Abrigo de uma fatia notável da elite intelectual e econômica brasileira, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) revelou-se também uma casa de horrores. Nas últimas semanas, o depoimento de alunas de um dos cursos de ingresso mais disputado do país estarreceu a opinião pública. Alimenta-se no campus uma cultura de opressão e intimidação às mulheres, que alcança, em festas de recepção a calouros e outras celebrações do calendário acadêmico, o mais sórdido dos limites, a violência sexual.
Seguiu-se à humilhação e ao trauma uma forte pressão para que as vítimas não denunciassem os abusos, notícia que representaria um abalo arrasador à reputação da instituição. "Fiquei totalmente perturbada. Transformou minha vida para sempre. A universidade não pode mais ser conivente. Tem que parar esse ciclo de silêncio e violência", desabafou uma aluna em audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo.
O tema voltou com força à pauta de discussões de especialistas e grupos feministas. Pesquisadora com foco em sexualidade, gênero e mídia, Marcela Pastana, psicóloga e doutoranda da Universidade Estadual Paulista (Unesp), observa o comportamento dos frequentadores de festas universitárias. Em rituais de inserção na faculdade que costumam ser classificados como brincadeira, Marcela enxerga uma prática de humilhação.
"É muito comum, em trotes, as meninas lavarem o banheiro, servirem os meninos, vestirem-se de empregadas. Nos jogos, as músicas cantadas as depreciam. Nas festas, mulheres não pagam e têm bebida à vontade porque o papel delas é ficar à disposição. Tudo isso culmina no apagamento da mulher. Ela é vista como um passe livre", lamenta.
Coordenadora do Coletivo Feminino Plural, de Porto Alegre, Telia Negrão identifica uma "cultura do estupro" no Brasil. Segundo Telia, em uma sociedade que ainda se sustenta no formato patriarcal, de vigorosa feição racista, a noção de que as mulheres "não se pertencem" e são uma parte menos importante do conjunto de indivíduos está incrustada nas relações afetivas, familiares, sociais, políticas e de trabalho, sem distinção de classe social ou escolaridade. Políticas públicas, ainda que existam, são insuficientes, na opinião da ativista, para fazer frente ao hábito da impunidade.
"As mulheres são intimidadas, atemorizadas, têm medo de reagir. O medo é o elemento mais paralisante antes, durante e depois da denúncia. Elas deixam de denunciar por medo. Quando denunciam, têm mais medo ainda, é o momento de maior risco. E depois que denunciam vêm o medo da reação posterior e a culpa. A mulher é culpabilizada pela violência sofrida", avalia Telia.
A possível vinda ao Brasil de Julien Blanc, que se define como um "artista da pegação", também provocou revolta e mobilização: um abaixo-assinado no site Avaaz coletou mais de 405 mil assinaturas na tentativa de impedir a entrada do palestrante no país. Barrado também na Austrália e na Inglaterra, o suíço radicado nos Estados Unidos ensina técnicas consideradas agressivas para abordagem na paquera, como a de um quase sufocamento. O visto dele não será emitido.
Autonomia da mulher
Assessora jurídica da ONG Themis Gênero, Justiça e Direitos Humanos, de Porto Alegre, Lívia de Souza também pensa que a forma mais eficaz de evoluir é levar o debate sobre as questões de gênero para as salas de aula e implementar campanhas que fortaleçam o princípio da autonomia da mulher. Em um sistema tão tolerante com as transgressões, falta a punição não só aos crimes mais graves, mas também para os de menor potencial ofensivo. - Temos que criar um mecanismo para coibir também outras violências. Que mulher não respira fundo quando entra numa rua deserta e vê cinco homens vindo na sua direção? Existe a ideia torta de que mulher que não gosta de cantada não gosta de receber elogio. Não precisa ser violência física. De pequenas violências, que vão diminuindo a mulher, se vai a grandes violências alerta Lívia.
Inquérito na USP
Alunas do curso de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) revelaram ter sido vítimas de violência sexual em eventos promovidos pela faculdade dentro do campus. Embriagadas em festas, foram atacadas por colegas e pessoas estranhas. Também vieram à tona casos de estudantes que sofreram agressão física ou foram vítimas de racismo e homofobia. O Ministério Público instaurou um inquérito civil para apurar as denúncias.
Abaixo-assinado
Com eventos agendados em Florianópolis e no Rio de Janeiro, Julien Blanc, um guru da paquera que treina homens para abordagens agressivas, gerou uma ruidosa manifestação online. Um abaixo-assinado no site Avaaz recebeu mais de 405 mil assinaturas pedindo que o Itamaraty negasse o visto ao visitante. A Secretaria de Políticas da Mulher afirmou que a entrada de Blanc no país não será permitida.
#NãoMereçoSerEstuprada
Em março, a jornalista Nana Queiroz iniciou na internet o protesto Não Mereço Ser Estuprada, posando de topless para uma foto em frente ao Congresso Nacional com a frase escrita nos braços. A indignação eclodiu a partir de uma pesquisa do Ipea em que 65% dos entrevistados concordaram com a afirmação "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas". O instituto corrigiu o dado dias depois, mas o índice permaneceu alto: 26% dos participantes do levantamento admitiram estar de acordo com a frase.
Atrás das grades
Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de prisão por estuprar pacientes em sua clínica de reprodução assistida em São Paulo e procurado desde 2011, foi preso no Paraguai em agosto. A detenção do exmédico, que sempre alegou ser inocente, encorajou vítimas a virem a público relatar os horrores por que passaram muitas foram molestadas enquanto estavam sob efeito de sedativos para o tratamento de fertilização.