Reconhecimento facial presencial ou por foto é autorizado pelo Código de Processo Penal| Foto: Fábio Dias
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O mau uso dos álbuns de suspeitos está dando argumentos para os críticos da polícia e pode enfraquecer uma das principais ferramentas usadas em investigações para identificar criminosos. Esses álbuns são coleções de fotos de criminosos conhecidos pela polícia por atuar em determinadas áreas ou cometer tipos específicos de crimes. Elas são apresentadas para vítimas para reconhecimento de suspeitos após a ocorrência de um crime.

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Em 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu 4.942 recursos que alegavam erros no reconhecimento de autores de crimes ocorridos pelo país. Em 377 desses casos a Justiça reconheceu erros e absolveu os réus ou determinou a revogação de prisões provisórias. Em 75% desses processos (281) houve erros de identificação de fotografias, segundo levantamento divulgado plo STJ em maio deste ano.

O total de erros de identificação de fotos representa menos de 6% dos recursos apresentados ao órgão no ano. Mas a divulgação de casos específicos choca a sociedade por evidenciar a incompetência ou má fé de determinados policiais e promotores, colocando em xeque a própria utilização dos álbuns de suspeitos.

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Um desses casos em que o STJ reconheceu um erro grosseiro foi o de Carlos Edmilson da Silva, um homem que ficou preso injustamente por 12 anos. A história dele foi contada recentemente pelo programa Fantástico, da Rede Globo.

A foto dele entrou em um álbum de suspeitos da polícia por furto em 2006 no estado de São Paulo, mas ele acabou sendo "reconhecido" de forma errada por quatro vítimas em um crime muito mais grave: estupro. Mesmo provando sua inocência por exames de DNA ele continuou sendo "reconhecido" e preso sucessivas vezes, até o STJ determinar recentemente a exclusão de sua foto do sistema da polícia.

Outra injustiça reconhecida pelo STJ ocorreu contra Paulo Alberto da Silva Costa, no Rio de Janeiro. Ele foi alvo de 62 ações penais e cumpriu três anos de prisão, embora não tenha cometido nenhum dos crimes pelos quais foi acusado.

Em maio 2023, o STJ determinou sua soltura, dizendo se tratar de um “erro judiciário gravíssimo” e de uma “ilegalidade gritante”. Em seus recursos, a defesa afirmou que todas as ações contra Costa foram feitas a partir do reconhecimento de imagens que constavam do álbum de suspeitos, pois fotos suas retiradas das redes sociais foram colocadas em um mural de suspeitos da delegacia de Belford Roxo, no Rio de Janeiro.

Erros como esses acontecem em geral pela ação de policiais mal intencionados ou indolentes. Em linhas gerais, o procedimento correto de reconhecimento é apresentar para a vítima diversas fotos de pessoas parecidas de acordo com a descrição que ela própria forneceu inicialmente, como cor de pele, tipo de cabelo, altura e compleição física. Quando um suspeito é identificado, ele é levado à delegacia e apresentado à vitima ao lado de diversas outras pessoas parecidas. A vítima tem então que identificá-lo sem olhar a foto original, para evitar erros.

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Mas na prática policiais indiciam suspeitos logo depois de apesentar a primeira foto à vítima. Ou apresentam o suspeito à vítima ao lado de pessoas com cor de pele, altura e compleição física diferentes, fazendo com que o reconhecimento seja quase inevitável.

Isso dá margem à atuação de ativistas, think tanks e organizações de defesa de direitos humanos, que têm classificado os álbuns como geradores e reprodutores de injustiças e pedem a proibição de seu uso. Especialistas em Segurança Pública ouvidos pela Gazeta do Povo, por outro lado, afirmam que os álbuns são uma ferramenta importante para o reconhecimento de criminosos e para a manutenção da segurança da população.

O responsável pelo CEPEDES (Centro de Pesquisa em Direito e Segurança), Fabrício Rebelo, afirma que o tema foi “sequestrado” pela narrativa de suposta defesa dos direitos humanos e que, desse modo, coloca a proteção de criminosos acima da salvaguarda da sociedade, que deveria ser priorizada.

“Não há como justificar que a sociedade brasileira seja privada da identificação daqueles que são possíveis autores de crimes, principalmente por se tratar de um mecanismo de investigação, não de condenação antecipada”, afirma ele. O jurista ainda argumenta que não existem sistemas perfeitos e que, por essa razão, as falhas que ocorrem nos processos de identificação devem ser reparadas pela Justiça.

Fabrício Rebelo afirma que apelar à Justiça é a melhor forma de corrigir erros como esses. “Até hoje, a forma mais eficaz de se evitar os erros, nos casos em que a possibilidade de sua recorrência é grande, é o socorro à própria Justiça. E, independentemente do caso, é sempre possível ao prejudicado pleitear uma indenização do Estado por eventuais danos morais e materiais pelo erro a que foi submetido, pois esse risco deve ser suportado pelo próprio ente estatal, não pelo indivíduo”, disse.

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Reconhecimento de suspeitos está previsto no Código Penal brasileiro

De acordo com o especialista em Segurança Pública Leonardo Sant’Anna os álbuns de reconhecimento de suspeitos são antigos e, na verdade, não elencam somente suspeitos, mas, principalmente, pessoas que já cometeram algum tipo de delito, aquelas que estão sendo procuradas ou que fugiram e, portanto, precisam ser recuperadas.

Nesse sentido, os álbuns são utilizados para fazer o reconhecimento facial tanto de procurados e foragidos do sistema, quanto de possíveis suspeitos de cometerem determinados crimes. É um método de reconhecimento utilizado há décadas de forma bem-sucedida em diversos países. Inclusive, a legislação brasileira reconhece a validade da identificação facial ou por foto, que pode ser um dos indícios de que determinada pessoa é o autor de um crime.

O reconhecimento está previsto no Código de Processo Penal brasileiro que, em seu artigo 226, elenca os parâmetros para o procedimento. Além das exigências de que a vítima faça a descrição prévia do agressor e que a identificação do suspeito deve ser feita com a presença de outras pessoas com semelhanças físicas, também está previsto que, em caso de risco de intimidação, a vítima pode ficar fora do alcance de visão dos suspeitos, e que é preciso haver a descrição do processo de reconhecimento pela vítima e por duas testemunhas.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) considera obrigatório que esses parâmetros do artigo 226 do Código Penal sejam seguidos para realizar os reconhecimentos, inclusive, aqueles feitos por fotografia. A Corte avalia que o cumprimento desses requisitos é uma garantia mínima para os suspeitos, para as vítimas e para quem atua na investigação, já que garante a lisura do processo.

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Réus não podem ser condenados somente com base no reconhecimento

A jurisprudência do Tribunal afirma que o reconhecimento, por si só, não pode garantir a autoria de um crime e que, portanto, não pode ser a base para a condenação de uma pessoa. Rebelo avalia que a decisão do STJ evita que erros no reconhecimento se transformem em erros judiciais. Ou seja, o reconhecimento e a condenação fazem parte de processos distintos, de investigação do crime e de julgamento do réu, respectivamente.

Assim, além da identificação, é preciso que sejam acumuladas outras provas.  Isso ocorre porque nem sempre a vítima tem clareza suficiente do rosto de seu agressor, já que o trauma e o estado emocional resultantes do crime podem levar a imprecisões na hora da identificação.

Leonardo Sant’Anna avalia que há mais um fator que dificulta esse processo: a miscigenação populacional. O especialista explica que a tecnologia fotográfica avançou muito, mas que a população brasileira, por ser altamente miscigenada, com uma ampla diversidade de traços e tons de pele, dificulta o processo de identificação. Assim, o processo de identificação no Brasil torna-se mais complexo do que, por exemplo, em países com populações menos miscigenadas. 

Coleta, permanência e retirada de imagens dos álbuns não têm regulação específica no Brasil

Um ponto que ainda precisa de maior atenção da sociedade é o da coleta e manutenção das imagens que compõem os álbuns de reconhecimento. A forma como chegam até as delegacias, como são armazenadas e como são descartadas, caso se prove que aquela pessoa é inocente. Tudo isso carece de uma normatização mais específica.

Na prática, os ditos “álbuns de suspeitos” são formados pelas Secretarias de Segurança Pública, a partir de informes das delegacias de Polícia Civil, que estão próximas às ocorrências e suas respectivas investigações. As imagens podem vir de fotos tiradas nas próprias delegacias e até de buscas na internet e nas redes sociais de suspeitos.

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Em alguns casos, essas informações podem ser compartilhadas com diferentes delegacias, mas não é uma regra. Além disso, não há, na Justiça brasileira, um setor ou banco de dados específico para reconhecimento. Tanto que, não raro, criminosos migram de estado e não são identificados em suas novas paragens, já que não há um álbum nacional para a identificação de suspeitos. Mas há troca não sistematizada de imagens entre polícias de estados diferentes.

Quando a fotografia de uma pessoa está em mais de um álbum de reconhecimento, caso seja inocentada e retirada de um deles, nada impede que ela possa seguir sendo investigada em outras regiões onde ainda faça parte dessa base de dados.   

Inteligência artificial pode aprimorar sistematização dos álbuns

Em teoria, a questão dos álbuns de suspeitos poderia ser solucionada por meio da tecnologia. Leonardo Sant’Anna explica que a inteligência artificial já traz avanços no campo do reconhecimento. Atualmente, a tecnologia possibilita trabalhar em fotografias antigas e prever como ficará a fisionomia de um fugitivo ou criminoso 15 ou 20 anos mais velho.

Programas de inteligência artificial já podem simular diferentes cores e cortes de cabelo, o uso de acessórios, como bonés, o aumento ou diminuição no peso das pessoas, ou seja, há uma infinidade de aplicações que podem tornar o reconhecimento muito mais efetivo. Mas não está claro se a Justiça validaria uma investigação baseada em inteligência artificial.

Além disso, o armazenamento em nuvem é uma realidade, já que poucos são os dados mantidos em servidores ou computadores próprios das delegacias e Secretarias de Segurança Pública, por exemplo. Dessa forma, é possível fazer álbuns compartilhados, passíveis de serem atualizados conjuntamente, de forma instantânea.

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Essas são medidas já disponíveis, que facilitam o reconhecimento de criminosos de alta periculosidade e trazem mais segurança para a população e credibilidade para as instituições, segundo o analista. Sant’Anna explica que a agilidade em identificar esses criminosos e prendê-los ou recapturá-los afeta diretamente a confiança da população. No entanto, o especialista lembra que a implementação de uma gestão mais eficiente depende da vontade dos agentes públicos no sentido de realmente prender criminosos e de priorizar a segurança das pessoas.