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Fachada do edifício sede do  Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Fachada do edifício sede do Superior Tribunal de Justiça (STJ).| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), considerou prejudicado - que tinha perdido o seu objeto - mais um recurso no caso do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, condenado a pagar uma indenização a um casal de Morrinhos, no interior de Goiás. Ele impetrou um habeas corpus para impedir o aborto de um bebê que tinha uma síndrome grave. A decisão veio a público na última semana depois de transitar em julgado, mas a condenação é de 2016 e de outro tribunal - o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Ativistas pró-aborto chegaram a definir a atitude do padre como “tortura”, porque o bebê morreu logo depois de vir à luz. No entanto, um olhar mais meticuloso sobre o caso mostra que a narrativa de que o padre foi o vilão da história é enviesada.

Em live com a deputada federal pró-vida Chris Tonietto (PSL-RJ) nesta terça-feira (29), o padre explicou o processo. Em 2005, com cinco meses de gestação, a família de Morrinhos descobriu que a bebê tinha síndrome de body stalk, malformação que impossibilita a vida fora do útero, e conseguiu autorização da Justiça de primeiro grau para fazer o procedimento.

O padre, então, impetrou habeas corpus para impedir o aborto e ele foi concedido em outubro do mesmo ano, por um desembargador do Tribunal de Justiça de Goiás. Assim, o aborto não foi realizado, e a criança nasceu e morreu logo em seguida. De acordo com padre Lodi, a criança precisava ter assegurado o seu direito de vir ao mundo e ter um enterro digno.

A família, então, decidiu processar o padre em 2008, mas perdeu nas duas primeiras instâncias. Mas, em 2016, recebeu uma decisão favorável do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A decisão é juridicamente questionável por diversos motivos.

1) Uma decisão de 2012 não pode ser usada para condenar o sacerdote que tentou impedir o aborto

Em primeiro lugar, o acórdão do STJ é juridicamente questionável por utilizar a decisão do STF de 2012, sete anos depois do caso, que retirou a punição do aborto em casos de fetos com anencefalia. A concessão do habeas corpus saiu em outubro de 2005.

O jurista André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em filosofia do direito pela Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha), explica que há decisões no direito com efeito “ex nunc”, isto é, não retroativos, e outras com efeito “ex tunc”, isto é, que retroagem. No caso em questão, segundo Fernandes, o efeito retroativo não se justifica.

“O que tem que ficar claro é que o substrato, a motivação da ADPF 54 (que descriminalizou o aborto em casos de anencefalia) era imprevisível em 2005. Ninguém poderia prever que um dia se discutiria a legalização do aborto em caso de anencefalia. Esse efeito retroativo não tem base em qualquer regra de hermenêutica jurídica. Não tem mesmo”, afirma.

O problema, segundo ele, começa no fato de que a decisão faz uma analogia da anencefalia com a síndrome de body stalk e aplica essa analogia a algo que era imprevisível em 2005. “Seria diferente se a decisão da ADPF 54 fosse anterior ao habeas corpus. Aí a história seria outra”, afirma Fernandes. “No momento em que o padre impetrou o habeas corpus, isso era legítimo dentro das regras do habeas corpus.”

Para o jurista, a relatora do caso no STJ, a ministra Nancy Andrighi, fez “uma ginástica jurídica”.

2) Impetrar habeas corpus não pode ser crime

Outro ponto questionável é o padre ter sido punido pelo simples fato de ter impetrado um habeas corpus. Para Fernandes, a decisão do STJ fere o próprio instrumento jurídico do habeas corpus.

“O habeas corpus é tão importante que essa decisão do STJ feriu uma garantia que tem mais de 800 anos de existência. É uma espécie de tesouro em vaso de barro. A decisão do STJ basicamente quebrou o vaso fazendo pouca monta desse importante instituto, que existe no mundo inteiro”, diz o jurista.

A defesa da mãe da criança alega que a cliente sofreu danos morais pela pressão psicológica vivida durante o tempo em que não pôde fazer o procedimento do aborto. Nesse ponto, Fernandes considera que é difícil estabelecer a relação causal entre a impetração do habeas corpus pelo padre e os efeitos psicológicos sobre a mulher, e usar isso como argumento para justificar a indenização.

Outra questão pertinente é se a responsabilidade do pagamento da indenização não deveria ser atribuída ao Estado, que foi quem tomou a decisão judicial de impedir o aborto. Fernandes explica que isso seria muito difícil.

“É praticamente impossível exigir a indenização do Estado, salvo em duas exceções legais: pela Constituição, no caso de erro judiciário em condenação criminal e, pelo Código de Processo Civil, nas hipóteses em que o juiz atue com dolo ou fraude. Tirando essas hipóteses, o que prevalece é o que a gente chama no Direito de irresponsabilidade estatal ou irresponsabilidade judiciária.”

3) O valor da condenação é desproporcional

Para Fernandes, outro erro da decisão judicial foi o caráter arbitrário do valor da indenização – ao menos se o valor que a defesa da família alega, de R$ 398 mil, for verdadeiro. “É uma aberração judicial, não só na forma hermenêutica com que foi tratada toda a construção da motivação como no valor em si, de R$ 400 mil.”

Para efeito de comparação, decisões parecidas raramente envolvem valores acima de 200 salários mínimos. O valor, segundo o jurista, não é comum “nem em indenização por dano moral decorrente de perda de parente, de ente querido, por erro médico. Foi um ponto fora da curva.”

O valor designado pela ministra do STF, em 2016, foi de R$ 60 mil. Passados quatro anos, é preciso atualizá-lo com juros e correção monetária. Mesmo assim, não poderia passar dos R$ 60 mil para quase R$ 400, como afirma a defesa da família, se for considerada a inflação do período.

Fernandes também critica a falta de uma justificativa, no texto da decisão, para o valor estabelecido. “Ela não se deu nem ao trabalho de justificar essa exacerbação monetária”, diz.

Chris Tonietto acusa perseguição ao padre que tentou impedir aborto

Para Chris Tonietto, a condenação é uma perseguição ao padre, encabeçada por movimentos abortistas, o que configuraria um caso de cristofobia. O padre Lodi, como é conhecido no movimento pró-vida de Anapólis (GO), afirmou que tomou a atitude para resguardar os direitos da bebê – que já se sabia que não viveria por muito tempo – de nascer e ter um enterro digno, o que de fato foi feito.

O padre afirmou que não tem nenhum bem em seu nome nem conta em banco e, por ser um sacerdote, não tem como pagar a indenização a que foi sentenciado. Ele refutou a possibilidade de se fazer uma arrecadação para o pagamento dos danos morais à família. Segundo ele, isso seria financiamento à causa abortista.

De acordo com a deputada, que é formada em Direito, como o sacerdote não tem bens para serem penhorados para o pagamento da indenização, ela deverá prescrever em alguns anos. Chris Tonietto explicou que, como se trata de um processo cível e não criminal, não existe a possibilidade de o religioso ser preso pela falta de quitação dos danos morais.

Em entrevistas concedidas a diversos veículos, a defesa do casal afirma que o prazo para o pagamento de forma voluntária é de cinco anos e que, se isso não for feito, a Justiça pode determinar novos prazos. A condenação, porém, foi comemorada por militantes feministas e abortistas, que a enxergaram como um “freio” à causa pró-vida.

Já a parlamentar afirmou que o processo é uma perseguição ao sacerdote e à Igreja Católica, histórica defensora dos direitos dos nascituros.

Histórico: habeas corpus, processo e recursos

À época do habeas corpus, a mulher já estava internada e havia recebido medicação para a indução do procedimento, conforme consta nos autos do processo no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Com a decisão da Justiça de Goiás, a medicação foi suspensa. A mulher ficou em observação por dois dias no hospital e recebeu alta. Oito dias depois, ela entrou em trabalho de parto, voltou a hospital e a criança nasceu. Mas, devido à síndrome, faleceu depois de uma hora e quarenta minutos.

Três anos mais tarde, em 2008, o casal foi à Justiça para processar o padre por danos morais e cobrar indenização. Em entrevista recente ao G1, a advogada da mãe da criança abortada afirmou que a situação desencadeou um processo depressivo na sua cliente.

A ação não teve êxito na primeira e na segunda instâncias. Mas a defesa da família recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde a decisão foi diferente. Em 2016, o Recurso Especial foi julgado pela Terceira da Turma da Corte. A relatora do caso foi a ministra Nancy Andrighi. Ela votou em favor da condenação do padre, que, então, teria de pagar indenização de R$ 60 mil aos pais da criança, em razão do sofrimento causado pelos efeitos do pedido de habeas corpus. O posicionamento dela foi acompanhado por outros ministros do STJ: Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro.

A ministra equiparou o caso da bebê de Goiás às situações de fetos anencéfalos. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a ADPF 54 e, como resultado, criou mais uma escusa absolutória para ao aborto. Ou seja, o aborto é crime no Brasil - não existe na lei brasileira o chamado "aborto legal" -, mas não há punição para quem o pratica em três situações. Uma delas é anencefalia do feto; as demais são gravidez decorrente de estupro e risco de morte da mãe.

Em seu voto, Nancy Andrighi afirmou que "a interrupção da gestação da recorrente, no cenário apresentado, era lídimo, sendo opção do casal – notadamente da gestante – assumir ou descontinuar a gestação de feto sem viabilidade de vida extrauterina, há uma vinculada remissão à proteção constitucional aos valores da intimidade, da vida privada, da honra e da própria imagem dos recorrentes (art. 5º, X, da CF). Possível agressão a esses valores, desde que pautados no respeito à lei, impõe, para aquele que invade esse círculo íntimo e inviolável, responsabilidade objetiva pelos danos ocorridos".

O padre, que se formou em Direito, e outros dois advogados apresentaram em conjunto recursos ao STJ nos quatros anos seguintes. Mas a decisão não foi alterada.

De acordo com informações do sistema do Supremo Tribunal Federal (STF), um Recurso Extraordinário foi protocolado na Corte em março de 2020 pelos advogados da família. Mas, como já havia um recurso em favor deles no STJ, o ministro Dias Toffoli, do STF, considerou o Extraordinário como prejudicado, ou seja, que já tinha perdido o seu objeto. A decisão é de junho.

Quase 15 anos após o habeas corpus e 12 de tramitação do processo na Justiça, a sentença transitou em julgado em agosto de 2020. Ou seja, não cabe mais recurso da decisão e ficou mantida a condenação ao sacerdote do pagamento de indenização.

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