Análise
Tempo de vivência pesa na recuperação
Para a pesquisadora Irene Rizzini, que há três décadas trabalha com a temática da infância e juventude vulnerável, esse primeiro levantamento é importante porque dimensiona o que outras pesquisas qualitativas já haviam apontado. Ela destaca que um dos dados mais importantes do censo é o tempo de vivência nas ruas. "A cronicidade é um fenômeno importante porque mostra que às vezes o caminho de volta para casa não existe", diz.
Rizzini argumenta que a saída de casa é gradual e que é preciso pensar em políticas para dois públicos distintos: há os que têm um vínculo maior com a rua e outros que ainda estão vivendo com as famílias, mas estão em situação de vulnerabilidade.
Para Irene, que é fundadora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância, a vivência de rua é um fenômeno ligado à pobreza e à violência, apesar de a última também ocorrer nas classes alta e média. "Há desconexões com espaços onde a criança é incluída para se desenvolver integralmente", diz. "Elas perdem a possibilidade de estarem incluídas como cidadãs. Precisamos partir para ações concretas", finaliza.
Censo divulgado ontem pelo governo federal mostra que o Brasil tem 23.973 crianças e adolescentes vivendo nas ruas de 75 cidades com mais de 300 mil habitantes. Essa é a primeira pesquisa que mostra a realidade dessa população. O Paraná tem a quarta maior população infantil de rua do país, com 1.172 meninos e meninas. Entre os adolescentes e crianças ouvidos, 63% disseram que vivem nessa situação por causa de brigas familiares e violência doméstica.O estudo comprova o que outras pesquisas de menor alcance já tinham demonstrado: a maior parte dessa população é do sexo masculino e está na faixa etária dos 12 aos 15 anos. Metade dos entrevistados revelou que vive nessa situação há mais de um ano, o que é considerado um dado preocupante por especialistas, já que, quanto maior o vínculo com a rua, maior a dificuldade de se reverter a trajetória de vida. O estado com o maior número de crianças vivendo nas ruas é o Rio de Janeiro, com 5.091; a seguir vem São Paulo (4.751) e Bahia (2.313).
Para o coordenador do movimento nacional Criança Não é de Rua, Adriano de Holanda Ribeiro, a pesquisa é importante, mas precisa ser aprofundada, pois somente 75 cidades foram analisadas em um universo de 5.565 municípios brasileiros. Ele avalia que só uma pesquisa não vai oferecer os rumos necessários para a criação de políticas públicas. "Daqui a um ano essa pesquisa estará defasada, já que todos os dias crianças deixam suas casas para ir às ruas", diz.
Sem política
Os especialistas criticam o fato de não haver uma política nacional voltada a crianças e adolescentes que vivem nas ruas. Diferentemente de crianças em situação de trabalho infantil e exploração sexual, os meninos e meninas que vivem nas ruas ficam apenas sob a responsabilidade de estados e municípios, que muitas vezes não conseguem oferecer ações de qualidade.
Yvone Bezerra de Mello, fundadora do projeto Uerê, que trabalha com crianças vulneráveis de favelas cariocas, atua na área há mais de 20 anos. Foi ela quem recebeu a primeira ligação de um dos meninos contando o que havia acontecido com os colegas na chacina da Candelária, que vitimou oito garotos e garotas no Rio de Janeiro em 1993. Para ela, o país começou a se movimentar nesse setor porque é pressionado internacionalmente. "Da Candelária para cá pouco mudou", afirma.
Para Fernando Gois, fundador da Chácara Meninos de 4 Pinheiros, em Mandirituba, na região metropolitana de Curitiba, o censo deve servir de alerta para os gestores estaduais, já que os dados colocam o Paraná à frente de estados da Região Nordeste. Apesar disso, ele argumenta que a pesquisa deveria ter sido construída de forma mais participativa para se adaptar à realidade das crianças, já que, por exemplo, elas têm um trânsito intenso dentro das cidades e não se sabe como isso foi contabilizado. "Faltam políticas públicas e com o crack estamos chegando ao caos", diz.
A Fundação de Ação Social (FAS), da prefeitura de Curitiba, e a Secretaria Especial de Direitos Humanos, que encomendou o censo, foram contatadas para comentar os dados, mas não deram retorno até o fechamento desta edição. A assessoria de imprensa da Secretária de Estado da Criança e da Juventude informou que os coordenadores estavam em reunião e não poderiam dar entrevista.
Francisco Martins dos Santos, 19 anos, viveu por quase dois anos a realidade das ruas. Em uma família com sete irmãos, ele teve de buscar alternativas para a própria sobrevivência ainda aos 10 anos. Começou como muitos outros garotos, pedindo dinheiro durante o dia e retornando para casa à noite, mas com o passar dos meses passou a dormir embaixo de marquises. Em 2003 foi convencido a conhecer a Chácara Meninos de 4 Pinheiros, que acolhe crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Hoje atua como educador social no local e faz planos para o vestibular.
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O que o poder público deve fazer para retirar essas crianças das ruas e impedir que outras sigam esse caminho?
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