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É uma temeridade sair do quintal, passar uma semana no outro lado do mundo e se pôr a falar sobre o que nunca se viveu – e mais grave ainda a simulação de Marco Polo quando vivemos no tempo da comunicação instantânea. Mas impressões não pretendem mais que isto, sentir na pele sem teoria e conversar à solta, que é a vida do cronista.

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Pois vai lá: o Japão é realmente impressionante. A primeira sensação que tive foi de que aqui, enfim, o comunismo deu certo, até me bater na cabeça que a Terra do Sol Nascente é também (e principalmente) o paraíso do capitalismo. Em Tóquio, tudo é de uma limpeza quase assustadora, um relógio em tranquilo e perpétuo movimento – e se dias atrás eu falei, bocudo, do silêncio de Frankfurt, é porque não tinha ideia do que é realmente o silêncio. Viadutos aqui têm tapumes com tratamento acústico – e, se o pedestre se afasta das avenidas amplas onde jamais ouvi uma buzina, entrando no que lembra ruelas perdidas de um vilarejo, estreitas e irregulares, se vê mesmo num vilarejo com florzinhas à janela, espaços mínimos que se aproveitam, aqui e ali uma cerca de Chico Bento, um café discreto, um sininho ao vento, muitas bicicletas e pessoas que, se falam, falam baixo. Em torno desses núcleos tranquilos, vivem os 37 milhões de habitantes da região de Tóquio.

As estranhezas prosseguem: achar um endereço é uma álgebra difícil, num mundo que só se explica por ideogramas inescrutáveis, uma maneira delicada de me definir analfabeto. O inglês, ao contrário do que eu pensava, aqui é língua de exceção; entrando num táxi, leve um mapa e aponte o dedo – a não ser que você domine japonês, a mímica será inútil (não tema: o motorista jamais rodará um metro a mais para levá-lo aonde você precisa ir). Parece que o endereçamento começa pela região, dali à quadra, que não obedece a nenhuma lógica sequencial, e então ao prédio ou casa, que também se define (para nós) ao acaso. Ruas não têm nome – é como se eu morasse no Alto da Glória, quadra 17 (que fica entre as quadras 4 e 92), prédio 5 (ao lado do 78). Fácil?

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"Esses romanos são loucos", dizia Obélix, que nunca veio ao Japão. Bem, alfabetizar-se no Japão significa dominar muitos sistemas gráficos. Exemplo: no computador, você digita em letras latinas "Sekka-tei" e o processador de texto joga na tela os ideogramas (eu sempre matutava como seria um teclado japonês, para dar conta de seus milhares de signos – pois é igual ao nosso). É um mundo que não prevê gorjetas – e onde o guarda que sinaliza o moderníssimo trem-bala, impecável no seu uniforme e suas luvas brancas, move o bastão luminoso em gestos ritualizados com a dignidade de um samurai do século 14.

Se há alguma conclusão, é que aqui a vida cotididana parece antes obra de uma densa cultura comunitária que de variáveis políticas, sociais ou econômicas determinantes – a aldeia sempre se defende delas.

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