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Lei Maria da Penha – dez anos

A comovente história da paranaense que quebrou o silêncio da violência doméstica

Goretti Bussolo: estuprada na infância, vítima de outro abuso sexual aos 18 anos e  de 19 agressões físicas do marido em 15 anos de relacionamento. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
Goretti Bussolo: estuprada na infância, vítima de outro abuso sexual aos 18 anos e de 19 agressões físicas do marido em 15 anos de relacionamento. (Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo)

Entre as mais de 11 milhões de brasileiras que levam o nome de Maria, há dez anos uma se tornaria um símbolo da luta pelo fim da violência doméstica. Maria da Penha Fernandes – que dá nome à Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 – foi vítima, como ocorre a tantas outras Marias, da violência que acontece dentro de casa. Um tema que por anos fugiu dos olhos do poder público e da sociedade, que tomavam como verdade o ditado popular de que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.

A paranaense Goretti Bussolo, 49 anos, apesar de não ter Maria no nome, se apresenta como uma. Assim como Maria da Penha, ela quebrou o silêncio e passou a ajudar outras mulheres a fazer o mesmo. Hoje, depois de viver 36 anos de repetidas violências, ela preside a ONG Todas Marias, que atende 469 mulheres ao redor do Brasil que buscam um recomeço. “Busquei curar a minha dor transformando realidades”, diz. Goretti também luta por mais efetividade na Lei Maria da Penha. “Precisamos que todas as mulheres tenham direito à aplicação da lei e todas as políticas públicas instituídas por ela, como prioridade na fila do emprego, da casa própria, da creche para os filhos. Só assim a lei permitirá que a mulher saia do ciclo da violência”, diz.

O ciclo de Goretti começou aos 12 anos, quando trabalhava como empregada doméstica. Seu patrão e outros quatro homens invadiram seu quarto. Uma das poucas coisas que ela lembra é do banho que tomou após sofrer o estupro coletivo. Ouviu do patrão que ninguém acreditaria na sua história. E se calou.

Uma Goretti a cada quatro minutos

Dados oficiais mostram que, a cada quatro minutos, uma Goretti dá entrada no Sistema Único de Saúde (SUS) vítima de violência doméstica – que se configura por ter sido causada por alguém que tenha algum tipo de relação com a vítima, seja de parentesco, afeto ou de trabalho, como no caso dela.

A pesquisa Mapa da Violência – Homicídios de Mulheres contabilizou, em 2014, 147.691 registros de agressões a brasileiras – 405 por dia. O número deve ser ainda maior, diante de um histórico de silêncio, que aos poucos vem dando espaço às denúncias. O Ligue 180, serviço do governo federal que reúne denúncias anônimas de violência doméstica, registrou uma denúncia por minuto também em 2014. Todas feitas por quem, de alguma forma, resolveu agir e “meter a colher” para acabar com o sofrimento de uma Maria, de uma Goretti.

Um sofrimento que, no caso de Goretti, não se restringiu a um único caso. Aos 18 anos, ela foi vítima de outro estupro. Quando procurava emprego, foi atacada por um homem que a jogou em um matagal e disse que a mataria. O agressor fincou um canivete em sua coxa. Para fugir, ela puxou o canivete e o usou contra o agressor. Saiu correndo, sem olhar para trás. No dia seguinte, ouviu no rádio que o homem tinha morrido. O acontecido virou um fantasma em sua vida. E acabou sendo motivo de chantagem em outro relacionamento, que viria anos depois.

Enquanto eu estava encostada na banheira, ele empurrou minha cabeça e tentou me afogar. Meu filho estava ali, vendo tudo.

Goretti Bussolo relatando agressão de seu ex-marido.

Gritos, tapas e lua de mel: o perverso ciclo da violência

“Eu não amava ele, mas ele dizia que me amava. Eu queria tanto ser amada…”, conta Goretti, ao falar do ex-marido – também agressor. O relacionamento era ótimo no começo. Até que o ciúme do parceiro foi se transformando em uma prisão para ela. Seu batom vermelho o incomodava. Qualquer roupa era motivo de brigas.

O companheiro era a única pessoa que sabia do que aconteceu no dia que foi estuprada no matagal. Ele a chantageava. Ameaçava denunciá-la e tirar a guarda dos filhos. O medo a paralisou.

Um dia, após voltar de uma missa, ele explodiu. Disse que ela havia flertado com um fiel na fila da comunhão. Acostumada com os surtos do companheiro, foi dar banho no filho mais novo. “Enquanto eu estava encostada na banheira, ele empurrou minha cabeça e tentou me afogar. Meu filho estava ali, vendo tudo.” Nesse dia, em 2011, resolveu acabar com o sofrimento e denunciá-lo pela violência.

“Quebrar esse ciclo não é fácil. A vítima traumatizada precisa de todo apoio para sair dessa situação”, afirma Hilda Gaspar Pereira, mestre em Antropologia Social e pesquisadora da área da violência de gênero e familiar. Hilda visitou vários países para entender o ciclo da violência doméstica, que funciona quase da mesma forma em qualquer lugar do globo. Em um primeiro momento, o companheiro começa a agredir a mulher verbal e psicologicamente. “Nessa fase, a mulher costuma minimizar a violência porque não a percebe como tal”, explica.

Goretti, por exemplo, já não podia conversar com ninguém quando a nova face do marido apareceu. É a etapa da explosão, quando as agressões passam a ser físicas. Em 15 anos de relacionamento, Goretti sofreu 19 agressões e deu cinco entradas no hospital por causa delas. A terceira fase é a “volta da lua de mel”, quando o homem promete mudar e diz que se arrepende. E o ciclo recomeça.

De acordo com Hilda, há dezenas de razões para que o ciclo se perpetue. Na maioria das vezes, o relacionamento abusivo causa problemas de autoestima e depressão na vítima – além da dependência financeira e afetiva. “Muitas vezes a família não vê com bons olhos a separação, ela tem medo de deixá-lo por conta dos filhos e pela vergonha.”

Apoio, ajuda, compreensão

Para encerrar esse ciclo perverso, o apoio da família é essencial. Nem sempre isso acontece. Goretti chora ao falar da mãe, que até hoje diz que ela é “a filha que não deu certo”. “Isso também é uma violência, talvez a que doa mais”, conta a ativista, que viveu anos em depressão, tentou suicídio e chegou a ser internada em um hospital psiquiátrico.

O apoio, se não vem da família, deve vir do Estado. Esse é um dos grandes desafios, já que o número de denúncias aumenta cada vez mais. De acordo promotora Mariana Bazzo, do Ministério Público do Paraná (MP-PR), o aumento no número de denúncias não demonstra o crescimento da violência. “As mulheres estão mais encorajadas a procurar as instituições no início no ciclo da violência, antes que as lesões se tornem graves. Para isso, é preciso estrutura.”

Denúncia, medida protetiva e políticas públicas

O atendimento especializado ainda não é uma realidade. Falta orçamento. E a efetivação das políticas públicas previstas na lei ainda é precária.

A desembargadora Lenice Bodstein, da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid) do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), afirma que o Judiciário vem lutando para que o atendimento às vítimas seja eficaz. “Além do atendimento humanizado, o Estado precisa prestar a proteção necessária para a vítima e uma célere condenação do agressor”, diz.

Goretti só conseguiu uma medida protetiva contra o ex-marido depois de uma das seis denúncias que fez contra ele. A Justiça determinou que o ex-companheiro ficasse longe dela.

Foi justamente a Lei Maria da Penha que inseriu a medida protetiva no ordenamento jurídico. Hoje, 31.301 ações relativas a violência doméstica estão em andamento na Justiça do Paraná – destas, 18.333 são pedidos de proteção judicial, já que o que muitas mulheres querem é uma garantia de que as agressões não voltem a acontecer. Em caso de descumprimento, o agressor pode ter a prisão decretada.

O ex-marido de Goretti descumpriu. E ainda ironizou a lei: “O que vai acontecer comigo? A Maria da Penha vem na cadeira de rodas me prender?”, dizia ele para a mulher, debochando da história da precursora da legislação. O agressor foi preso em flagrante uma vez. Pagou a fiança e saiu. “Eu só consegui me livrar das ameaças quando mudei de endereço”, diz Goretti.

O próprio flagrante foi um avanço trazido pela lei. Sâmia Coser, delegada titular na Delegacia da Mulher de Curitiba, afirma que, antes de a lei entrar em vigor, o agressor lavrava um termo circunstanciado e saía da situação sem grandes perdas. “Hoje, a violência se tornou um antecedente criminal como qualquer outro”, explica.

Isso contribui para dar segurança às mulheres agredidas. Com a proteção, Goretti passou a ser atendida pela Patrulha Maria da Penha, serviço prestado pela Guarda Municipal de Curitiba que verifica o cumprimento das medidas protetivas. Desde 2014, os patrulheiros fizeram quase 7 mil visitas à vítimas que têm a garantia de proteção. No mesmo período, 112 agressores foram presos em flagrante.

Goretti afirma que a Patrulha funciona. Mas que o atendimento deveria ser estendido a todas vítimas que pedem ajuda, sem a dependência da medida judicial. A inspetora Cleusa Pereira, que coordena a Patrulha, afirma que os guardas municipais têm passado por treinamento para atender todas as vítimas de violência doméstica.

A mulher precisa saber o que é se amar e que a violência não tem nada a ver com amor.

Goretti Bussolo

Empoderamento e educação, palavras-chave

Goretti, que hoje faz questão que usar batom vermelho todos os dias, acredita o tratamento compulsório do agressor é a chave para acabar com a violência. “Não é uma saia que estupra; é um homem.”

O Grupo Guia, instituído pelo Juizado Especial de Curitiba, reúne agressores que foram presos em flagrante ou por descumprir medidas protetivas. Eles chegam arredios, mas se conscientizam. Dentro do grupo, nunca foi registrado um caso de reincidência.

Mas ainda é melhor prevenir do que remediar. Todas as mulheres entrevistadas pela Gazeta do Povo, sem exceção, afirmam que a cultura de que a violência doméstica é normal, mas tem de acabar.

“É preciso perceber que a violência doméstica mata mulheres por elas serem mulheres, dentro de casa. É preciso acabar com o machismo social e institucional”, diz a promotora Mariana Bazzo. “A Lei Maria da Penha é apenas uma semente de autonomia para a mulher. Queremos muito mais: esperamos que um dia a cultura machista acabe e que a lei não seja mais necessária”, conclui a desembargadora Lenice Bodstein.

É preciso meter a colher em briga de marido e mulher de uma forma efetiva e especializada, garantindo que a lei seja cumprida na íntegra. E, sem ter medo de cair no clichê, é necessário ter amor próprio. Apesar de todos os anos de sofrimento, Goretti se diz em processo de libertação que vem pelo empoderamento. “A mulher precisa saber o que é se amar e que a violência não tem nada a ver com amor.”

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