Em uma praia deserta no norte da Califórnia, um leão-marinho pode dar a impressão de ser um pedaço de madeira à deriva. É esse o tipo de ilusão que aguarda o visitante da Costa Perdida (Lost Coast). Coisas selvagens podem parecer inofensivas e coisas inofensivas, como a estrada pavimentada que minha família e eu pegamos para chegar até aqui, selvagens.
Em junho, visitamos a Costa Perdida, grande parte dela sem estradas, entre a minúscula cidade de Rockport e a vitoriana Ferndale, a cerca de 160 quilômetros de distância por estradas que adentram o continente. Aqui, no Condado de Humboldt, a Califórnia alcança seu ponto mais ocidental, próximo do ponto de interseção de três placas tectônicas em atividade sísmica.
A cadeia montanhosa King Range mergulha no mar, o que dissuadiu as construtoras de continuar a Highway 1 ao longo do oceano. As ondas se quebram e se espalham ao longo das praias cujo acesso só é possível por meio de trilhas que, para serem percorridas, exigem a consulta de uma tabela de marés.
O local é frio e nebuloso, mesmo no verão, e difícil o suficiente para atrair apenas os viajantes mais intrépidos. "Ninguém vem até aqui acidentalmente", disse Verna Kaai, que administra o Tides Inn em Shelter Cove, hotel com vista para o oceano e porta de entrada para a Costa Perdida.
Kaai me garantiu que não haveria sinal de celular, embora o hotel disponha de um serviço de Wi-Fi lento. Nesta época em que as telas estão no centro de tudo, ainda restam nos Estados Unidos alguns poucos lugares cenográficos e desconectados, como o Monumento Nacional Organ Pipe Cactus, no sul do Arizona, e parte das Montanhas Adirondack, em Nova York.
Antigamente, a área era povoada por americanos nativos de Sinkyone e pela população Mattole. Em seguida, chegaram à região lenhadores e produtores de Notholithocarpus densiflorus, árvore usada para tingir couro. A corrida do ouro, na metade do século XIX, trouxe mais assentados e, em 1906, o desmatamento se intensificou devido à corrida para reconstruir San Francisco depois que um terremoto assolou a cidade, em 1906.
Trilhas Norte: quase 40 km para chegar e um "presente" ao fim
O mar agitado costumava destruir píeres, o que frustrou grande parte das tentativas de estabelecer a pesca comercial ali nos séculos XIX e XX. Em 1970, depois que a indústria madeireira esgotou a maior parte da área e o êxodo populacional atraiu produtores de maconha, a Área de Conservação Nacional King Range, com 28 mil hectares, que protege 56 quilômetros de costa e montanhas que atingem 1.246 metros, transformou-se na primeira Área de Conservação Nacional dos Estados Unidos.
Hoje em dia, os visitantes vêm à Costa Perdida para fazer trilhas, pescar, passear pela praia, observar pássaros e o oceano em busca das baleias migratórias na área de preservação marinha. Outros vêm para explorar a famosa Trilha Norte da Costa Perdida, um percurso de quase 40 quilômetros de praia que geralmente leva três dias para ser concluído, exige uma autorização para percorrê-lo (gratuita, com uma taxa de US$ 6 para a reserva) e está sujeito a marés que, periodicamente, deixam alguns trechos intransitáveis.
Assim como acontece na caminhada, o acesso à Costa Perdida por carro demanda certo grau de coragem. Meu marido, Dave, teve muito trabalho para manter o limite de 55 km/h para chegar ao topo de montanhas e passar através das densas florestas de abetos, desacelerando nos longos trechos sinuosos para evitar o superaquecimento dos freios.
Após passarmos pela placa que indicava o limite de município de Shelter Cove, população 809 pessoas, finalmente soltei a manivela da porta do Jeep quando vi o panorama do oceano com ilhas de pedra e praias delineadas por montanhas.
Na porção sul da Trilha Norte da Costa Perdida, Shelter Cove está espalhada por uma grande península quase sem árvores que protege a enseada (em inglês, "cove") voltada para o sul. Uma loja localizada na estrada que dá acesso ao local vende de mantimentos a ferramentas. Casas modestas pontilham a costa e deixam espaço suficiente para locais com nomes como Seal Rock e Abalone Point, além da vista para o mar de pontos privilegiados, incluindo um local para acampamento e um campo de golfe com nove buracos, pouco usado.
O luxo está nos detalhes
Entre a passarela e o mar, a localização do Tides Inn, que só possui oito quartos, superou nossas expectativas. Nossa suíte, uma quitinete equipada com frigobar, micro-ondas e uma mesa alta para as refeições, tinha uma decoração náutica. A vista, no entanto, fazia você se esquecer de qualquer coisa lá dentro. Estávamos no terceiro andar e, da varanda, era possível escutar os gritos dos leões-marinhos todas as manhãs e ver o pôr do sol todos os dias.
Embora ainda seja um destino para os amantes do isolamento, no ano passado Shelter Cove adicionou alguns itens essenciais que agradam os turistas, como um bar de cerveja artesanal e um restaurante venezuelano, o Mi Mochima.
Dado o clima, que geralmente atinge a máxima de 15 graus no verão, para nós Shelter Cove não era um lugar para nadar, embora tenhamos visto banhistas corajosos mergulhando nas partes rasas de Cove Beach em um sábado de manhã. À tarde, uma dezena de SUVs e caminhonetes estava estacionada na praia mais popular, um raro ponto seguro para nadar ao longo da Costa Perdida, conhecida pelas fortes correntezas e ondas que quebram na praia.
Se a Costa Perdida não é o destino típico dos apaixonados por praias, ela é perfeita para passar o tempo escalando rochas irregulares e investigando piscinas naturais. Entre as caminhadas pela área de conservação, nós nos aventuramos pelas extremidades acidentadas da península e pudemos observar caçadores de ostras assobiando, urubus-de-cabeça-vermelha com as asas abertas secando ao sol e focas dormindo, algumas ainda jovens, com a pele pálida característica.
Preservação
O Bureau of Land Management, agência do governo norte-americano que administra terras públicas, é responsável por fiscalizar a preservação da King Range. Entre 15 de maio e 15 de setembro, o órgão autoriza a entrada de 60 mochileiros por dia para passar a noite. Eles chegam pela Trilha Norte da Costa Perdida (no resto do ano, é permitida a entrada de 30 pessoas por dia, pois o clima menos favorável notoriamente altera as condições e, às vezes, faz desaparecer partes da trilha). Caminhantes que apenas vão para passar o dia não precisam de autorização.
Naquela noite, fizemos uma bela refeição no Mi Mochima, o novo e alegre estabelecimento venezuelano. Os proprietários, o casal Blu Graham e Maria Graham Diaz, se conheceram na Venezuela, onde ele era instrutor de mergulho.
Em 2011, ao retornar para a costa onde crescera, Graham abriu o vizinho Lost Coast Adventure Tours, que oferece excursões guiadas pela trilha. O restaurante de primeira linha com vista para o oceano, onde Diaz é a chef de cozinha, foi projetado para equilibrar os negócios sazonais do casal e oferece miniempanadas de peixe, camarão salteado com alho e uma carne de panela substancial conhecida como "pabellón criollo".
Chegar ao início da porção norte da trilha do Rio Mattole no dia seguinte foi a aventura mais extrema que experimentamos. Os proprietários do hotel recomendaram uma rota pavimentada fora da área de conservação em grande parte do trajeto, mas que ainda assim se mostrou uma tarefa de arrepiar os cabelos.
Com duração de uma hora e 40 minutos, percorremos estradas estreitas que, ocasionalmente, se comprimiam em uma pista única. Além disso, não era rara a sensação de estarmos em uma curva cega (a Lost Coast Adventure Tours também oferece um serviço de traslado para o início da trilha em vans que comportam 11 passageiros).
Uma série de estradas demarcadas sobe as encostas cobertas por pinheiros, onduladas sobre trechos montanhosos com prados cobertos por flores selvagens, e passam por túneis de árvores. Depois, as estradas descendem e, em seguida, começam a subida novamente.
Natureza espetacular
As poucas cidades indicadas no mapa passavam facilmente despercebidas. Entretanto, a loja de mantimentos e ferramentas em Honeydew, uma minúscula cidade onde algumas poucas estradas de apoio se cruzam, estava tomada por motociclistas cobertos de terra que faziam uma viagem em grupo. Passamos pela sonolenta Petrolia, local onde foi perfurado o primeiro poço de petróleo na Califórnia, e pegamos a relativamente plana Lighthouse Road, que segue o trecho final do Rio Mattole para chegar ao fim da Trilha da Costa Perdida.
Contrastando com as florestas de pinheiros ao redor da porção sul do início da pista em Shelter Cove, a entrada ao norte era delimitada por bosques gramados. Flores silvestres do deserto, incluindo a abrônia, amarela e em formato de globo, erigerons parecidos com margaridas, porém roxos, e tremoceiros violetas floresciam nas dunas.
Um veado pastava na encosta do morro enquanto leões-marinhos, que estavam sobre pedras no meio do mar, gritavam à medida que nos aproximávamos. Quase cinco quilômetros para dentro, uma colônia de elefantes-marinhos tirava uma soneca sob o farol Punta Gorda, uma construção branca, atarracada, remota e há muito tempo inativa, que hoje serve como uma base firme para a encosta gramada que surge sobre a costa.
De volta à realidade
Deixar a Costa Perdida pela porção mais ao norte deixa um dos melhores trajetos de aventura para o fim, quando, ao passar Petrolia, a Mattole Road de duas pistas se liga à costa novamente e segue por um trecho rudimentar. Arbustos de rabanete selvagem invadiram a estrada enquanto esta subia pelo continente e, 90 minutos depois, de maneira abrupta, nos deixaram em Ferndale, uma pequena cidade impecável da era vitoriana.
Lá, vimos um conjunto de ukulele que improvisava um som no estacionamento de um banco. Após recuperarmos o sinal do celular, era como se tivéssemos nos encontrado novamente na fronteira entre a cidade e a natureza selvagem perdida.
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