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Em 26 de março, por meio do decreto 10.292, o governo federal incluiu atividades religiosas em uma lista de serviços públicos essenciais durante a pandemia. O funcionamento foi permitido, porém, desde que observadas as determinações das autoridades sanitárias, como a proibição de aglomerações.
Estados e municípios, no entanto, frente à urgência de fornecer diretrizes à população e tendo em vista o risco de contágio de fiéis e por meio deles, expediram decretos que, em determinados casos, acabaram por ferir a liberdade eclesiástica amparada pela Constituição. É o que aponta a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure) em relatório recente.
O estudo analisa e questiona a constitucionalidade da redação de 46 decretos publicados ao longo das últimas semanas. Segundo a Anajure, ao menos 12 deles desrespeitaram regras mínimas e princípios constitucionais de liberdade religiosa.
Proibição indevida
A proibição indiscriminada de atividades religiosas que não promovem aglomeração é desproporcional, segundo o entendimento do advogado e presidente da Anajure, Uziel Santana. "Existem alguns abusos por parte dos decretos que propõem a suspensão do funcionamento da pessoa jurídica igreja. Proibindo, até mesmo, a parte administrativa, as obras sociais. É basicamente uma ordem para suspender o CNPJ das instituições, e isso é absolutamente inconstitucional”, afirma.
Uma vez que é possível que parte das atividades seja feitas por meio virtual, como cultos e aconselhamentos pastorais, e outras podem ser realizadas sem gerar aglomerações, como ações solidárias, arrecadação de alimentos e atividades administrativas, não deve haver intervenção do Estado, entendem os juristas.
De acordo com o relatório, os estados Ceará, Goiás, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Piauí, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, os municípios de Aracaju e Palmas, além do Distrito Federal, expediram decretos que ofendem a liberdade religiosa.
Santa Catarina e outros casos emblemáticos
Um caso em Forquilhinha, Santa Catarina, repercutiu nas redes sociais e gerou críticas às medidas de enfrentamento à Covid-19 em decreto expedido pelo governador Carlos Moisés (PSL). A Polícia Militar da cidade teria interrompido uma espécie de culto doméstico entre cinco pessoas da mesma família.
Mais tarde, o comandante-geral da PM reconheceu o erro e "pediu desculpas" em nome da polícia, mas não citou a possibilidade de ação por reparação de danos ou enquadramento por abuso de autoridade.
"Esse caso é emblemático, de uma violação esdrúxula não só da liberdade religiosa, mas das liberdades civis fundamentais. A casa é asilo inviolável do cidadão desde a Constituição de 1824. Estamos em 2020. Ninguém pode penetrar nela, a não ser com mandado judicial. Só em momentos de ditadura vivemos situação como aquela", aponta o presidente da associação.
Para Raíssa Martins, coordenadora do departamento jurídico da Anajure, uma vez que não havia aglomeração na residência, a atitude é desproporcional. "A redação do Decreto 515, de Santa Catarina, contribuiu para o ocorrido, uma vez que seu texto suspende eventos e reuniões, de caráter público ou privado, incluídas missas e cultos religiosos. A escrita genérica favoreceu ações desproporcionais e violadoras da liberdade religiosa. Por isso, é necessário que as autoridades públicas procurem proteger as liberdades civis fundamentais quando expedirem decretos que imponham qualquer espécie de restrição", afirma.
Em Goiás, além disso, o decreto expedido pelo governo fixou medidas de higiene já preconizadas pelas autoridades sanitárias e estabeleceu que cerimônias só podem ser realizadas, no máximo, duas vezes na semana. Sendo uma deles, obrigatoriamente, aos domingos.
"O decreto tem virtudes e excessos, sendo pertinente, por exemplo, o pedido da disponibilização de produtos para higienização pessoal, além da distância mínima entre os membros. No entanto, extrapola a razoabilidade e fere as disposições constitucionais referentes à liberdade religiosa e à laicidade estatal quando limita a realização dos cultos a determinados dias da semana", aponta o relatório.
Segundo Santana, a determinação é flagrantemente inconstitucional. "Não cabe ao poder público dizer o dia em que uma organização religiosa deve fazer sua celebração. Muitos protestantes se reúnem no sábado, por exemplo, e tem igrejas que domingo é o dia do Senhor, e ponto. Existem outras religiões que podem entender que a sexta é o dia. Vamos interferir nisso?", questiona. "A quantidade e dia de cultos, ora, isso depende da religião, não do Estado".
O decreto de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, cogita, inclusive, pena de cassação do alvará de licença e funcionamento em caso de realização de eventos com mais de 20 pessoas. "A punição de cassação de alvará é excessiva. Em caso de descumprimento da diretriz estabelecida, outras medidas de advertência mais graduais poderiam ser analisadas", aponta o presidente da Anajure.
Termos amplos, diferentes interpretações
No inciso VI ao artigo 5.º, a Constituição Federal dá amparo ao livre exercício de cultos e proteção dos locais dessas cerimônias e suas liturgias. E, regulando a laicidade, a CF ainda veda, no inciso XIX ao mesmo dispositivo, que o poder público interfira no funcionamento de associações, que é como muitas dessas instituições se configuram juridicamente.
“Há que se salientar que o direito à liberdade religiosa, inserto no texto constitucional, conforme se observa no inciso VI da Norma Superior, é direito fundamental, essencial ao ser humano, de forma que as disposições incompletas de alguns decretos geram o risco de violação dessa liberdade”, diz o relatório.
Os juristas também desaprovam decretos cujos termos são amplos e carecem de clareza. Isso acaba por dar margem a interpretações que culminem em proibições indevidas, afirmam eles.
É o caso do Distrito Federal. “Nesse decreto, apenas se suspende, genericamente, a realização de cultos, sem excepcionar tais casos que não geram aglomeração nem, portanto, risco de contágio. Desse modo, o Decreto padece de inconstitucionalidade, visto que dispõe de forma imprecisa sobre a liberdade religiosa e, assim, acaba por limitá-la indevidamente”, apontam.
Proposta de decreto
No dia 22 de abril, a Anajure apresentou a todos os governos de estados e municípios um modelo de decreto que trata especificamente da regulação das atividades em instituições religiosas.
O documento, como explica Raíssa Martins, aplica-se tanto para os estados que impuseram limitações indevidas quanto para os que não regularam de forma desproporcional. "O objetivo, além de evitar violações à liberdade religiosa, é nortear as autoridades que consideram adotar, a partir de agora, um retorno gradual aos cultos. Assim, contribuirá, simultaneamente, para as localidades que não impuseram restrições desproporcionais, visto que estas também precisarão adotar algumas medidas quando do retorno aos cultos".
"A ideia é auxiliar as igrejas no contexto de retorno gradual aos cultos, de modo que não se descuide das recomendações expedidas pelos órgãos da saúde. Simultaneamente, busca-se, também, ajudar o poder público no estabelecimento de medidas que sejam compatíveis com a liberdade religiosa", salienta.