Janeiro e autor de nove livros sobre o tema.
Entre elas, estão substâncias usadas para o controle da epilepsia, da depressão e até mesmo da pressão arterial, e não drogas desenvolvidas para a dor de cabeça propriamente dita. E é aí que reside outro tabu. "Existe um preconceito em tomar essas medicações, já que suas indicações iniciais eram outras", afirma o neurologista Luiz Paulo de Queiroz.
A convicção da fisioterapeuta Viviane confirma esse medo: por mais que sofra com as dores, reluta em buscar um especialista. "Nunca fui porque eles tratam com um tipo de medicamento que eu não quero tomar", afirma ela, que toma pelo menos três analgésicos a cada dia de crise, que costuma durar três dias.
Para Kowacs, a automedicação com analgésicos vai além do risco de resultar em cefaleia crônica diária. Implica também na possibilidade de causar dependência. "Já cheguei a internar pacientes durante uma semana para tratar da dependência", conta.
Segundo Queiroz, cabe ao médico desmistificar a ideia de que a medicação profilática é "forte" em relação aos analgésicos. "Quando o médico explica o porquê, inclusive ensinando noções básicas da fisiopatologia da enxaqueca, os pacientes aceitam. Por exemplo: os anticonvulsivantes agem na irritabilidade cerebral, que ocorre tanto nos enxaquecosos quanto nos epilépticos. O problema é quando os médicos simplesmente receitam". É necessário compreender, de acordo com ele, que os analgésicos também têm efeitos colaterais. "Tudo é uma questão de custo-benefício. Os benefícios dos medicamentos profiláticos seguramente suplantam os possíveis efeitos colaterais, principalmente nos pacientes que têm cefaleias crônicas diárias e que abusam de analgésicos diariamente", defende.
Além dos medicamentos
Os tratamentos, contudo, ultrapassam as medidas farmacológicas. Atualmente utilizam-se técnicas que vão da toxina botulínica o botox à acupuntura.
A professora de balé Sabrina Santiago Sarraff, 30 anos, conta que nem lembra a primeira vez que teve uma crise de enxaqueca. "Tenho dor desde sempre. Nos últimos anos eram mais frequentes, tinha quase todos os dias. Depois que comecei a fazer acupuntura passei a ter menos crises. Hoje tenho uma por mês e a intensidade da dor diminuiu", afirma.
Aceita como especialidade médica no Brasil desde 1995, a acupuntura vem ganhando cada vez mais adeptos no tratamento contra as dores de cabeça. "Muitos neurologistas encaminham seus pacientes para o tratamento com acupuntura, principalmente em casos de enxaqueca e de cefaleia tensional, e temos obtido bons resultados", garante Nelson Miyake, médico acupunturista. Segundo ele, a frequência e a duração do tratamento variam de acordo com o paciente, assim como os resultados. "A acupuntura é indicada para casos de pessoas que não querem ou não podem seguir o tratamento convencional. Mas, assim como nos demais tratamentos, pode servir para uns e para outros não."
Na tentativa de aliviar as dores, há também quem apele para outros recursos, como o ioga. Embora não seja consenso entre os médicos entrevistados, a prática é vista por alguns deles como alternativa. "Nos casos em que a dor está ligada à tensão muscular, o ioga atua por meio da distensão e das posições relaxantes. Além disso, leva o praticante à autoconsciência, importante para que ele saiba o que está causando a dor de cabeça", garante a instrutora Daniela Reis, proprietária do Gaya Yoga Spa.
A gerente comercial Luciana Dias Ribeiro, 34 anos, conta que suas crises diminuiram depois que começou a praticar o ioga, há três anos. "Antes tinha três por mês e elas foram diminuindo com o passar do tempo. Neste ano não tive nenhuma", comemora.