Um mês depois da tragédia que matou 239 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria (RS), pelo menos 47 casas noturnas e bares permanecem interditados no Paraná. O levantamento foi feito pelo Corpo de Bombeiros das principais cidades paranaenses. O incêndio na cidade gaúcha provocou uma reação em cadeia em todo país. No Paraná, dezenas de estabelecimentos foram alvo de fiscalizações mais rigorosas desde então.
Em diversos municípios, muitos dos locais fechados já foram reabertos. Em Foz do Iguaçu, por exemplo, 11 das 12 casas interditadas inicialmente já regularizaram a situação e funcionam normalmente. No Litoral, onde as cidades de Paranaguá e Matinhos somaram 15 locais fechados, todos agora estão regularizados.
Curitiba é a cidade com o maior número de estabelecimentos ainda fechados: 28. Os problemas mais comuns encontrados correspondem à saída de emergência e documentação. "Há falta de iluminação, saídas obstruídas e até portas com cadeado", aponta o major Marcos Mota, responsável pelo setor de vistorias do Corpo de Bombeiros.
Após a tragédia, as autoridades paranaenses endureceram as normas para garantir a segurança dos frequentadores de casas noturnas e bares. Uma das medidas é a obrigatoriedade de que todos os espaços tenham uma placa de identificação na entrada do espaço indicando a capacidade máxima permitida. "Até meados de maio, os locais terão de usar um revestimento acústico mais seguro e com certificação", afirma Mota, citando uma nova portaria dos bombeiros.
Lei federal
O Brasil ainda convive com a falta de uma lei federal que determine regras únicas de prevenção e proteção contra incêndio em espaços como boates e bares. As leis são estaduais ou municipais, o que faz com que em algumas localidades a legislação seja mais branda e em outras, mais rígida. Hoje as normas locais são norteadas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou pela Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). Segundo a ABNT, existem 64 recomendações de segurança contra incêndios, mas elas não possuem o peso de uma lei.
Para reverter essa situação, o Congresso criou uma comissão para formular uma lei nacional sobre segurança em casas noturnas e de espetáculos. "Uma lei federal dará condições mínimas de segurança e caberá aos estados aprofundarem a legislação de acordo com suas realidades", explica o professor de Engenharia Civil da Universidade Federal do Paraná, Daniel Costa dos Santos.
"Mas só a lei não basta. É preciso ter fiscalização para garantir que ela está sendo cumprida", completa o advogado Luiz Cogan, mestre em Direito das Relações Sociais.
"Ainda não estou normal", relata médico
Foram cinco dias dedicados a salvar vidas em Santa Maria. Período que ainda não sai da memória do médico paranaense Márcio Luiz Nogarolli. Membro do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), ele já havia trabalhado no atendimento às vítimas da queda de um prédio em Guaratuba, em 1995, mas nada se compara ao que viu na cidade gaúcha.
Ele e mais dois profissionais do Paraná chegaram a Santa Maria dois dias depois da tragédia na boate Kiss. Nogarolli conta que presenciar 16 jovens aparentemente saudáveis internados em leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) foi um dos momentos mais difíceis. Todos estavam com queimaduras internas e problemas sérios no aparelho respiratório. "Eram jovens entubados e com fralda geriátrica. Tenho 53 anos e 30 de profissão. Nunca presenciei uma cena assim."
Quase carvão
Durante a limpeza do aparelho respiratório dos internados, o médico conta que saía de dentro do corpo das vítimas um líquido preto que mais parecia carvão. "Após várias lavagens continuava saindo esse líquido escuro. Todos os sobreviventes terão, no futuro, problemas respiratórios variados", salienta.
Nogarolli relata que foram montadas UTIs dentro das próprias UTIs para salvar o máximo de vítimas do incêndio. "Eu não estou normal. É difícil esquecer. Bate uma sensação de incapacidade. Não importa o quanto de vida que a gente salvou, mas sim quantas a gente perdeu."
MP vai denunciar quatro acusados por homicídio qualificado
Agência Estado
O Ministério Público (MP) do Rio Grande do Sul deve denunciar por homicídio doloso qualificado os quatro investigados pelo incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), após a conclusão do inquérito da Polícia Civil, informa um dos promotores responsáveis pelo caso, Joel Dutra. De acordo com ele, a investigação policial já fornece elementos suficientes para enquadrar os investigados na denúncia de homicídio doloso (quando há a intenção de matar) qualificado (sem chance de defesa).
"Os elementos que já temos fornecem subsídios suficientes para enquadrar [os investigados] nesse crime. É necessário a materialidade [do crime] e indícios de autoria para ter o dolo. O processo policial já tem esses indícios de autoria. Eles [investigados] teriam agido assumindo esses riscos [de incêndio], apontando descaso dos acusados com o risco", explicou Dutra. "Além disso, morte por asfixia transforma o homicídio simples em qualificado", emendou.
Os quatro investigados Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffman, sócios da Kiss, o membro da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo dos Santos, e o produtor do grupo, Luciano Augusto Bonilha Leão estão presos provisoriamente. A tragédia, ocorrida no dia 27 de janeiro, deixou 239 mortos devido a um incêndio, iniciado por um artefato pirotécnico utilizado por membros da banda.
Dutra ressaltou que, com a denúncia de homicídio doloso qualificado, a pena dos réus pode aumentar. "O homicídio simples tem pena de 6 a 20 anos, já o qualificado, parte de 12 e vai até 30 anos, a pena máxima no Brasil", detalhou. Ele garantiu que a denúncia é consenso entre os promotores responsáveis pelo caso, apesar de o MP não ter afirmado publicamente a decisão.
Denúncia
A previsão é que o inquérito policial seja finalizado pela polícia no próximo domingo. Dutra explica que, após receber os documentos da investigação, o MP tem o prazo de cinco dias para apresentar a denúncia. "O inquérito é bastante grande, o prazo pode ser pouco tempo. O que temos é a intenção de que, chegando o inquérito, entregar a denúncia no menor prazo possível", concluiu.
Colaboraram Denise Paro, da sucursal de Foz; Bruna Komarchesqui, correspondente em Londrina; e Luiz Carlos da Cruz, correspondente em Cascavel.