Não sei se já lhe aconteceu, prezado leitor, mas estou perdendo as contas das vezes em que me tomaram por um assaltante. A cena é quase sempre a mesma. Sigo pela calçada e quem vai à frente me lança um olhar atravessado. Até aí, tudo bem. Funciona como uma checagem, instantânea, porém imperfeita, da possibilidade de alguém estar sendo seguido por um sujeito cheio de más intenções, seja um punguista ou um doidivanas com déficits sexuais profundos.
O pior é que, em vez de esboçar alívio ao ver que se trata de um trabalhador apressado ou de um homem na luta insana contra uma injusta vantagem abdominal , a expressão é de horror, seguida de pânico e sebo nas canelas. O passo da suposta vítima se torna largo. Se for mulher e estiver de bolsa, agarra-a qual um filho pequenino, indicando que, se preciso for, defenderá seus pertences com a própria vida. A cabeça gira desgovernada em busca de socorro, deixando-me à mercê do linchamento e ao escorrer do sangue na sarjeta.
De todas as experiências, a pior foi a vivida na Rua Bento Viana, num dia qualquer. Ao me perceber passando ao seu lado, uma guria saiu em disparada, tropicando na sandália rasteirinha enquanto se atracava à sacola hippie de butique. Logo ela, tão original em seus cachos ruivos, alheia às horrendas chapinhas. Nem esperou o sinal abrir para pedestres na Visconde de Guarapuava. Buzinas. Temi que fosse atropelada, exposta à manchete dos jornais: "Jovem morre no asfalto ao fugir de marginal". Deprimi.
Em casa, pergunto aos meus se tenho cara de mau, o que lá isso signifique. Minha mãe se converte numa daquelas batedoras de panela da Plaza de Mayo. Garante que mantenho a mesma feição de cachorro sem dono que esbocei ao vestir o avental xadrez com iniciais bordadas, nos idos de 1967, meu primeiro ano de jardim de infância. Desconfio. Sem refresco, resta-me o martírio e a palpitação a cada vez que vejo um carro da PM.
Não é o único tormento. Entrar em lojas de shopping é outra prova de que algo não vai bem. Coleciono pezinhos batendo no chão, seguidos de despachos como "senhor, não temos nada em liquidação". Meses atrás, numa casa especializada em malas, a vendedora passou ao meu lado, fez o contorno, para se atirar ávida ao regaço de uma compradora em potencial loira e de peitos graúdos que mal entrara no estabelecimento. Detalhe: até então eu era o único cliente e ia mesmo comprar. Magoei.
Mas a qualidade do atendimento no comércio de Curitiba não é objeto para uma crônica é razão para um motim na Rua XV; ou para a criação de um grupo de apoio às vítimas do varejo. Deixe quieto. E, quanto a mim, não foi nada. Falemos do medo, esse intruso que nos faz chacinar com o olhar. Suspeito permitam-me que muitos de nós se sentem confortáveis em temer. O medo nos distingue dos pobres, dos feios, dos solitários, dos diferentes. Agir assim é perpetuar uma esquizofrenia medieval. Dizia-se que os simples eram encarnação divina, ao mesmo tempo em que eram tratados como possessos, libertinos e desocupados. Familiar, né?
Sentimentos dessa ordem nos alforriam do dever de ir ao encontro do outro. Por isso nos fiamos em condomínios, shoppings, bunkers com catracas. Barbaridades? Pois não sou em quem as diz. A ensaísta argentina Beatriz Sarlo e o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, para citar dois pensadores cultivados nos melhores círculos, se ocupam de desvendar o que há de real e o que há de fabricado no medo. Disseram poucas e boas. Mas é nossa vez. Temos de falar sobre o medo, até deixá-lo pelado.
Gosto do que defende o arquiteto paulista Paulo Mendes da Rocha, crítico mordaz daqueles que, sob a desculpa de combaterem a violência, escondem-se atrás dela. Esses seriam os verdadeiros vilões. Ao defenderem uma sociedade controlada e dividida, nada mais fazem que aumentar as razões da criminalidade. O medo é o novo fascismo, diz Paulo. De minha parte, tenho medo de quem foge da gente nas calçadas. Da próxima, corro para o outro lado. Aos berros, só por sarro.
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