Curitiba Duas situações aparentemente desconectadas mostram como a diplomacia brasileira foi afetada por critérios políticos. O alinhamento de ideais, ainda que não explicitado, entre o ditador cubano, Fidel Castro, e o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, explica a pressa na deportação dos atletas cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara feita na calada da noite e sem que organizações ligadas aos Direitos Humanos fossem consultadas. Já no caso do traficante colombiano Juan Carlos Ramírez Abadía, um dos homens mais procurados no mundo e acusado pelos assassinatos de 315 pessoas, a pressa é bem menor.
Abadía foi detido no dia 7 de agosto pela Polícia Federal e está, desde o dia 11, na Penitenciária Federal de Campo Grande (MS). O processo de extradição do criminoso pode levar até dois meses, já que há dois entraves para a agilidade da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). O primeiro é o fato de Abadía responder pelo crime de lavagem de dinheiro na Justiça de São Paulo e o segundo é uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que impede que um criminoso seja extraditado para um país no qual ele esteja sujeito à prisão perpétua ou à pena de morte.
O juiz federal e professor de Direito Internacional da UTP, Friedmann Wendpap, explica que o Brasil exige que o país requerente da extradição se comprometa a comutar as penas pelas permitidas aqui. "Isso é muito comum. A China, por exemplo, se compromete a não aplicar a pena de morte. É uma da condições", diz ele. Isso significa que, para que o Brasil extradite Abadía, o governo norte-americano terá de se comprometer a não aplicar a pena de morte e a não condená-lo à prisão perpétua. Ou seja, como no Brasil o tempo máximo para que uma pessoa permaneça na prisão é o de 30 anos, essa provavelmente seria a condenação de um dos traficantes mais procurados do mundo.
Sorte
Infelizmente os dois atletas cubanos não compartilharam da mesma sorte que o colombiano. Ao que parece, o ministro da Justiça esqueceu-se de que em Cuba, por mais que não seja praticada há quatro anos, a pena de morte é ainda legal e muitos dissidentes do regime de Fidel enfrentaram o "paredón" ou foram condenados a longos anos de prisão. Um exemplo foi a execução de três homens que tentaram roubar um barco para fugir da ilha e foram julgados e condenados à morte apenas 20 dias após o incidente em 2003.
Pelo fato de terem abandonado a seleção cubana durante os Jogos Pan-Americanos, no Rio de Janeiro, em julho, os boxeadores são agora considerados dissidentes. De acordo com relatos do ministro da Justiça, Tarso Genro, e do procurador da República Leonardo Luiz de Figueiredo Costa, que esteve com os boxeadores antes de embarcarem de volta "pra casa", as famílias de ambos estariam sofrendo ameaças do governo ditatorial. Essa teria sido a razão pela qual os dois desistiram de ser boxeadores na Alemanha.
O diretor jurídico da Conectas Direitos Humanos e professor de Direito Constitucional da FGV, Oscar Vilhena, afirma que os atletas estavam amparados por duas leis: pela Constituição Brasileira, que estabelece que a República brasileira deve oferecer asilo a toda pessoa que se sentir ameaçado pelo regime político de seu país; e pelo Estatuto dos Refugiados, uma lei internacional que impõe ao país onde os fugitivos pedem asilo que investigue se eles correm riscos ou não em sua terra natal. "Isso faz com a que entrega imediata, sem o processo legal, sem uma verificação de fuga, sem que organizações brasileiras tenham sido chamadas para conversar com os dois, seja uma afronta à ordem constitucional e internacional", diz Vilhena.
Tragédia
A deportação dos cubanos "é a repetição de um tragédia", afirma Friedmann, que compara a situação de Rigondeaux e Lara ao caso conhecido como "O Seqüestro dos Uruguaios", ocorrido em 1978, durante as ditaduras militares em curso no Brasil e no Uruguai. O casal de militantes Universindo Díaz e Lilian Celiberti fugiu do país deles para se esconder em Porto Alegre. Em um ato de simpatia entre os dois governos, o militares brasileiros permitiram que a polícia uruguaia atravessasse a fronteira para prender os dois. O caso só foi revelado porque foi feita uma ligação anônima ao diretor da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, Luiz Cláudio Cunha, que, ao tentar verificar a denúncia, acabou por testemunhar o seqüestro.
Lílian e Universindo, presos e torturados no Brasil, ficaram cinco anos nas prisões militares do Uruguai. Com a democratização uruguaia, em 1984, o casal foi libertado e confirmou os detalhes do seqüestro. "Com os uruguaios, foi uma ação entre dois amigos ditatoriais sem nenhuma preocupação com o destino físico do casal. Tanto que a polícia uruguaia entrou no Brasil", ressalta Friedmann.
Outro caso recente deixa ainda mais em evidência o fato de que o governo brasileiro não costuma ter pressa para extraditar criminosos, mesmo sendo eles condenados nos países de origem. O ex-militante de extrema esquerda Cesare Battisti, 52 anos, condenado na Itália em 1993 por quatro homicídios e foragido da Justiça francesa desde 2004, foi preso em março deste ano no Rio de Janeiro. Cinco meses depois, Battisti permanece detido, aguardando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre sua extradição.
O caso dos cubanos destoa dessa tendência. Friedmann ressalta que, quando os boxeadores cubanos foram encontrados e relataram as ameaças às famílias dos dois, o governo brasileiro deveria ter trabalhado com o tempo. "Teria de haver tempo e nenhuma preocupação política." Fato que não ocorreu. O Brasil preferiu atender prontamente a um pedido do ditador cubano. "Um avião veio de Cuba para buscar duas pessoas. A única explicação para isso é uma lógica política", diz o juiz. "Rigondeaux e Lara são duas pessoas sem imputação penal nenhuma, sem militância política e não tiveram o mesmo tratamento do Brasil", lamenta Friedmann. O problema dos dois foi o de terem nascido esportistas talentosos em um país que não dá a seus cidadãos o direito de construir carreiras fora de seu território.