Oferecer um sistema de transporte que dê opções para a população não é um fator positivo apenas para a mobilidade urbana: é questão de saúde. Cidades e países que investem em modelos de desenvolvimento sustentável veem índices de obesidade e doenças cardíacas caírem, além da redução de poluição do ar e melhora da qualidade de vida. As implicações das políticas públicas na saúde são um dos trabalhos do médico gaúcho Carlos Dora, coordenador do Departamento de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Para isso, ele analisa prioritariamente quatro setores da economia energia, transporte, habitação e setor extrativo e seus riscos para a saúde. "O que eu faço é colocar todos esses riscos num conjunto que respondem como é que as alternativas de políticas públicas podem prevenir doenças", explica.
Dora esteve no Brasil no começo de julho, quando participou do Seminário da Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU) em São Paulo. Em sua palestra, o médico analisou os impactos de um sistema de transporte BRT (Bus Rapid System, modelo de transporte coletivo com circulação em faixas exclusivas ou canaletas) na saúde.
É possível criar qualidade de vida e saúde urbana?
A doença urbana, que é causa de morte, é a doença não transmissível. Suas raízes são a poluição do ar que causa doenças do coração e do pulmão , a falta de atividades físicas que dá diabete, doenças do coração e câncer e o acidente de tráfego. Todas essas coisas têm a ver com transporte e com a opção que a gente tem por um meio ou por outro.
É possível quantificar a relação entre um tipo de transporte e o que se ganha com ele em termos de saúde?
Com o BRT a gente está quase lá, mas já foi realizado com a bicicleta. A gente tem na OMS softwares para calcular quanto um prefeito investe em pista ciclável, quanto ele ganha em termos de saúde e o que isso quantifica em termos de dinheiro. Saúde a gente pode transformar em dinheiro: menos consultas, menos tempo perdido para o trabalho, menos medicamentos. A gente já tem tanto para andar de bicicleta, a estrutura ciclável, quanto para pedestre, porque também já tiveram tantos estudos que olharam os impactos das intervenções urbanas em benefício da saúde que a gente conseguiu fazer isso.
Por que investir em estudos relacionando saúde e BRT?
Estão fazendo todo esse monte de BRTs novos [no Brasil]. É uma grande oportunidade de demonstrar que isso é melhor que outras alternativas. E tem a questão do conforto. A gente caminhando ou andando de bicicleta em uma cidade limpa, que não tem poluição de ar, é muito mais confortável. Ou não tem o risco, o susto do trânsito. Não é só ter o acidente, mas o medo de ter um, e se proteger e correr para atravessar a rua.
Muitas cidades sofrem com o esvaziamento dos espaços públicos, pessoas com medo de viver a cidade por causa da falta de segurança. Como promover a ocupação, levar as pessoas para as ruas?
É um círculo vicioso. Você tem medo que o seu filho tenha um acidente de tráfego na ida para o colégio, então, você entra no carro para levá-lo. Quanto mais tem gente no carro indo levar o filho para a escola, há mais risco de acidente. Isso se retroalimenta. A mesma coisa é a ocupação da cidade pelos pedestres. Aí a causa, eu acho, é porque a cidade é planificada para o carro. Um transporte público com espaço para pedestre e bicicleta cria equidade. Além de criar saúde, igualdade e outro ponto principal, que é a questão de indicadores de saúde para sistemas de transporte, para contabilidade.
Como desenvolver esses indicadores?
O sistema de saúde é muito rico de indicadores e o sistema de transporte também. Tem que fazer os vínculos. Como OMS, eu pego onde tem evidência científica que me diz onde é que está a conexão. O que a gente está fazendo é trabalhar isso como objetivos para o desenvolvimento sustentável, exatamente para ter alguns indicadores que falem dessa questão de cidade, transporte, saúde e desenvolvimento.
Existem exemplos que podem ser copiados?
Há muita coisa boa lá fora e muita coisa boa no Brasil e América Latina. Tem muita solução e muito erro também. Um exemplo bonito é do Rio de Janeiro: pega o ar quente do chão para mover o ventilador que refresca o ônibus. Não precisa de ar condicionado que não é limpo e causa doenças, até mesmo severas, e não dá para instalar em cada cabinezinha. Uma das soluções inteligentes é essa e você tem muitos mecanismos virtuosos que pode utilizar.
No caso dos ônibus, muitas cidades estão apostando em modelos híbridos.
Eu acho que a gente tem que ter uma coisa que seja factível. Um ônibus limpo, que tenha condições de circular com rapidez e segurança e que dê acesso aos pedestres e ciclistas. Se o motor tem que ser híbrido ou não, não vejo porque gastar tanto mais. Eu diria que o critério principal é esse do BRT: alta qualidade, ser limpo, passar na hora, dar informação, ter segurança, acesso, bem planificado. Todo esse pacote é que dá uma característica ao ambiente urbano.
E na Europa, que possui redes de transporte multimodais estruturadas, o que há para se inspirar?
A lição maior da Europa é que hoje em dia andar de bicicleta virou chique, é moda. Quando comecei a trabalhar com saúde e transporte, na década de 90, todo mundo ria e achava divertidíssimo, mas diziam isso não é transporte. Hoje é automático e é sinal de que você tem um sistema de transporte de elite, top. As pistas cicláveis são em lugares agradáveis e há espaço para pedestre. O que se viu na Europa é que, inicialmente, havia medo em ter espaço para pedestre ou para transporte público e diminuir os negócios. Na verdade, foi ao contrário, tanto em cidades pequenas quanto grandes. O espaço para pessoas melhora até os negócios, sobretudo essa coisa de venda e bares. Em termos econômicos, a cidade se torna mais atraente e atrai gente mais inteligente, mais bem preparada e que leva a cidade adiante. É uma coisa que você não mede no sistema de transporte, mas eu acho que deveria medir.
*A repórter viajou a convite da NTU
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