O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na quinta-feira (28) que o crime de injúria preconceituosa – por exemplo, uma ofensa racista, xenofóbica, homofóbica ou antirreligiosa contra uma pessoa – é inafiançável e imprescritível.
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Antes, conforme o Código Penal, a injúria por preconceito contra raça, cor, etnia, religião ou país de origem deveria prescrever em um prazo de oito anos. Agora, a Corte consagrou o entendimento de que injúrias desses tipos são uma espécie de racismo – crime cuja pena, de acordo com a Constituição, jamais prescreve.
Além disso, como o STF equiparou o crime de homofobia ao de racismo em 2019, a injúria homofóbica também passa a ser um crime imprescritível. Isso porque ela faz parte, do ponto de vista judicial, da mesma classe penal das injúrias relacionadas a raça, cor, etnia, religião e procedência.
Para juristas consultados pela Gazeta do Povo, o entendimento do STF contém uma série de erros técnicos. Enumeramos alguns deles.
Imprescritibilidade não pode ser banalizada pelo STF
Só há dois crimes imprescritíveis no Brasil, segundo a Constituição de 1988: a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o preconceito contra coletividades definidas por critérios como raça, cor, etnia e religião. No primeiro caso, a Carta Magna quer evitar ataques à democracia. No segundo, o objetivo é impedir a segregação social e a criação de cidadãos de duas classes.
Nem mesmo o homicídio e o estupro são crimes imprescritíveis. O objetivo dessa cautela na aplicação da imprescritibilidade na legislação, conforme os juristas, é evitar que o Estado possa usar a lei para exercer controle sobre o indivíduo.
"A regra do sistema é a prescrição. O Estado tem um prazo para processar uma pessoa, para punir e para executar a pena. A regra é a prescritibilidade dos crimes, porque senão passaríamos ad aeternum esperando o Estado processar. Se a pessoa praticou crime com 18 anos, você vai punir a pessoa com 68? Você não está punindo a mesma pessoa. A imprescritibilidade é a exceção do sistema”, diz Andrew Fernandes Farias, especialista em Direito Penal.
Para ele, “nem sequer uma lei ordinária poderia aumentar a hipótese de crimes imprescritíveis, porque você estaria ampliando o poder do Estado contra o indivíduo. E muito menos uma decisão judicial”.
Não se podem fazer analogias jurídicas que prejudiquem o réu
Quando surge, em um julgamento, uma situação que não está claramente definida em lei, o juiz pode recorrer a uma analogia usando uma situação jurídica semelhante para interpretar o problema e tomar a sua decisão.
No entanto, conforme explica André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Antropologia Filosófica pela Universidade de Navarra, o juiz só pode fazer uma analogia para beneficiar o réu, e nunca para prejudicá-lo.
Quando o réu é prejudicado, diz-se que o juiz fez uma analogia “in malam partem”, algo que não se admite no Direito Penal brasileiro. A vedação desse tipo de analogia protege o réu do ativismo judicial, já que um juiz poderia se aproveitar de lacunas na legislação para ampliar penas.
No caso em questão, de acordo com juristas consultados pela Gazeta do Povo, o STF fez justamente isso: com uma analogia jurídica, aproveitou-se de uma suposta lacuna da lei para ampliar a possibilidade de punição de uma pessoa que proferiu uma injúria racial. Com isso, cometeu um erro técnico grave e incorreu em ativismo judicial.
A gravidade de um crime não justifica a criação de um sistema de vingança estatal
No caso que originou o julgamento do STF, uma idosa xingou uma frentista de “negrinha nojenta, ignorante e atrevida” e afirmou que “preto é bicho nojento”. Em seus votos, alguns ministros apontaram a gravidade dessas falas como justificativa para elevar a injúria racial à categoria do racismo no sistema penal.
A repugnância das falas é indiscutível, mas não pode ser usada como justificativa para a criação de uma distorção no sistema jurídico brasileiro, afirmam os juristas.
Antonio Jorge Pereira Júnior, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), diz que os ministros do STF não podem se apoiar na evidente gravidade do caso em questão para criar um sistema de vingança do Estado contra os indivíduos.
"Podem dar a entender ao público que não vai haver a punição da mulher, e não é isso. A ideia de que, se não for equiparado [o crime de injúria racial ao de racismo], haverá injustiça. Falso. É uma falsa dicotomia, um falso dilema, para encobrir o abuso. É um excesso de punibilidade que distorce o próprio sistema jurídico. Ao invés de favorecer a pacificação social, vai gerar um sistema de vingança”, diz ele.
Não se pode corrigir a ineficiência do Estado com ativismo judicial
Gonçalves Fernandes chama a atenção para uma lacuna nos votos dos ministros do STF: eles não discutiram as motivações da prescrição do crime que deu origem ao julgamento.
Edson Fachin, relator do caso, nem chegou a abordar o fato de o Estado ter sido ineficaz no processo. "Ele desloca o mote da questão. O que ele não deixa claro é que isso só se deu devido à inação e à ineficiência do Estado no ato de persecução penal. Isso ele não fala, e isso passa ao largo da discussão, quando isso deveria, também, ser trazido ao debate. Por que prescreveu? Prescreveu porque o Estado não fez nada, ou fez muito pouco”, diz o jurista. "Procurou-se 'corrigir' a inação estatal tornando a injúria racial imprescritível”, complementa.
Para o especialista, quando os ministros entendem que é preciso tornar esse crime imprescritível, estão admitindo, implicitamente, que o Estado foi inoperante e culpado. “E o Estado, no caso, tem nome e sobrenome: delegado e Ministério Público. Eles não foram capazes, antes dos prazos prescricionais, naquela circunstância específica, de levar adiante a queixa-crime e transformar aquilo em uma ação penal”, afirma.
O STF faz uma profissão de fé cega na eficiência do sistema penal brasileiro
Para Gonçalves Fernandes, os ministros do STF fizeram, durante o julgamento, “uma profissão de fé cega na eficiência do sistema penal brasileiro”. Nos votos, houve uma exaltação do sistema penal como solução para o problema do racismo. Essa crença no Direito Penal como caminho para criar uma sociedade virtuosa, explica ele, é uma ilusão propagada por uma visão de mundo iluminista e positivista.
“As virtudes cívicas são boas, mas elas precisam ser vivenciadas a partir da ética das virtudes. Eu só vou deixar de ser racista a partir do momento em que eu estiver pessoalmente convencido de que é uma questão de justiça – da virtude moral da justiça – respeitar alguém que é semelhante a mim. Enquanto a pessoa não tomar aquilo como uma virtude, vai ser muito mais uma carapaça de virtude, um condicionamento social, do que, propriamente, uma maneira de ser daquela pessoa. Não adianta ficar depositando toda a esperança no Direito, e muito menos no Direito Penal”, diz o jurista.
Ele acrescenta que os ministros carregam uma visão positivista de que o medo à sanção seria “uma solução para que as pessoas se comportem direitinho e deixem de ser racistas”. “Isso vai tocar algumas pessoas, mas outras vão dizer: ‘Eu não estou nem aí’.”
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