Encostada com as mãos para trás na porta da casa de madeira corroída, Vani dá um refresco para os olhos dos entrevistadores. Dentro da cozinha já não era possível agüentar a ardência provocada pela fumaça que vertia do fogão a lenha, por isso dá uma pausa ao refogado de batata-doce e arrasta pelo chão de terra batida as sandálias Havaianas de tiras azuis, até instalar-se de frente para o amplo terreiro. Detrás da grande armação dos óculos, um olho vigia o fogão e o outro espreita desconfiado o ziguezague da caneta no bloco de anotações do interlocutor, enquanto o bailado da língua entre os dentes ralos vai contando a epopéia dos antepassados.
Vani Rodrigues dos Santos, de 62 anos, e 55 moradores da Serra do Apon, nos cafundós de Castro, fazem parte de uma recente e perturbadora descoberta. Durante muito tempo o Paraná imaginava-se um estado eminentemente branco na sua composição étnica, ideário construído a partir da escassez de informações sobre seu passado escravocrata e da forçosa identidade européia à qual jugava-se predestinado. Aí vieram os números. Nada menos do que 25,8% da população paranaense é preta ou parda, revela o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em Curitiba eles somam 11% da população. No Brasil, são 43,2%.
Os números, de 2005, podem não ser exatamente uma novidade, mas recomendam uma releitura da imagem que se tem do paranaense ou que ele tem de si. A grande novidade é que só agora o Paraná começa a descobrir o real alcance de suas raízes negras. Há três anos conhecia-se apenas três comunidades remanescentes de escravos no estado. Agora são 86, e o Grupo de Trabalho Clóvis Moura, criado em 2005 pelo governo para mapear os quilombos do Paraná, ainda nem avançou pelas regiões Oeste e Norte Pioneiro. Ainda hoje eles são difíceis de encontrar, dada a lonjura em que os negros se metiam atrás da liberdade, como fez o tataravô de Vani.
Ela ajeita os óculos usa o mesmo há quatro anos, já vencido, porque o novo tem "as pernas curtas" e mergulha fundo em reminiscências. Tinha uns 10 anos quando, junto a dois irmãos e a mãe, Maria Zelina Maciel, ficou quatro dias nas mãos de jagunços. Queriam forçar o pai a aparecer para matá-lo e tomar-lhe as terras. Ele não apareceu, e a mãe apanhou muito por causa disso. As casas do vilarejo foram incendiadas e os quilombolas tiveram de fugir. Vani não sabe de onde surgiu o advogado que os ajudou a voltar para suas terras. "Muita gente vendeu", conta. Foi o que fez o casal Norberto Maciel, 72 anos, e Marilene da Silva Maciel, 71 anos.
Marilene colhia batata-doce quando soube da tragédia. A comadre de cuja filha seria madrinha achegou-se meio sem jeito. "Vamo fazê o batizado hoje", disse Marilene. "Não, hoje não", respondeu a mulher. "Vamo lá", replicou. Foi então que a comadre emendou: "Mas agora você não vai ter nem o que comer". Num átimo, Marilene subiu aos trancos o morro onde morava. Ao longe, viu o fogo e a correria em volta da casa. Tiveram de ficar semanas nas casas de parentes, desmanchando roupa de adulto para fazer para as crianças. No aperto, venderam 13 alqueires por 18 cruzeiros, uma ninharia. Hoje, não tem família com mais de meio alqueire no lugar onde o tataravô de Vani encontrou refúgio.
"Para inglês ver"
A Serra do Apon parecia distante e segura o bastante para escapar dos grilhões. Em algum momento entre os anos de 1800 e 1850, um grupo de negros fugidos fincou raízes por ali, a 70 quilômetros da Vila Nova de Castro, que ganhava corpo e se tornara entreposto escravagista graças aos tropeiros que faziam a ligação econômica entre o Sul e o Sudeste do Brasil Colônia. O nome do tataravô escapou da memória, mas Vani, uma espécie de oráculo do quilombo, perpetua na tradição oral a epopéia dos antepassados. Mas sem escrita nem leitura, ela nunca chegou a saber a real dimensão dos feitos do tataravô e de uma legião de anônimos que viveram numa época em que principiariam as mudanças.
O ano era 1831. A Inglaterra, "dona dos mares", exercia forte influência política e econômica sobre o jovem continente americano e pressionava pelo fim do tráfico de escravos numa tentativa de ampliar o mercado consumidor de seus produtos industrializados. Naquele ano, já independente, o Brasil edita lei proibindo a atividade. O Império brasileiro vigiava os principais portos (Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco), mas fazia vistas grossas ao tráfico negreiro que grassa nos portos de Santos e Paranaguá. Desta fiscalização meia-sola nasceu a expressão "para inglês ver", diz o historiador Carlos Alberto Medeiros Lima, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Diante da inércia brasileira, a marinha britânica passou a perseguir navios negreiros. A Royal Navy teria afundado cerca de 200 navios, mas um incidente ocorrido em junho de 1850 mudaria o rumo da história. Naquele ano o cruzador inglês Cormorant aprisionaria três embarcações e uma delas acabou afundando na costa paranaense com todos os africanos a bordo. Moradores de Paranaguá foram à Fortaleza da Ilha do Mel e dispararam tiros de canhão contra o Cormorant, que saiu ileso. O incidente levou o governo imperial brasileiro a aprovar a lei "Eusébio de Queiroz", cujo rigor acabaria com o tráfico de escravos.
A ambigüidade na proibição do tráfico negreiro contribuiria para a composição étnica brasileira em geral, e a paranaense em particular. A era do "para inglês ver" começou a "enegrecer" o Paraná com os escravos trazidos às pencas e às escondidas. A população negra emparelhava fácil com a branca. Na Castro de 1804, por exemplo, havia 1.800 escravos e 1.500 negros livres para 4.500 brancos, segundo o historiador da UFPR. Em Curitiba, que viria a ser capital da futura província, em 1853, negros livres e escravizados somavam 2.600 pessoas, metade do total da população branca. Em todo o Paraná havia 8 mil escravos, 15 mil negros livres e 25 mil brancos.
O censo da época era feito pelo governo do estado de São Paulo, do qual o Paraná era a quinta comarca, e contava o número de escravos como forma de medir a riqueza dos senhores de então. Não se incluía os aquilombados, já que só os cativos existiam oficialmente. Logo, com a verdadeira proibição do tráfico negreiro, o estado começaria a "branquear". A escassez de mão-de-obra escrava na lavoura abriu portas à imigração, com oferta de terras férteis e baratas. Em Castro, alemães fundaram a Colônia Terra Nova em 1933, e logo em seguida os holandeses, entre 1951 e 1954, fundaram a Colônia Castrolanda. Depois vieram poloneses, ucranianos, russos, italianos, árabes, japoneses.
Antes da chegada dos imigrantes já havia um processo de expulsão dos escravos. Castro e Curitiba tornaram-se pólos irradiadores dos fugidos que avançavam na direção dos sertões paranaenses para montar quilombos, e a capital foi "branqueando" na exata medida da diáspora negra. Eles caíram no ostracismo e por isso ao longo de muitos anos imaginou-se um Paraná de pouca tradição escravocrata. Só agora, depois de tanto tempo escondidos da intolerância branca, começam a ser descobertos. Estão saindo da invisibilidade histórica para quebrar a ideologia de um estado homogêneo, onde ainda se imagina que diferenças étnicas e culturais fazem parte de uma época distante.