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Ao se empregar como fotógrafo no jornal Diário do Paraná – do grupo Diários Associados – em 1959, Francisco Gortz Filho, o Chicão, tinha tudo para se sentir um estranho no ninho. Nascido e criado no lado ucraniano da URSS – a União Soviética –, provou de rigores que a maior parte da fauna do “Baixo Centro” conheceria apenas anos depois, ao lotar a Cinelândia para assistir ao melodrama político Doutor Jivago. Não bastasse ter experimentado a fúria bolchevique, era nascido e criado nos preceitos da comunidade evangélica menonita – um dos braços do movimento anabatista do século 16 –, aqui encravada em bairros como o Xaxim, Hauer, Boqueirão e Guaíra, então fazendas nas quais os imigrantes criavam vacas, dominando o mercado leiteiro de Curitiba e região.

Le Chicão na frente da Gazeta do Povo, na Praça Carlos Gomes, um lugar que ajudou a tornar famoso.Arquivo Família Gortz

Pois Chicão não só se entrosou com o mundo meio torto do entorno da Praça Carlos Gomes como produziu ali um soberbo acervo de fotojornalismo, ainda em vias de ser reconhecido. Foram 19 anos de ofício. Nesse tempo, clicou um carro explodindo, liturgias do poder, jogos de futebol, os primeiros moradores das favelas, assim como centenas de anônimos entrevistados para o “fala-povo” – enquete, no jargão, uma linguagem bastante usada a partir da década de 1960 para captar a opinião de populares. Parte expressiva das famosas capas-cartão-postal da Gazeta do Povo de domingo – empresa para onde se transferiu em 1961 – são suas, ainda que sem crédito, como era de costume na época. Hoje, esse material só pode ser conferido na seção de jornais da Biblioteca Pública do Paraná.

Francisco Gortz Filho nasceu em 1913, na Crimeia, atual região de contestado entre a Rússia e a Ucrânia. Como os demais menonitas – tinha raízes holandesas e alemãs. Com a Revolução de 1917, a comunidade – trazida para a Rússia e Ucrânia pelas benesses de Catarina, a Grande – passou a sofrer confiscos e perseguições, em especial por deter o grosso da produção de trigo no país. Com a coletivização da terra, promovida por Stálin, pelo menos 100 mil menonitas russos passaram a ser vistos como merecedores de uma temperada na Sibéria. Expropriados, receberam socorro de uma Alemanha já pedindo falência. Dali partiram para países como Canadá, Paraguai e Brasil.

Urbano

Francisco, seus pais e meia dúzia de irmãos foram refugiados na Alemanha antes de serem imigrantes – chegando ao Brasil em 1930. Tinha 17 anos e não estava a salvo, como podia julgar. Os Gortz vão para a zona rural de Ibirama, Vale do Itajaí, Santa Catarina, e Ana, a mãe, morre de tifo. O período guarda uma das incógnitas da biografia de Chicão – se foi nesse período trágico que se viu apresentado à fotografia. Segundo relatos, o primeiro contato pode ter sido em laboratórios, na Ucrânia. O consenso é que no Brasil, quanto mais se acentuou sua incompatibilidade com o campo, mais cresceu sem interesse pela fotografia, passaporte para viver a vida que queria.

Instalado em Curitiba, no final da década de 1930, Francisco Gortz se revela urbano, vaidoso, genioso, fumante convicto e boêmio – a antítese de um menonita típico – piedoso, rural e espartano. Logo trocou os afazeres na bacia leiteira – dominada pelos seus conterrâneos – para se empregar na mítica Foto Progresso, dos irmãos Weiss, na Rua São Francisco.

Para estúdios como o Progresso acorriam famílias inteiras para o retrato clássico e hierárquico; a turma da Primeira Comunhão; formandos e noivos recém-saídos do altar. Os retratos seguiam uma estética rígida. Teria sido sua primeira escola – aprendeu a fazer as crianças rirem de perninha cruzada e curitibanas do Bacacheri fazerem ares de divas de Hollywood.

Ao se desligar da Foto Progresso, Chicão abriu seu próprio espaço, a Foto São Paulo, na Rua das Flores, tornando-se concorrente direto da mítica Foto Brasil, líder de mercado durante sete décadas. Foram tempos promissores. Casou-se, já passado dos 30 anos, com Elizabeth Kroker – filha de um pastor menonita. Longe do ambiente que mais parecia uma vila holandesa na periferia de Curitiba, o Boqueirão, o casal teria provado do prazer dos cinemas, cafés e teatros. “Eles iam à Rádio Guairacá. Só vinham para a colônia nos fins de semana”, conta o filho mais velho, também Francisco.

Até vir o reverso da fortuna. Chicão vendeu a Foto São Paulo para se juntar a parentes numa empreitada industrial. Depois de um desfalque, a fábrica quebrou. Sem emprego e sem a Foto São Paulo, “desembarca” na Praça Carlos Gomes, uma quadra abaixo de onde fotografava noivas vestidas de Grace Kelly. Estava finalmente em casa. “Digo que meu pai era um ponto fora da curva. Casou-se com mais de 30 anos e só abraçou a fé depois de idoso e doente”, ilustra o filho.

Esquina

Como tantos outros, ao trocar o Diário do Paraná pela Gazeta do Povo, em 1961, Chicão não precisou muito – apenas virou a esquina. Menos de um ano depois, quando o jornal foi comprado pelos advogados Francisco Cunha Pereira Filho e Edmundo Lemanski, recebeu a incumbência de organizar o departamento fotográfico, então minúsculo, nutrido às custas de fotos oficiais. A rigor o setor era ele, os fotógrafos Reinaldo Guidolin – o René –, e Urutides Borges, mais o laboratorista Oswaldo Ferracini.

Consta que não virou um chefe “de gabinete”. Mesmo no comando, sua antena estava na rua. “A gente saía. O chefe de reportagem, Percy Moro, mandava a gente nem que fosse para o Passeio Público, ver se achava alguma notícia. Você faz ideia do que era fotografar no Estádio Durival de Britto com uma Rolleyflex, filme 100 ASA?”, lembra Borges, hoje decano do fotojornalismo no Paraná.

Na redação, Chicão fez amigos diferentes daqueles aos quais tinha acesso entre os menonitas, a exemplo do repórter policial Luzimar Dionísio, o Meio Quilo. Passou a se organizar pela imprevisibilidade, típica da rotina dos jornais. Não tinha hora para terminar o trabalho – para chateação de Elizabeth e dos cinco filhos, que sabiam que seus atrasos se estenderiam à Ceia de Natal. “Vinha para dormir”, lembra o filho Francisco. “Ele gostava de liberdade. Na juventude chegou a ser tropeiro. Amava cavalos”, comenta o cunhado David Ernesto Kroker, 82 anos.

Nem mesmo a imprensa lhe botava freios. Não tinha carro. Preferia a Lambreta e a moto. A depender do vento, dava partida e se mandava para o litoral do Paraná, Ponta Grossa e para Witmarsun, a de Santa Catarina, onde tinha amigos, como o também fotógrafo Wille Kop, e parentes. Se uma pauta lhe encantasse, dava-se ao luxo de ficar dois-três dias sem aparecer. O expediente ocorria onde quer que estivesse – e essa generosidade é um dos aspectos mais encantadores de sua personalidade. Chegou a dar uma câmera de presente a um vizinho. “Chegava atrasado sempre. Se não se sentisse à vontade, ficava quieto. Não aceitava censura, era bom de briga”, resume o filho.

Conta-se que na via-sacra pelos bares do Baixo Centro, sacava sua Rolleyflex e fotografava quem quisesse – fosse no Bar do Luís, num evento, em andanças pelo Xaxim. Adorava flagrantes amorosos, as paqueras, às vezes para desespero dos amigos, pegos em plena operação arrasta-asa. Divertia-se. “A redação era o xarope da vida do Chicão. Adorava aquilo. Gostava de vê-lo montando a cena para uma fotografia. Não podia fazer foto parada, mas ele podia tudo”, lembra Urutides Borges.

Em 1978, aos 65 anos, um derrame o impediu de trabalhar. Recolheu-se na comunidade menonita, sob os cuidados de Elizabeth Kroker. Morreu em 1984, aos 71 anos, de complicações do derrame. Impressiona ouvir como as pessoas falam dele – como o tivessem encontrado ontem, na Praça Carlos Gomes.

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