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José Carlos Fernandes

A casa assassinada

 | Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima)

Uma das cenas mais incríveis das telenovelas brasileiras foi ao ar no dia 4 de janeiro de 1975, em preto e branco, no folhetim Fogo sobre terra, de Janete Clair. A trama se passava na fictícia cidade de Divineia, fadada a desaparecer debaixo das águas de uma barragem. Nara, personagem de Neusa Amaral, tomada pela bravura dos mártires, senta-se no chão de sua casa à espera da morte. O Rio Jurapori vai subindo, subindo, enlameado, até atingir o nariz da atriz, um dos mais cubistas da história da dramaturgia. Corta [a cena, não o nariz]. O recado está dado.

Ao sentar no sofá da sala de Fernando Assade Leludak, 47 anos, não resisti à tentação de perguntar se ele tinha assistido a Fogo sobre terra quando era guri. Sim, tinha visto e blablablá. Nosso interlúdio estava garantido. Fernando mora na Rua Buenos Aires, 1.358, na região conhecida como "Baixada Atleticana". É vizinho da Arena e essa tem sido sua tormenta nos últimos cinco anos. A ampliação do estádio lhe custou um processo de desapropriação. Qual Nara, a da novela, não quer sair de sua Divineia. E as "águas" já lhe chegam à boca.

A casa onde mora com a mulher, Denise, e o filho do casal está sendo engolida pelas obras em redor. Fora ele, outros três vizinhos não arredam o pé: o 1.298, o 1.304 e, mais dó ainda, o 1.346, erguido na década de 1930, adornado no frontão com o relevo "Villa Adoracir". Tem rendas na janela, calçada de tijolos, um mimo. Quando passo de ônibus, vejo as paredes caindo, os andaimes vitoriosos e os moradores cada vez mais ilhados, como se fossem inimigos dos quatro jogos da Copa do Mundo de 2014 em nome das décadas que viveram naquele trechinho de rua. Soube que há idosas nascidas e criadas ali. São as Naras da Água Verde. É Fogo sobre terra.

Lembro de uma frase dita pelo escritor israelense Amós Oz: "Colocar-se no lugar do outro é um dos remédios contra a tirania..." Ver nossa casa invadida, comprada ou destruída dói mais que cólica de rim e inflamação do nervo trigêmeo – ao mesmo tempo. Como escreveu Bachelard, a casa se assemelha ao ninho. É o lugar para onde voltamos. Ali abrigamos nossos sonhos e devaneios, daí, não raro, contarmos nossa história a partir dos endereços que tivemos.

Fernando e Denise, por exemplo, viram seu filho crescer naquele quintal. Cuidaram da ameixeira e das gabirobas. Pelo muro, se tornaram amigos da velha senhora que mora na Villa Adoracir. Desde que o fim do imóvel foi selado, os dois não param de receber gente que bate palmas no portão para dar uma palavra amiga. Não são tiranos. Colocam-se no lugar do outro e vão até a Rua Buenos Aires para antecipar as exéquias da casa que será assassinada. Os mais chegados já pediram uma última visita, com foto. Há quem chore. A 1.358 é um organismo. Tem veias, músculos e coração.

Para quem não a conhece – é um exemplar curitibano dos anos 1940. Tem arco na parede da sala, venezianas, calçada de pedra. O piso da varanda é original, com formas geométricas. O que não lhe falta é passado. Por isso o casal a comprou da família Pfeiffer – os dois queriam morar no tempo. É cruel – dentro de dias, quando os Leludak não puderem mais resistir à pressão, mal nos lembraremos do local cujos muros são cobertos de hera e de suas "lágrimas de Cristo" em flor. Pior que isso é a iminência de surgir mais ali um prédio horrendo, com cara de loja de colchão – como se sabe, as lojas de colchão dominarão o mundo.

Na década de 1970, o futurista Alvin Toffler alertou que a arquitetura Lego substituiria as construções afetivas. Profetizou que seria cada vez mais difícil retornar ao armazém ou à praça da nossa infância, restando-nos a memória e alguma fantasia. De minha parte, farei o possível. Direi aos meus que aquela rua tinha paralelepípedos, um endereço com nome de vila, um casal que cultivava jardins. Quando a gente passava na frente, achava que a cidade ainda cabia na palma da mão.

Mas pensando bem, acho que vou afiar meu inglês e contar essa história na esquina, para os milhares e milhares de turistas que virão a Curitiba em 2014. Eles vão lamentar não terem conhecido o 1.358 da Rua Buenos Aires. Quiçá, pedirão o dinheiro do ingresso de volta. Não duvidem.

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