Quanto vale uma memória? Quanto alguém se dispõe a pagar por uma vela decorativa parcialmente derretida, provável testemunha de um idílio amoroso, ou por uma estátua africana de 300 anos, ou pela cama secular do presidente da Província do Paraná Santos Andrade? Meio antiquário, meio brechó, um pouco museu, o Mercado das Pulgas tem o maior acervo de memórias à venda em Curitiba. Cada um de seus 100 mil objetos carrega não só a história do antigo dono como um partícipe da vida privada , traz também a marca de um tempo, o recorte social de uma época.
O dono do lugar, José Antônio da Silva, não é só um revendedor de coisas antigas, antes um memorialista, um guardião da história por trás de tudo o que passa por ali. É um custo pôr preço nos itens mais raros. Os filhos o ajudam a consultar especialistas quando necessário ou a pesquisar na internet o preço de algo similar. Os critérios, porém, são bastante subjetivos. Quem antes dele definiu valores decerto enfrentou o mesmo impasse. "Não sei o que estou vendendo, mas quem compra sabe o que está comprando", diz José. Isso o tranquiliza.
O valor maior está na história de cada objeto, relativiza José. Mas esses objetos oscilam entre a sacralização pela memória e o descarte puro e simples. O que eles representam em seus múltiplos significados desafia o pensamento lógico. Para o sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard, um objeto tem duas funções: uma, de ser utilizado; outra, de ser possuído. Há uma sutil diferença entre "possuir" um objeto ou tê-lo para o uso apenas. Os significados a eles atribuídos em um e outro caso são distintos.
O que leva alguém a possuir um objeto antigo se sua função prática é a mesma ou inferior à de algo mais moderno produzido em série? Antes do fim utilitário, o que se busca é a dimensão estética e simbólica. A interação de uma pessoa com determinado produto pode ir além do interesse prático. Um objeto pode, a despeito de sua funcionalidade, despertar prazer estético e provocar emoções. Essa interação se dá tanto por razões racionais quanto emocionais estas últimas relacionadas às funções estéticas e simbólicas.
No livro Teoria dos objetos, o versátil físico, filósofo, psicólogo e sociólogo francês Abraham Moles aponta três fases na relação entre o homem e os objetos. Começa pelo desejo e sua consequente aquisição, passa pela descoberta e chega à relação afetiva. Em seguida ocorre um declínio dessa relação, levando o objeto a ser conservado, substituído ou descartado. Esse percurso, seja por caminhos racionais ou emocionais, revela em grande medida as razões pelas quais um objeto tão cobiçado por alguém uma hora acaba no Mercado das Pulgas.
Há quem veja um custo emocional em manter os pertences dos pais após a morte, outros os veem como estorvo, ou, ainda, como uma fonte de renda. Mas ainda que alguém veja um objeto como algo venal apenas, outra pessoa do mesmo círculo de convivência pode tê-lo como uma referência que transcende a relação comercial. Tudo depende do significado que se dá ao objeto, e nesse ponto o valor de venda se perde em subjetividades. Assim, objetos carregados de um valor simbólico vão e vêm da loja de José.
Um dia, ele recepcionou um sujeito apreensivo oferecendo um presépio português. Era um gosto ver a riqueza dos detalhes, a fineza dos acabamentos. Passados três dias, outro homem apareceu para comprá-lo. Parecia saber que estava ali. Não questionou o preço, apenas queria levá-lo. Herança de família, o presépio ficou em poder de um irmão que decidiu vendê-lo. Para não criar indisposições familiares, o sujeito esperou que o irmão o vendesse para em seguida comprá-lo.
O acervo memorialístico do Mercado das Pulgas chega das formas as mais variadas. Há 18 anos, José tem um prato de bronze com detalhes de ícones japoneses em ouro. Suas pesquisas revelaram tratar-se de uma peça talhada em Kyoto quando a cidade ainda era a capital do Japão. O local do achado é motivo de especulação. Um sitiante encontrou-o nos mangues de Antonina, Litoral do Paraná. A joia teria sido extraviada pelos jesuítas quando, em 1759, foram expulsos pelo rei D. José I dos domínios portugueses. Aos interessados: a relíquia custa R$ 15,8 mil.
Vender memórias parece um bom negócio. José já teve 16 açougues em Curitiba. Nenhum resistiu à crise econômica de 1979. Depois, abriu com o irmão uma empresa de terraplanagem, que sucumbiu à crise seguinte. Mas a casa das 100 mil memórias resistiu à crise de 2008, cresceu, chegou à terceira loja e segue surfando na crista das marolas da economia desde então.