A defesa entrou com recurso no STF para impugnar a decisão que mantém o ex-assessor preso por 110 dias, sem denúncia| Foto:
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Depois de o ministro Alexandre de Moraes ignorar as provas apresentadas por Filipe Martins e decidir manter a prisão do ex-assessor por quase 110 dias, sem denúncia do Ministério Público que mostre indícios concretos de algum crime cometido, a defesa do ex-assessor entrou com recurso no Supremo Tribunal Federal (STF) para impugnar essa decisão.

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O documento, um agravo regimental, foi protocolado na última semana e aponta ao menos sete motivos que tornariam a prisão injusta e abusiva, com ilegalidades no processo e necessidade de soltura imediata de Martins.

De acordo com o doutor em Direito de Estado, Rodrigo Chemim, o formato escolhido pela defesa para apresentar suas ponderações está previsto no regimento interno do STF para encaminhamento direto ao magistrado responsável e possibilita que os fatos deixem de ser julgados somente por Moraes.

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“Isso porque, caso não reconsidere a decisão, o ministro terá que submeter o pedido ao julgamento do colegiado”, explica o professor de Processo Penal da Universidade Positivo (UP), adiantando que os argumentos apresentados pela defesa são “todos pertinentes”.

No agravo, são abordadas situações como a exigência de consentimento de Filipe Martins para produção de provas contra ele, a insistência em mantê-lo preso sem fundamentação jurídica concreta, e o período excessivo da prisão preventiva, mantida sem denúncia e com manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR) favorável à soltura.

Segundo a defesa, Moraes fere inúmeras jurisprudências do próprio STF e até poderia responder criminalmente, já que a Lei de Abuso de Autoridade estabelece no artigo 9º que “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais” é crime com pena de um ano a quatro anos de prisão, e multa.

Além disso, a legislação também prevê pena para autoridade judiciária que, dentro do prazo razoável, deixar de relaxar prisão ilegal, de substituir prisão preventiva por medida cautelar diversa — quando existir essa possibilidade — ou negar “conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível”, aponta o advogado Ricardo Scheiffer.

1. Filipe Martins está preso há 110 dias, sem denúncia

No caso de Filipe Martins, a defesa garante que a lei de Abuso de Autoridade foi violada, pois o ex-assessor segue preso há 110 dias, “sem que o juízo tenha demonstrado, até o momento, a necessidade da prisão e sem que tenha sido apresentada denúncia”.

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Em entrevista à Gazeta do Povo, o jurista Rodrigo Chemim confirma a inconstitucionalidade desse prazo, pois, segundo ele, os casos de competência da Justiça Federal precisam ter a denúncia formalizada em até 35 dias com “indícios concretos” para manter uma prisão.

“A Lei Federal 5.010/66, artigo 66, prevê que a Polícia Federal (PF) tem 15 dias, prorrogáveis por mais 15 dias para encerrar o inquérito mantendo legalmente o indiciado preso, e o Ministério Público tem mais cinco dias para oferecer a denúncia”, aponta, alertando que o excesso de prazo “caracteriza constrangimento ilegal e exige a soltura”.

Além disso, “ainda que a jurisprudência admita certa flexibilidade, mais de 100 dias de investigação não encerrada, mantendo alguém preso, foge de qualquer mínima legalidade”, completa o especialista.

O documento enviado pela defesa ao ministro Alexandre de Moraes também afirma que o próprio STF e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) “rechaçam prisões cautelares prolongadas e irrazoáveis, sem oferecimento de denúncia”, pois isso caracteriza “antecipação da pena”.

Em uma das jurisprudências citadas está o voto do ministro Celso de Mello, no HC 142.177, de junho de 2017, na qual o magistrado alerta que a “duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana”.

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A defesa cita ainda a decisão de soltura proferida pelo ministro Ribeiro Dantas, do STJ, no HC 822.283/RJ, de junho de 2023. O caso tratava de um investigado que aguardava preso por mais de dois meses sem oferecimento de denúncia. “Embora o crime atribuído ao paciente seja grave — roubo majorado pelo emprego de arma de fogo e pelo concurso de agentes — é injustificado o excesso na segregação cautelar do acusado, uma vez que aguarda há mais de dois meses sem oferecimento de denúncia”, pontuou o ministro, em junho de 2023.

2 - Alexandre de Moraes mantém a prisão diante de uma “situação de dúvida”

A defesa aponta ainda que Alexandre de Moraes admitiu, em decisão do dia 28 de março, que a justificativa para prender Filipe Martins é duvidosa.

“Há necessidade de complementação das informações remetidas aos autos, pois permanece a situação de dúvida sobre o real itinerário do investigado”, afirmou Moraes em trecho sobre a suposta fuga do ex-assessor para Orlando, nos Estados Unidos, sem passar pelo controle de fronteira brasileiro e nem pelo norte-americano.

Portanto, Martins “está preso por mais de três meses em ‘situação de dúvida’, pois nem este juízo, nem a autoridade policial conseguem confirmar o suposto ‘itinerário’ ilusoriamente utilizado como motivo para prendê-lo”, aponta a defesa.

Ao tratar sobre o caso em suas redes sociais, o ex-deputado federal Deltan Dallagnol, ex-procurador da República responsável pela Operação Lava Jato, esclarece que a prisão provisória — descrita no Artigo 312 do Código Penal —, é usada quando há “prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.

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Ou seja, é preciso “risco evidente de que a pessoa pratique novamente determinado crime, coloque em risco todo o sistema financeiro, esteja ameaçando testemunhas ou tenha risco real de fuga”, explica, citando que os mesmos requisitos são exigidos para que o MP formalize denúncia contra alguém, o que Filipe Martins não tem até hoje.

“E se você não tem prova da existência do crime para acusar a pessoa, você também não tem para prender”, compara o ex-procurador, comentando que, durante a Operação Lava Jato, quem não tinha acusação formalizada nos primeiros 35 dias de prisão cautelar era solto. “A gente só prendia quando estavam presentes os requisitos.”

Para a defesa, isso “viola aberta e flagrantemente o princípio do in dubio pro reo”, expressão que significa literalmente “na dúvida, a favor do réu”.

3 – As provas apresentadas pela defesa são ignoradas

Outro problema apontado no agravo encaminhado a Moraes é o fato de as provas juntadas pela defesa serem ignoradas pelo magistrado.

Isso porque, no processo contra Martins, o argumento utilizado para fundamentar a prisão é de que o nome do ex-assessor aparece em uma lista de passageiros editável encontrada no computador do tenente-coronel Mauro Cid, mas não há registros dessa viagem nos controles de imigração do Brasil e dos Estados Unidos.

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A partir dessa informação, a PF indicou que Martins poderia ter viajado a bordo do avião presidencial com Bolsonaro dia 30 de dezembro de 2022 rumo a Orlando, sem registros formais “para se furtar de eventuais responsabilizações penais”.

No entanto, a defesa apresentou provas de que Filipe Martins não saiu do país, como passagens do voo que realizou no dia seguinte para Curitiba, ofício da companhia aérea Latam, fotos tiradas no estado do Paraná e os registros de Ifood e Uber utilizados no período.

“[Ele] simplesmente, não saiu do Brasil. Tal obviedade, porém, sempre que é provada, uma vez e outra vez nesses autos, é objeto de novas diligências”, apontam os advogados no agravo regimental apresentado, citando que até mesmo a lista oficial de passageiros do voo presidencial, obtida por meio da Lei de Acesso à Informação, foi ignorada.

“E não há motivos para acreditar que o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República do Governo Lula tenha qualquer intenção de ocultar o agravante [Filipe Martins]”, pontua a defesa, argumentando que “a simples comparação entre as provas que o acusado tem trazido de que não viajou e as provas que a acusação é incapaz de produzir para demonstrar que ele viajou deveria, em qualquer processo normal, motivar soltura imediata”.

No entanto, “a Relatoria afirma que ‘não se verifica alteração fática suficientemente relevante’, mesmo que a parte tenha apresentado provas contundentes”, continua o documento.

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4. “Filipe está sendo coagido a fazer prova contra si mesmo”, afirma defesa

A defesa informa ainda que conseguiu confirmação do Sistema de Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos — U.S. Customs and Border Protection (CPB) — de “não haver registro de entrada física” de Filipe Martins em Orlando no mês de dezembro de 2022, pois sua última entrada foi registrada em setembro do mesmo ano, e por outro aeroporto.

No entanto, a resposta não foi aceita por Moraes sob argumento de ter sido “solicitada pelo próprio acusado”, e o ministro exigiu “consentimento do investigado” para que a PF tivesse acesso aos dados do CPB dos Estados Unidos, fornecidos somente com autorização pessoal devido a políticas de privacidade.

“Chegamos ao absurdo de exigir-se o seu ‘consentimento’ para produzir uma prova que a própria acusação não consegue, mesmo quando o agravante já apresentou documento contundente sobre isso”, aponta a defesa, ressaltando que Martins pediu a informação ao CPB “sem ter obrigação disso".

Segundo a defesa, essa situação “abre grave precedente” e “fere tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário”, pois o acusado não pode ser obrigado a “produzir prova contra si mesmo” e tem “direito ao silêncio”.

O documento enviado a Moraes ainda cita afirmações do ministro do STF Gilmar Mendes, que já tratou sobre o tema em casos de conduções coercitivas, do qual foi relator, apontando “potencial violação ao direito à não autoincriminação”, e ressaltando que indivíduos podem “recursar-se a depor em investigações ou ações penais contra si movimentadas, sem que o silêncio seja interpretado como admissão de responsabilidade”.

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5. Violação à presunção de inocência

No mesmo voto do ministro Gilmar Mendes, citado pela defesa de Filipe Martins, o magistrado verifica “potencial violação à presunção de não culpabilidade” nas restrições temporárias de liberdade e nas conduções sob custódia por forças policiais em vias públicas. Segundo ele, esses “não são tratamentos que normalmente possam ser aplicados a pessoas inocentes”, já que “o investigado é claramente tratado como culpado”.

No entanto, segundo a defesa de Filipe Martins, o que ocorre no caso do ex-assessor é uma “violação muito maior da presunção de não culpabilidade do que aquela que o ministro Gilmar Mendes apontava sobre as conduções coercitivas, uma vez que o acusado está sendo mantido preso”, sem indícios concretos de crime e sem denúncia mesmo depois de ter apresentado provas de que a suposta viagem não aconteceu.

“Diante da incapacidade de a autoridade policial comprovar, mediante documentação idônea e provas lícitas, que o peticionante ‘evaporou’ nos Estados Unidos, o peticionante foi obrigado a provar que não fez o que não fez, uma das exigências mais cruéis que podem ser realizadas a uma pessoa presa”, aponta o documento entregue a Moraes.

6 - Situação análoga à de Filipe Martins já foi chamada pelo próprio STF de “tortura”

“Em outros tempos (recentes), o STF chegou a chamar de ‘tortura’ e de ‘pau de arara do século XXI’ a prisão preventiva que, sem elementos, buscava colher provas a partir da própria prisão”, aponta o mesmo documento entregue a Moraes.

No texto, a defesa cita votos dos ministros no âmbito da “Operação Lava Jato” (HC 208.699/PR, do relator Edson Fachin), em maio de 2023, em que os ministros classificaram como “barganha” e “uso do poder do Estado” a obtenção de confissões em troca da substituição da prisão preventiva por medidas cautelares.

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“Usou-se, sem dúvida nenhuma, do poder do Estado, do Estado-Juiz, que não é parte, para se instruir o processo, para se obter informações por via que a Constituição veda claramente”, afirma trecho do voto do ministro Dias Toffoli na sessão de 9 de maio de 2023, e apresentado pela defesa de Martins.

Afinal, “ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. É um pau de arara do século XXI”, continua a fala do magistrado, que chamou a prática de “tortura psicológica”.

O documento cita ainda afirmações de Gilmar Mendes durante debate sobre a exigência de assentimento do acusado pelo juiz (HC 208.699/PR, do Relator Edson Fachin).

“Estamos diante, no século XXI, de maneira muito explícita do uso de tortura — acho que o ministro Toffoli usou a expressão de forma muito adequada”, disse o magistrado, pontuando que a situação é “extremamente grave”, há necessidade de “sanção para que a autoridade investida desse imenso poder não possa fazê-lo”, e que sua consequência deve ser a “anulação do julgamento”.

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7 – A PGR já deu parecer favorável pela soltura de Filipe Martins

A defesa de Filipe Martins também pontua que a Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou pela soltura do ex-assessor no dia 1º de março, cerca de 20 dias após a prisão.

Segundo o documento assinado pelo Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, a decisão inicial pela prisão preventiva estaria “suficientemente fundamentada” porque “o investigado não fora encontrado no seu endereço habitual e havia a notícia de que teria seguido para os Estados Unidos”. Porém, Gonet informou que a permanência de Martins em território nacional foi comprovada, então esse quadro inicial “sofreu modificação, o que admite reanálise da medida”.

No documento, o procurador cita ainda que Martins foi preso na mesma residência indicada para a busca e apreensão, “sem que fosse percebido sinais de preparação de fuga” que colocassem em risco as investigações ou a aplicação da lei penal. Por isso, “a pretensão de relaxamento da custódia parece reunir suficientes razões práticas e jurídicas”, afirmou.

No entanto, Alexandre de Moraes não acatou o pedido da PGR e solicitou novas diligências à PF, mantendo o rapaz preso há quase 110 dias em uma cela do Complexo Médico Penal (CMA), em Pinhais, no Paraná.

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O que deve acontecer com Filipe Martins a partir de agora?

De acordo com o advogado Ricardo Scheiffer, o ministro tem até 20 de junho, aproximadamente, para tomar sua decisão a respeito do agravo regimental apresentado pela defesa, soltando Filipe Martins ou levando o caso a plenário. “Caso contrário, pode incorrer em crime de responsabilidade”, finaliza Scheiffer.